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O Globo 08.05.2013

Privatizando o Sofrimento
Julita Lemgruber*
Sob o título de “O novo filão eleitoral” o Globo publicou no dia 29 de abril matéria denunciando que as chamadas comunidades terapêuticas, iniciativas da sociedade civil destinadas ao “tratamento” de dependentes de drogas, estão sendo utilizadapoliticamente por parlamentares e, pior, estão em vias de receber polpudas verbas federais.
O robusto relatório do Conselho Federal de Psicologia, divulgado em 2011, que organizou inspeções em 68 desses locais, denuncia que a assistência aí ofertada, além de carecer de regulação governamental “fundamenta-se em princípios que contrariam pressupostos que orientam as políticas públicas... e se inscrevem no campo de práticas sociais invisíveis ou subterrâneas” onde os mais fundamentais direitos são desrespeitados, onde os internos são constrangidos a participar de atividades religiosas e onde muito raramente são encontrados profissionais de saúde.
Pois bem, este quadro dramático e vergonhoso pode piorar muito se for aprovado pela Câmara de Deputados o Projeto de Lei de autoria do Deputado Osmar Terra (PL 7663/10), com relatoria do deputado Givaldo Carimbão, ele mesmo mantenedor da Fazenda Vila Nova, inscrita na Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas para receber dinheiro público.
O PL 7633/10 sacramenta a internação compulsória de dependentes químicos criticada por juristas como inconstitucional e condenada por profissionais da área da saúde como uma excrescência. O relator especial da ONU sobre tortura e outros tratamentos cruéis, desumanos e degradantes sustenta que a internação forçada de dependentes químicos constitui tortura.
É absolutamente inaceitável, incompreensível e inadmissível que o governo federal endosse o PL 7633/10. A presidente Dilma Roussef, historicamente comprometida com os direitos humanos, vítima, no passado, da abominável prática da tortura, não pode permitir que seu governo seja, no futuro, acusado de ter assistido inerte à instalação no país de tal descalabro jurídico e médico do qual serão vítimas os pobres e despossuídos.
Importante enfatizar que no Congresso Internacional dobre Drogas, realizado em Brasilia entre 3 e 5 de maio últimos, reunindo mais de 700 participantes e inúmeros palestrantes internacionais, entre profissionais dos mais respeitados em suas áreas (da neurociência à psiquiatria, das ciências sociais ao direito), representantes de ONGs e ativistas de direitos humanos, foi divulgada e aprovada a “Carta de Brasília em Defesa da Razão e da Vida”.
O documento, além de condenar o PL 7633/10, chama governo e população a refletir sobre os danos gravíssimos da política proibicionista na área das drogas que “infringe garantias fundamentais previstas na Constituição da República, corrompe todas as esferas da sociedade, impede a pesquisa, interdita o debate e intoxica o pensamento coletivo”.
Por tudo isto, está mais do que na hora de governo e sociedade debaterem com seriedade a questão das drogas. Está mais do que na hora de a presidente Dilma Roussef impedir que sua biografia seja comprometida pelo apoio de seu governo ao PL 7633/10.
*Socióloga e coordenadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC/UCAM)
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SUPERINTERESSANTE 12.2001


Hipocrisia faz mal a saúde.

Mas há algo acontecendo, sim. Vigora no país uma lei que vale só para alguns.
Denis Russo Burgierman
Quando a TV cultura demitiu a jornalista Soninha Francine, divulgou uma nota ao público afirmando que não podia aceitar que o descumprimento de uma lei “seja uma atitude defendida” pela apresentadora de um programa, ainda mais um programa como o RG, voltado para jovens. Parece justo. Incitação ao crime é crime também e ninguém vai negar a uma empresa o direito de demitir um funcionário criminoso. Se Soninha, que perdeu o emprego por ter dado um depoimento para a reportagem de capa “eu fumo maconha”, publicada no mês passado na revista época, está mesmo pregando por aí que as pessoas têm que usar drogas, então a demissão foi corretíssima.
Mas será que ela está? Será que o depoimento que ela deu é mesmo uma incitação ao uso de drogas? Vamos ver. Peguemos um pedaço da sua declaração publicada na revista: “fumo muito pouco, em festas ou casa de amigos. Não incentivo ninguém a fumar”. Opa, isso não parece uma apologia das drogas. Mais um trecho: “há pessoas que pensam que fumar maconha é desajuste, crime. Considero mais danoso dizer que alguém que fuma é criminoso do que qualquer efeito da droga. É esse tipo de tratamento que cria a marginalidade, o gueto”. Ou ainda: “lógico que a maconha tem efeitos negativos para a saúde, mas isso não pode fazer de seu uso um crime”. Onde foi que a TV Cultura viu uma defesa do uso da maconha? Mais adiante, Soninha diz: “várias vezes, depois de fumar, pensei: ‘puxa, é tão bom e causa tanto medo e desgraça’. Um é expulso de casa, outro apanha da polícia ou perde o emprego”. Profético.
Não é verdade que Soninha foi demitida por pregar o descumprimento de alguma lei – ela não pregou e a constituição garante a todos os brasileiros o direito de expressão. Ela perdeu o emprego porque as pessoas e as empresas no Brasil querem distância dessa polêmica, que é tão relevante quanto urgente. Soninha está na rua porque não se eximiu nem quis varrer a discussão para debaixo do habitual tapete. Ao contrário, infelizmente, da maioria das empresas de comunicação, dos formadores de opinião, dos legisladores e dos educadores, que preferem silenciar quando o assunto é drogas.
Não estou defendendo aqui a descriminalização da maconha – embora, honestamente, eu ainda não tenha encontrado nenhum argumento razoável contra ela. Defendo, isso sim, o debate franco. O silêncio só interessa aos grandes traficantes – que faturam uma fortuna sem nenhuma fiscalização do governo, sem pagar impostos e sem medo de ir para a cadeia, enquanto a sociedade finge que não está acontecendo nada.
Mas há algo acontecendo, sim. Vigora no país uma lei que vale só para alguns. Funciona mais ou menos assim: se você é pobre e é pego com maconha, vai preso. Se é rico, é possível que a polícia nem o incomode, para evitar problemas – vai que você é filho de alguém importante. Ou, quem sabe, um subornozinho livre sua cara. Se você é grande traficante, fique sossegado. Se é pequeno traficante, ai, ai, ai. Se o delegado está de bom humor, você é usuário; se está de mau humor, é traficante – tão vaga é a tipificação dos crimes. E, se você quiser discutir o assunto a sério, é acusado de incitar um crime. Em resumo, a lei, do jeito que está não funciona.
Ninguém sabe ao certo quantos usuários de maconha há no Brasil – um dos efeitos do silêncio hipócrita é que ele torna impossível conseguir dados confiáveis para dimensionar o fenômeno. Mas calcula-se que, no mínimo, cinco milhões dêem suas tragadinhas (há quem fale em 40 milhões). Nenhum deles parece disposto a parar porque é ilegal. Ou seja, o uso da maconha é fato consumado, queiramos ou não. Não adianta se fazer de avestruz.
Afinal, quem são esses cinco (ou 40) milhões de usuários? Quantos deles têm problemas de saúde por causa da droga? Quantos sofrem com a dependência? Quantos são menores de idade? Quantos pulam para outras drogas, mais perigosas? Quantos tiram benefícios da maconha (um alívio para o estresse, uma alternativa para drogas mais danosas à saúde, um auxílio para a atividade artística)? Serão eles gente produtiva, competente, criativa, como Soninha, ou criminosos perigosos que ameaçam a sociedade? Enquanto não soubermos responder com clareza a essas perguntas, será muito difícil definir uma política pública e uma legislação decente para o assunto. E só teremos as respostas no dia em que falar abertamente do assunto não acarretar em punição.
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06/05/2013
Drogas: saúde, lei e sociedade.
Confira o discurso do assessor do Ministério da Saúde na área de saúde mental, Aldo Zaiden, no 1º  congresso internacional sobre drogas - saúde, lei e sociedade, realizado em maio de 2013.
Hoje tomarei a liberdade de detalhar um tema que perpassou quase todas as discussões neste impressionante e belo encontro, que, como dito no primeiro dia, é a verdadeira cúpula que pode iluminar a esplanada dos ministérios neste momento.
Na imprensa, já recebemos alguns ataques, mas, sobre isso, gostaria de citar uma frase que o Fernando Morais disse a um amigo ofendido: se elogio em boca própria é vitupério, vitupério em certas bocas é elogio.
Sigamos! Estas declarações reacionárias são prêmios de direitos humanos às avessas. Meus cumprimentos a todos os lutadores presentes.
Bom, para falar nesta mesa sobre direitos humanos no contexto atual, na posição de governo, ou sobre como governos estão lidando com isso e sem ser repetitivo, recorro a uma imagem que me veio há um tempo e que tenho partilhado em alguns espaços: a de um touro em uma tourada.
O touro, este animal poderoso, morre em sua batalha. Por quê? Morre porque se engana. Ele pensa que o que está lhe atacando é a capa e não o toureiro. E enquanto o touro dá suas investidas contra a capa, o toureiro enfia espadas e facas no lombo daquele gigante.
Parece que é assim com a questão das drogas, em muitos casos: ela vira a capa, a cortina que encobre a espada, a adaga da pobreza, dos sofrimentos muito grandes enfrentados pelas pessoas, em especial as mais pobres, mais vulneráveis, e que, portanto, têm os seus direitos mais violados.
O tema específico que escolhi e desejo retomar junto aos senhores diz respeito a esta capa enganosa: são os elementos contidos no pl 7663/2010, dos deputados Osmar Terra e Givaldo Carimbão:
     o PL dispõe sobre alterações na política e no sistema nacional de drogas. Foi elaborado no âmbito de uma comissão especial, com participação de poucos parlamentares, dispensando os ritos procedimentais do trâmite legal que garantem o conhecimento e amadurecimento de uma proposta no legislativo;
     agora o texto está em discussão no governo, com possibilidade de votação nesta semana que começa hoje;
     as principais novidades da proposta, que chamam atenção para o debate, são, como muitos sabem:
     o endurecimento penal a traficantes, sem, contudo, aprimorar o conceito de diferenciação em relação ao usuário;
     o financiamento de entidades religiosas que realizam o acolhimento a usuários;
     as internações como modo prioritário para tratamento do usuário, sem estarem acompanhadas das garantias dispostas na lei antimanicomial, lei Paulo Delgado, nossa lei 10.216, de 2001;
     a possibilidade de substituição do familiar por servidores públicos no encaminhamento de internações involuntárias – portanto dispensando autorização judicial, como nos casos de internação compulsória em que não há a presença de familiar.
Explico melhor agora as duas últimas observações, questões centrais no campo da saúde e dos direitos humanos. O principal ponto de estrangulamento está justamente no que o pl dispõe sobre internações dos dependentes, que deve obedecer à divisão:
a) internação voluntária: aquela que é consentida pela pessoa a ser internada;
b) internação involuntária: aquela que se dá, sem o consentimento do dependente, a pedido de familiar ou, na absoluta falta deste, de servidor púbico que constate a existência de motivos que justifiquem a medida.
Considerando que o texto define apenas as internações como modalidade de atenção, excluindo estranhamente as outras formas de cuidados previstas e executadas pelo SUS, tanto no âmbito do serviço público e gratuito, como na rede complementar, a mensagem que se extrai é que as internações passam a ser a medida a ser tomada para a atenção aos usuários e dependentes, e determinadas por qualquer pessoa que prestou um concurso público;
Como dito, essa alteração de parâmetros não vem acompanhada dos outros elementos da 10.216/10, lei de garantia de direitos, que especificam a exceção da medida, as salvaguardas necessárias e, sobretudo, o fato desse recurso ser da saúde. Ora! Se for para falar em tratamento nesta proposta, seria necessário mencionar o texto completo da lei de reforma psiquiátrica – não um fragmento perigoso, que nós já temos muita dificuldade em fazer aplicar corretamente;
Avalio, como já compartilhado por muitos aqui, que no cenário político atual, a aplicação desta medida, sobretudo no contexto dos centros urbanos, legalizará atos de limpeza social e recolhimento de miseráveis em sofrimento, não promoverá atenção;
Pois bem. Cabe brevemente discutir um ponto, que talvez esteja na base da retórica que guia este projeto: as pessoas entendem as internações coercitivas, forçadas, como socorro ou cuidado. 90%, em uma pesquisa do Datafolha se declaram assim recentemente. E toda ponderação que questiona a generalização da medida é tomada como defesa de absurda desassistência, uma desumanidade.  Ocorre que se trata de uma falsa polêmica, ser contra ou a favor das internações involuntárias, já que a medida está prevista na 10.216/10 e dialogará com o seguinte fato: nenhum profissional saúde sério deixará de prestar atendimento emergencial a uma pessoa em situação de risco, avaliadas as condições e salvaguardados os requisitos previstos em lei, nas regulações dos conselhos e portarias concernentes;
Assim, o projeto de lei, neste ponto, bem como na questão do endurecimento penal que deseja fazer passar, concentra uma disputa política das mais sérias: deixar ou não que estes dispositivos de segurança ou de saúde, estes de delicada aplicação, sirvam para agenciar desejos de recolhimento em massa de pessoas em sofrimento. Não se pode mais convocar a saúde, como já aconteceu, para criminalizar a pobreza em tempos de democracia.
Bom, nestas reflexões, a metáfora da capa e do touro tem me retornado, me retomado e me possibilita deslocar o significante do boi para lembrar, neste contexto em que também talvez tenhamos que voltar à luta pela democracia, de uma canção de Geraldo Vandré, brilhantemente cantada nos duros anos da ditadura brasileira por Jair Rodrigues: disparada – " porque gado a gente marca, tange, ferra, engorda e mata, mas com gente é diferente...mas com gente é diferente..."
Então, companheiros, dito tudo isso, é importante chegar a um ponto de finalização da minha fala. Como é de conhecimento público, este PL não foi apoiado pelo ministério da saúde e outros ministérios relacionados, que também se manifestaram oficialmente contrários por meio de notas técnicas. Contudo, há também apoios no governo.
Muita água vai rolar ainda no debate deste PL, e será necessário o compromisso de todos para garantirmos os melhores e possíveis resultados dessa batalha. Cada um usará dos recursos que dispuser, dentro de suas possibilidades. A discussão ainda deverá ser mantida dentro do governo, na câmara, no senado e, especialmente, na sociedade.
Me pergunto, sim, se ainda consigo fazer essa disputa dentro do governo, se não devo sair para fazer o debate aberto. De todo modo, precisamos conter o retrocesso e avançar nessa questão que trata, na verdade, de democracia.
Muito obrigado".
* Discurso proferido por Aldo Zaiden durante o 1º Congresso Internacional sobre Drogas – Saúde, Lei e Sociedade, em 05/05/2013, no museu Nacional da República, BSB.
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FSP 27.04.2013
Descriminalização das drogas
Antônio Prata
Dos 15 aos 20 e poucos anos, fumei maconha pelo menos uma vez por semana. Confesso que nem achava muito bom, era o típico cara que fuma só porque está todo mundo fumando; ficava mais confuso do que relaxado, sem saber se punha as mãos nos bolsos ou cruzava os braços, se ia ouvir pink floyd no escuro ou comer melancia com ketchup. Finda a adolescência, percebi que a canabis não era mesmo a minha e parei. Não tive que tomar nenhuma atitude drástica, reunir força de vontade, buscar ajuda: simplesmente deixei de usar e não senti a menor falta.
Não estou dizendo que maconha não vicia. Entre os vários amigos meus que a consomem regularmente um é viciado. É advogado tributarista, casado, pai carinhoso e fuma umas duas vezes por dia. Compare-o a um alcoólatra e fica claro que, mesmo no pior cenário, os males da maconha são menos graves do que os de uma droga lícita.
Não estou afirmando, tampouco, que a maconha não faz mal. Certamente esse amigo que fuma diariamente tem mais chances do que eu de, no futuro, desenvolver um câncer de pulmão --e mais dificuldade para, de manhã, se lembrar de onde colocou as chaves--, mas a escolha é dele. O pulmão e as chaves, também.
A vida é muitas vezes chata, é quase sempre dura, é definitivamente curta. Por isso uns bebem, outros fumam, ingerem mais gordura saturada do que recomenda a organização mundial da saúde e há até quem salte de asa-delta, sem que o estado se meta em suas vidas.
Tudo isso posto, fiquei muito contente, semana passada, ao encontrar nos jornais, entre felicianos e malufs, vans e panelas de pressão, a notícia de que sete ex-ministros da justiça encaminharam ao stf uma carta recomendando a descriminalização do uso de drogas.
Que a maconha deveria ser legalizada já, plantada e fumada por quem quisesse, não tenho a menor dúvida. Quanto às outras drogas, é preciso analisar bem como proceder, para que não se resolva apenas o lado do consumidor do asfalto, mantendo a tragédia do tráfico nos morros e periferias.
Felizmente, além dos ex-ministros, há muita gente gabaritada pensando em como desatar esse nó. Ano passado, foi criada a rede pense livre (migre.me/efd02), um grupo apartidário, com membros de diversas áreas --da antropologia ao mercado financeiro, da direita e da esquerda; gente de terno, de piercing, de terno e de piercing--, cujo objetivo é rediscutir a atual política brasileira referente às drogas --e mudá-la. Parte da premissa de que a estratégia atual, a guerra, não funcionou e propõe a descriminalização.
O mal que a "guerra às drogas" causa à sociedade é infinitamente superior aos danos que as substâncias causam a seus indivíduos. Hoje, mais de 130 mil pessoas (1/4 da população carcerária brasileira) estão na cadeia por alguma relação com entorpecentes; são jovens, em grande parte, cujos futuros o contribuinte paga caro para arruinar, mantendo-os atrás das grades.
Deixemos os presídios para quem mata, quem estupra, quem desvia dinheiro público e deposita nas ilhas jersey: não para quem precisa de tratamento médico ou nem isso, quem só quer esquecer um pouco dos problemas, ouvir pink floyd e --por que não?-- comer melancia com ketchup. 
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Gritos Urbanos
Onde estão os direitos humanos
Beto Comarca
Nunca se falou tanto em direitos humanos, o que deveria estar associado à integridade física e moral das pessoas, mas não é isso que temos visto nas ruas que mostram nitidamente o desrespeito e a ausência de ações do estado e seus agentes.
As desigualdades sociais estão por toda parte, gerando uma grande população de seres humanos excluídos, “marginalizados” vivendo nas ruas, praças, embaixo de viadutos e marquises. Um verdadeiro grito de alerta para os ouvidos dos nossos governantes que ao invés de estarem atentos a este grave problema que envolve a sociedade, se mostram disponíveis de corpo e alma para os grandes eventos que teremos em  nosso país, olimpíada, copa do mundo etc. Deveriam haver políticas públicas preventivas e corretivas em nossa constituição brasileira, para que minorias não fossem transformadas em vilões. Deveria ser entendido que muitas dessas pessoas que hoje estão à margem da sociedade são vítimas de um sistema que tirou delas todas as oportunidades.
É necessário que a sociedade comece a entender que a falta de políticas públicas violam os direitos humanos que não se resumem apenas em ocorrências policiais, erros judiciais e outros delitos causados por essas omissões.  Precisamos entender que a falta de atendimento médico, medicamentos, educação, emprego, salários dignos e respeito ao ser humano fazem parte desse contexto que infelizmente hoje está em segundo plano e se nada for feito de forma emergencial teremos uma sociedade refém, vítima, afrontada e abalada em toda sua estrutura de desenvolvimento individual, regional e nacional.
Precisamos mudar a nossa consciência de que os direitos humanos foram criados apenas em defesa dos delinquentes e começarmos a cobrar dessa instituição e do poder público aquilo que temos por direito, respeito ao ser humano em sua individualidade e principalmente em sua qualidade de vida para que cada cidadão possa viver com dignidade.
É dessa forma que teremos uma democracia verdadeiramente estabelecida dentro do nosso país.
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JFSP 14.03.2013
Um projeto drogado
Janio de Freitas
Proposta quer os viciados em drogas registrados num cadastro; eles não teriam benefício algum com isso.
A Câmara esteve na iminência de votar quarta-feira um projeto com graves implicações sociais, que precisariam de ampla discussão pública, mas a população nem ao menos sabia da votação prevista. (O jornalismo brasileiro tornou-se muito original). A votação está apenas adiada, em princípio, para terça agora.
De autoria do peemedebista gaúcho Osmar Terra, o projeto quer os viciados em drogas registrados em um cadastro nacional. Os viciados não teriam benefício algum com a medida. Mas, além disso, os futuros recuperados, os recuperáveis e as famílias dos viciados ficariam sujeitos a danos incalculáveis. Expostos, desde o registro e pela vida afora, aos efeitos das visões preconceituosas no mundo do trabalho e nas relações humanas.
A proposta para a formação do cadastro é ainda mais perturbadora. Os profissionais incumbidos do atendimento e de internações estariam obrigados à pronta informação, para o cadastro, sobre o dependente atendido ou, se internado, beneficiado por alta. E aos professores e diretores de escolas caberia a obrigação de mandar para o cadastro os nomes dos alunos consumidores de droga ou com indício de sê-lo. A respeito, não é preciso dizer nada além disso: Alemanha, anos 1930.
Está difícil, e não há esforço algum para facilitar, a compreensão ampla de que ninguém é viciado por querer, seja qual for o vício. No máximo, pode haver indiferença ou conformismo com o vício e suas consequências. Mas todo vício é um sofrimento, porque é dependência e toda dependência é opressiva. O traficante, sim, trafica porque quer, ainda que sob o impulso do próprio vício. Não tem cabimento, portanto, a emenda que o PSDB quer apresentar ao projeto, eliminando o proposto aumento da pena mínima para traficante, em associação com a retirada do cadastro de consumidores de drogas.
A iniciativa de adiamento da votação foi do PSDB, para que a bancada revisse o projeto a pedido de Fernando Henrique, e do PC do B, sem que isso signifique apoio dos demais partidos às barbaridades propostas. Não há indicações de como estão as bancadas partidárias quanto aos itens do projeto. Até por isso, o adiamento por apenas uma semana é a continuada falta da discussão pública do projeto. E agora também das emendas, sejam quais forem, mencionadas pelo líder do PSDB, Carlos Sampaio, para atender a Fernando Henrique.
O projeto tramita há mais de dois anos e, apesar disso, chegou à pauta de votação como uma monstruosidade incólume. Inclusive sem emendas saneadoras do PSDB e do PC do B. O necessário, portanto, é adiá-lo sem data de votação e tentar submetê-lo a algum debate nos meios de comunicação (comunicação?).
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Observatório da Imprensa 19.03.2013
Um caso simbólico de exclusão e violência
Sylvia Debossan Moretzsohn

Um menino franzino de 11 ou 12 anos – a notícia, nesses casos, sempre carece de exatidão – desaparece num sábado à noite, nas imediações do Jockey Clube, no Jardim Botânico, bairro nobre da Zona Sul do Rio. Dois dias depois, seu corpo é encontrado na mata, próximo à Vista Chinesa, no Alto da Boa Vista, com dois tiros na cabeça, unhas dos pés e mãos arrancadas – embora a Divisão de Homicídios, segundo os jornais, rejeite a evidência de tortura.
No tempo da ditadura era assim, mas os justiceiros deixavam sua marca, a mais evidente delas a caveira do Esquadrão da Morte. Assassinatos exemplares, para intimidar a marginalidade pé de chinelo e exibir o poder dos grupos de extermínio.
Grupos de extermínio nunca deixaram de existir, e quem considera as “milícias” atuais um fenômeno novo ignora esse aspecto tão significativo da nossa história recente.
Ainda não se sabe quem teria cometido o crime. A imprensa menciona uma testemunha que teria visto um casal levar o garoto. Uma mulher metida em justiçamentos? Especula-se também sobre a ação de seguranças do Jockey, tendo em vista os furtos ocorridos recentemente na vila hípica do clube, e de seguranças de rua que atuam na área. Não se informa como nem por quem o corpo foi encontrado.
Meninos pobres volta e meia são assassinados por aí, em periferias que não são notícia. O caso destemenino, entretanto, tem tudo para se tornar um símbolo, desde que seja apanhado no seu devido contexto, como O Globo ensaiou em reportagem publicada na sexta-feira (15/3).
Os vários sentidos da marginalização
Antes disso, a história mereceu muito pouco destaque. Alan de Souza, morador na Rocinha, sumiu na noite de sábado (2/3). Como não voltava para casa, sua mãe começou a procurá-lo. Encontrou-o na terça-feira (5), no Instituto Médico Legal.
O Dia foi o primeiro jornal a noticiar o fato. A seguir, o Extra “repercutiu”. Só no sábado (9/3) O Globo deu chamada de capa sobre a “barbárie no Jardim Botânico”. Finalmente, no dia 15, foi mais fundo, abrindo uma página inteira para contar essa história exemplar de exclusão: a mulher desempregada e ainda jovem, mãe de sete filhos – incluindo o que foi assassinado –, que morava num barraco de madeira na Rocinha – pobre entre os mais pobres – destruído numa chuva, a filha grávida aos 16 anos; o menino que não gostava de estudar, ainda não sabia ler e escrever, mentia quando dizia que ia à escola e preferia fazer malabarismos nos sinais de trânsito ou frequentar lan houses para jogar videogame; a escola que não foi sensível ao histórico de faltas, os programas de “acompanhamento de evasão” impecáveis no papel mas incapazes de se concretizar, dada a falta de estrutura nesse e nos demais setores de atendimento social.
Associada a um vídeo com a mãe do menino, a reportagem, entretanto, não recebeu muitos comentários na versão on line do jornal: apenas 23, alguns dos quais culpando a mulher pela própria situação – “desajustada”, “não poderia ter sete filhos e com netos vindo por aí” –, comemorando a eliminação do garoto – “mais uma semente do mal foi pra vala” – ou lamentando a “triste vítima da nossa herança da mistura de raças entre negros e nordestinos”.
Outra reportagem, publicada na noite do mesmo dia, tampouco mobilizou o público, embora tenha provocado o dobro de manifestações, algumas extremamente ofensivas, a ponto de levar um leitor a protestar contra os “raivosos” que “acabam afastando leitores sérios”: “Esses comentários de pessoas radicais que defendem a morte e o extermínio de menores acabam ganhando mais dimensão que a própria notícia. O jornal tá dando espaço demais para este pessoal despejar toda a raiva e frustração contra os favelados e outras minorias. Tem que dar uma editada”.
O preconceito e suas consequências
“Uma editada” provocaria inevitável polêmica: afinal, seria um cerceamento da liberdade de expressão, por mais que discordemos do que se diz. Serviria para coibir a proliferação de preconceitos, certamente, mas eles não deixariam de existir, e hoje se reproduzem tranquilamente nas redes sociais.
Aliás e a propósito, preconceitos fazem parte do próprio enfoque adotado pelo jornal, apesar de espasmos como o desta rara reportagem: na mesma semana em que foi publicada, O Globo destacou em manchete de página (quarta-feira, 13/3), “Insegurança ronda instituições de ensino na Gávea” – por sinal, bairro vizinho ao Jardim Botânico –, com a abordagem corriqueira sobre as pessoas de bem – especialmente os filhos da elite, matriculados naquelas escolas – e os bandidos. No sábado (16/3), noticiava: “Bandos de menores levam medo a Copacabana”, atacando “principalmente turistas e mulheres”. Estariam roubando “até sanduíches” das mãos das pessoas, mas esse detalhe tão significativo não chegou a sensibilizar a repórter, ou seu editor.
Ninguém desconhece a rotina da cobertura dos fatos relacionados com a marginalidade social na grande imprensa: muda a linguagem, mas o enfoque é basicamente o mesmo. Há bons e maus, e os maus são facilmente identificados aos frutos dessa estrutura invisível que promove historicamente a marginalização: os pretos e pobres, lamentável “mistura das raças entre negros e nordestinos”. Assim apresentado o conflito social, não é difícil entender a frequência com que se apela ao puro e simples extermínio dos indesejáveis. Até que um caso escandaloso como o do menino Alan nos desperte para a tragédia da “infância abatida a tiros”, símbolo da complexidade da questão social que o noticiário cotidiano teima em ignorar.
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Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)

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Coletivo Cultura Verde 23/01/2013
CRACK: CUIDAR E NÃO REPRIMIR
Paulo Amarante (ENSP/Fiocruz)
Luis Eugenio de Souza, presidente da Abrasco
A questão do consumo de crack entrou com forte destaque na agenda nacional. É raro o dia em que a grande imprensa não aborde o assunto. E de fato, não há como negar que o uso de crack se tornou um problema de saúde pública. Exatamente aí é que se vê o maior equívoco e a maior contradição do enfrentamento do problema. É um problema de saúde e não de segurança pública.
Enquanto uma questão de saúde pública, o primeiro passo, como propõem especialistas do campo da saúde, é identificar as determinações sociais do problema. A miséria, a desigualdade social, a violência, a carência de recursos e de investimentos do Estado nas comunidades onde o problema se localiza com maior peso, marcadamente com ausência de políticas educacionais e culturais que fixem as crianças nas escolas e fortaleçam os laços familiares e sociais, são analisadores da origem estrutural do problema. Enfim, são muitos os fatores que estão associados à questão da droga na sociedade, e não apenas a inclinação pessoal, ou seja, psíquica, das pessoas com dependência.
Desta forma, é de se estranhar que as soluções sejam de medidas de repressão, como a denominada “internação compulsória”, e não de abordagem das determinações sociais (que são medidas imediatas e permanentes) ou de cuidado e assistência efetiva das pessoas que fazem uso abusivo de drogas.
Embora o crack tenha assumido esta repercussão, não é de hoje que os mesmos segmentos sociais vêm apresentando problemas com o uso de drogas, desde o álcool (que ainda é o maior problema de saúde pública dentre as drogas), à cola de sapateiro, aos solventes, à maconha ou à cocaína. E isto ocorre há muito tempo sem que as políticas de saúde tenham feito algo sério a respeito.
Desde o final dos anos 1980, vêm sendo estruturados Centros de Atenção Psicossocial (CAPS). Mais recentemente, após a aprovação da lei nº 10.216/2001, que modernizou a assistência à saúde mental no Brasil, foram regulamentados os CAPS especializados no tratamento da dependência química.
Em que pese a existência da lei e da regulamentação, os CAPS têm sido implantados com extrema lentidão.
Do ponto de vista da saúde, não faz sentido, portanto, o forte propósito de estabelecer a internação compulsória ou involuntária. As formas, realmente efetivas, de cuidado e assistência às pessoas com dependência química são outras (CAPS, Consultórios de Rua, estratégias de redução de danos, unidades psiquiátricas em hospitais gerias) e estão previstas na lei e nas normas do Ministério da Saúde. A questão é pô-las em prática.
Medidas milagrosas não existem; trata-se de um problema grave e de difícil tratamento. Contudo, insistir na ideia do recolhimento compulsório é o pior dos caminhos. Além de ser uma medida considerada inconstitucional por especialistas do Direito, é ineficaz como tratamento, na medida em que a quase totalidade dos internados retornam imediatamente ao consumo da droga.
Outro efeito negativo do recolhimento compulsório é tornar as instituições de internação locais de violação de diretos humanos. Com efeito, considerando que as pessoas internadas nestas instituições apresentam comportamentos rebeldes, tentativas de fugas, atos de violência contra os funcionários e demais internos, não é difícil imaginar a permanente tensão e as situações de conflitos que são sistematicamente criadas. Historicamente, as instituições fundadas em princípios de controle, disciplina e vigilância tiveram como resultado mais violência e muito pouco ou quase nada de recuperação moral como anunciavam.
Por fim, mas não menos importante, não é para se menosprezar as suspeitas levantadas por várias entidades e movimentos sociais, de que existem interesses não explicitados nesta “guerra ao crack”: a higienização e limpeza urbana apontam para interesses imobiliários e empresariais nos territórios “recuperados”; a internação compulsória revela um crescente e promissor mercado de instituições psiquiátricas hospitalares. Mais especificamente, crescem as “comunidades terapêuticas”, que representam, em geral, uma fraude, na medida em que nada têm de comunitárias nem de terapêuticas.
Enfim, a internação compulsória significa um retrocesso da política de saúde mental, pois vem reforçar as instituições asilares, quando a lei prevê sua extinção e a construção de um modelo assistencial realmente terapêutico.
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O Dia 06.02.2013
Bandidos e providência
João Batista Damasceno
Rio -  A execução do trabalhador rural sem terra Cícero Guedes, em Campos, expressa a forma como é tratada a parcela da população que ousa exigir direitos assegurados a poucos. O movimento do qual participava quer, para produzir alimentos, o mesmo que o Estado garante ao agrobusiness: direito de propriedade. Mas seus companheiros são criminalizados, desqualificados ou assassinados como ele o foi. As instituições devem ser referência de ordem e redutoras das incertezas do futuro. A criminalização dos movimentos sociais os torna vulneráveis perante tais instituições, bem como perante o crime organizado em conluio com agentes públicos.
Para a polícia, o assassino de Cícero era um traficante que se infiltrara no acampamento pretendendo sua dominação. Mas, em nota, o movimento afirmou que “o acusado não possui nem nunca possuiu vínculo com o MST. O acusado representava interesses criminosos que pela força tentaram dominar o acampamento”. Esclarecido o assassinato, é preciso investigar a serviço de que interesses atuava o acusado.
Nenhuma instituição ou organização social, seja templo religioso, poder do Estado, ONG ou associação de moradores, está isenta da possibilidade de sofrer infiltração por postulantes de interesses escusos.
A possibilidade de apropriação de organizações sociais por criminosos é realidade. Em tempos passados, no subúrbio do Rio, um grupo de paramilitares se apoderou da organização da festa de São Jorge e queria cobrar taxa até do padre. O Estado, que serve a alguns, precisa ser apropriado pela sociedade, a fim de que possa se colocar ao lado dela em defesa dos seus interesses e do seu processo de organização. Afinal, o Estado há de ser expressão da sociedade civil, e não o seu rival. Num Estado legitimado pela maioria, expressão da democracia, a providência não há de se manifestar por seres ocultos que conduzam as coisas, mas a previdência ou medidas prévias para alcançarmos conjuntamente os fins que desejamos.
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rev. Carta Capital 22.01.2013

Os equívocos da internação compulsória
Maurício Fiore
Pouco tempo depois da prefeitura do Rio de Janeiro, agora é a vez do governo paulista adotar uma política de atenção aos dependentes de drogas baseada na internação compulsória.
O “problema do crack” parece ter se tornado um dividendo eleitoral de peso e motivado as esferas federais, estaduais e municipais a se movimentar – infelizmente, em busca de soluções rápidas que ignoram evidências e afrontam direitos. As ações recentes são, na verdade, focalizadas em grupos específicos de pessoas que ocupam regiões degradadas das cidades e fazem uso da forma fumada e barata de cocaína.
No caso de São Paulo, a chegada do crack se deu nos fins dos anos 1980. A partir de meados dos anos 1990, a região da Luz e adjacências, já degradada, foi progressivamente se tornando um espaço onde os consumidores se concentraram para encontrar crack e ter liberdade em usá-lo. O crack não inventou as populações marginalizadas que moram no Centro como forma de sobrevivência, mas foi acolhido por muitos deles, principalmente por aqueles em situação de rua. Além disso, muitos consumidores de crack vieram das periferias, onde se sentiam ameaçados. Agrupados, trafegando numa vigília nervosa, com um gestual agressivo, a existência dos “craqueiros” tornou-se socialmente insuportável porque não se esconde, porque é visível.
Só uma pequena parte dos consumidores de crack da cidade está no Centro, mas não nos enganemos sobre a intenção primeira de todas essas ações recentes, exemplificadas nos episódios de violência de janeiro de 2012: uma tática de limpeza desses espaços, travestida de “cuidado aos dependentes”, por meio da retirada higienista de populações indesejadas.
É evidente que o consumo do crack – em muitos casos associado à compulsividade e a sérios danos à saúde e à vida social e afetiva – tem que ser alvo de atenção do poder público. Mas políticas públicas não podem se pautar no alarmismo em torno da ideia de que há uma epidemia de crack. A incontestável disseminação dessa droga pelo país não evidencia a existência de uma epidemia, pois, não obstante suas graves consequências, a prevalência do consumo de crack é pequena se comparada a de outras substâncias psicoativas com alto potencial de dano, como o álcool, cuja escala epidêmica é consensual.
Fala-se também do crack como um forte combustível para a violência. De fato, assim como outras drogas ilegais, seu mercado clandestino está associado ao crime e, portanto, à violência. Mas a relação entre o crack e a violência não é automática, haja vista, por exemplo, que o número de homicídios em São Paulo caiu no período em que o consumo da droga se expandia. Se há uma associação sustentada pelos dados, é a maior predileção de populações vulneráveis e de bairros mais pobres pelo crack, seja no Brasil, nos demais países da América Latina ou nos EUA, onde ele surgiu.
A criação de um tribunal de “campanha”, no qual juízes e promotores, auxiliados por médicos, decidirão em algumas horas quem será tratado por meio do confinamento é um atentado contra a Lei 10.216/2001, marco da luta contra o trágico modelo de confinamento manicomial.
Ela estabeleceu limites para as internações contra a vontade, que só devem ser prescritas quando esgotadas todas as alternativas ou em casos de risco iminente de morte. Além disso, a Organização Mundial de Saúde pediu para que os países abandonassem a política de internações compulsórias, pois elas não só acarretam violações de direitos humanos, como são pouco eficazes para a maior parte dos casos.
Internar parece uma solução atraente porque nos remete a um contexto de proteção, mas, por estar sustentada no isolamento artificial dos indivíduos, não resolve o maior desafio para a continuidade do tratamento da dependência, que é a vida fora dos limites da clínica.
Quando ocorre à força, a chance de uma internação ter bons resultados cai ainda mais.
A dependência química não é “uma doença como apendicite, pneumonia”, como declarou recentemente o médico e governador de São Paulo, Geraldo Alckmin. As evidências científicas a definem como um transtorno complexo, no qual a relação patológica do sujeito com a(s) substância(s) se instala a partir de uma confluência de fatores psíquicos, bioquímicos e sociais.
No caso da dependência de crack, a trajetória de muitos consumidores que circulam pelo Centro é marcada por privações e dificuldades de diversas ordens. Interferir nesse difícil contexto de vida, com a adoção de políticas de reinserção no mercado de trabalho, de reforço dos vínculos comunitários, de educação formal, de acesso aos cuidados básicos de higiene e saúde, entre outras ações – é parte fundamental de uma política que, de fato, esteja preocupada em cuidar dessas pessoas, não apenas tirá-las de nossas vistas.
Além disso, para defender a internação, é comum se desqualificar a rede pública de atenção à saúde mental, principalmente os Centros de Atenção Psicossociais (CAPs). Se há um grave problema da rede, é sua estrutura insuficiente, por vezes precária. Portanto, os resultados que seriam colhidos pelo investimento na qualificação da atenção psicossocial são ignorados pelo lobby da internação, sedento por recursos.
Enfim, cabe dizer que as dramáticas histórias de vida não são justificativas que desresponsabilizam os dependentes de crack; ao contrário, o caminho mais frutífero é reforçar sua capacidade de decisão, oferecendo cuidados e alternativas. A opção pelo confinamento forçado não resulta em proteção, mas no enfraquecimento do fator mais relevante para o tratamento da dependência: a vontade individual.
 Maurício Fiore é antropólogo, pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) e do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos (Neip)
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rev Carta Capital 10.01.2013
O mês das ideias exóticas em SP
Mauricio Antonio Ribeiro Lopes*
Janeiro é um mês fértil em ideias exóticas no governo estadual para a Cracolândia. Há um ano, a desastrada e desastrosa operação militar, substituindo jalecos e aventais por fardas e tonfas, distribuiu violência em doses cínicas e protagonizou a infamante procissão dos crackeiros que a Justiça paulista, em ação do Ministério Público, logo proibiu.
A secretária de Justiça, proveniente do Ministério Público, estranhamente representou pela prática de crime de violação de sigilo profissional contra quatro promotores de Justiça por divulgarem essa decisão judicial, que naturalmente desde sempre fora pública, qual houvesse possibilidade jurídica de sentença secreta.
Agora, ensaia-se outra farsa no teatro do absurdo do Pátio do Colégio: a da internação compulsória de usuários a pretexto de ser a única saída para “mães aflitas que buscam a proteção do Estado para seus filhos que estão mergulhados no submundo das drogas”.
Sobre o tema, especialistas ouvidos no inquérito civil do Ministério Público evidenciaram duas conclusões: a eficiência de qualquer tratamento a usuários de droga está enraizada na adesão voluntária como premissa; as situações-limite que ensejam a internação compulsória (art. 6º, Lei n. 10.216/01), são em média 1% dos casos dentro da população alvo.
O promotor Mauricio Antonio Ribeiro Lopes. Foto: Ministério Público de São Paulo
Por que tanto alarde, falando-se mesmo em criação “de mecanismos para facilitar as internações não voluntárias de dependentes de crack” para tão pouco resultado? Porque a ideia do governo estadual é fazer da internação compulsória instrumento central de sua política para a questão. Crônica de novo desastre se anuncia.
De Pirandello a Ionesco, o drama dos usuários só piora a cada ato urdido no governo estadual.
Às pessoas a quem o Poder Público só prestou histórico abandono a única alternativa à frente que se enxerga é a internação compulsória. Seria apenas ridículo como política pública, não fosse desumano. O catatonismo da política social não se rompe pelo histrionismo higienista. Novas tentativas que levem a sacrifícios de direitos fundamentais serão coibidas com as armas da lei: de liminares à improbidade “e tudo o que houver nesta vida” e nos tribunais.
É passada a hora da política de Segurança Pública e Justiça ceder espaço às pastas de Assistência e Desenvolvimento Social, Saúde, Trabalho e Habitação, que deverão assumir o protagonismo no enfrentamento do tema. Só assim, poderá haver solução e não factóides.
Antes da internação, o Ministério Público e a sociedade civil que no dia 7 de janeiro de 2013 reuniram-se por horas na Cúria Metropolitana com outros secretários (de estado e Município) querem ver habitação, saúde, trabalho, promoção social e dignidade compulsórias. E logo.
 *Mauricio Antônio Ribeiro Lopes é promotor de Justiça de Habitação e Urbanismo da Capital.
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O Globo 12/01/2013

Não é prisão!

Rodrigo Bethlem*
Quem já esteve numa cracolândia e já viu as pessoas que ali circulam, pode dizer que viver nesse completo estado de degradação não é uma escolha consciente. Em pouco tempo, o usuário vira escravo e faz de tudo para se drogar. Abandona a família ou é abandonado por ela. Ele perde a liberdade de decidir. O dependente químico é um doente que necessita de atenção e atendimento especializado porque já está sentenciado à prisão sem grades, determinada pelo uso das drogas. E a internação compulsória, na maioria das vezes, é a única possibilidade de vida. 
Há quase dois anos, a prefeitura do Rio adota o abrigamento compulsório como uma das chances para livrar crianças e adolescentes do vício. Dos 785 acolhidos, 247 eram de outros municípios, 151 completaram a maioridade, 133 já estão escrevendo uma nova história em suas vidas. Além deles, outros 123 permanecem, atualmente, nas unidades especializadas em busca da oportunidade de ficar longe da pedra. 
Dados de novembro de 2012 mostram que o trabalho está no caminho está certo. As cracolândias perderam 12 usuários para o esporte. Meninos de 11 a 17 anos, que viviam para o crack, hoje são atletas medalhistas de judô. Dez estão no Projeto de Iniciação à Capacitação para o Mundo do Trabalho. Mais dois trabalham como aprendizes de gráfico na Imprensa da Cidade. E sete estão aguardando o processo de capacitação. Dos que estavam nas ruas, 61 já voltaram para o convívio das suas famílias. Quatro foram transferidos para o Programa Família Acolhedora. Outros 37 trocaram os abrigos especializados por outras unidades da rede municipal e estão de volta à vida saudável, estudando e fazendo cursos profissionalizantes.
Deixar esses jovens nas cracolândias esperando que resolvessem se tratar por livre vontade poderia ser melhor? A internação compulsória não é prisão! É uma oportunidade de o indivíduo sobreviver e retomar o controle sobre sua vida.
*Secretario de Governo da Prefeitura do Rio
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FSP 13.01.2013
Um confuso bate-boca
O fato mesmo é o seguinte: não há produção e venda de mercadoria alguma se não houver consumidor
Ferreira Gullar
Um novo projeto de lei, que deve ser votado pelo Congresso em fevereiro, trouxe de novo à discussão o problema das drogas: reprimir ou descriminalizar?
Esse projeto pretende tornar mais severa a repressão ao tráfico e ao uso de drogas, alegando ser esse o desejo da sociedade. Quem a ele se opõe argumenta com o fato de que a repressão, tanto ao tráfico quanto ao uso de drogas, não impediu que ambos aumentassem.
Quem se opõe à repressão considera, com razão, não ter cabimento meter na prisão pessoas que, na verdade, são doentes, dependentes, consumidores patológicos. Devem ser tratados, e não encarcerados. No entanto, quem defende o tratamento em vez da prisão se opõe à internação compulsória do usuário porque, a seu ver, isso atenta contra a liberdade do indivíduo.
Esse é um debate que não chega a nada nem pode chegar. Se você for esperar que uma pessoa surtada aceite ser internada para tratamento, perderá seu tempo.
Pergunto: um pai, que interna compulsoriamente um filho em estado delirante, atenta contra sua liberdade individual? Deve, então, deixar que se jogue pela janela ou agrida alguém? Está evidente que, ao interná-lo, faz aquilo que ele, surtado, não tem capacidade de fazer.
Mas a discussão não acaba aí. Todas as pessoas que consomem bebidas alcoólicas são alcoólatras? Claro que não. A vasta maioria, que consome os milhões de litros dessas bebidas, bebe socialmente. Pois bem, com as drogas é a mesma coisa: a maioria que as consome não é doente, consome-as socialmente, e muitos desses consumidores são gente fina, executivos de empresas, universitários etc..
Só que a polícia quase nunca chega a eles, pois estes não vão às bocas de fumo comprar drogas. Sem correrem quaisquer riscos, as recebem e as usam. Ninguém vai me convencer de que os milhões de reais que circulam no comércio das drogas são apenas dinheiro de pé-rapado que a polícia prende nas favelas ou debaixo dos viadutos.
Outro argumento falacioso dos que defendem a descriminalização das drogas é o de que a repressão ao tráfico e ao consumo não deu qualquer resultado positivo. Pelo contrário -argumentam eles-, o tráfico e o consumo só aumentaram.
É verdade, mas, se por isso devemos acabar com o combate ao comércio de drogas, deve-se também parar de combater o crime em geral, já que, embora o sistema judicial e o prisional existam há séculos, a criminalidade só tem aumentado em todo o planeta. Seria, evidentemente, um disparate. Não obstante, esse é o argumento utilizado para justificar a descriminalização das drogas.
A maneira certa de encarar tal questão é compreender que nem todos os problemas têm solução definitiva e, por isso mesmo, exigem combate permanente e incessante.
A verdade é que, no caso do tráfico, como no da criminalidade em geral, se é certo que a repressão não os extingue, limita-lhes a expansão. Pior seria se agissem à solta.
Quantas toneladas de cocaína, crack e maconha são apreendidas mensalmente só no Brasil? Apesar disso, a verdade é que cresce o número de usuários de drogas e, consequentemente, a produção delas. Os traficantes têm plena consciência disso, tanto que, para garantir a manutenção e o crescimento de seu mercado, implantam gente sua nas escolas a fim de aliciar meninos de oito, dez anos de idade.
Por tudo isso, deve-se reconhecer que o combate ao tráfico é particularmente difícil, já que, nesse caso, a vítima -isto é, o consumidor- alia-se ao criminoso contra a polícia. Ou seja, ela inventa meios e modos para conseguir que a droga chegue às suas mãos, anulando, assim, a ação policial.
O certo é que este bate-boca não leva a nada. O fato mesmo é o seguinte: não há produção e venda de mercadoria alguma se não houver consumidor.
Só se fabricam automóvel e geladeira porque há quem os compre. O mesmo ocorre com as drogas: só há produção e tráfico de drogas porque há quem as consuma. Logo, a maneira eficaz de combater o tráfico de drogas é reduzindo-lhe o consumo.
E a maneira de conseguir isso é por meio de uma campanha de âmbito nacional e internacional, maciça, mostrando às novas gerações -principalmente aos adolescentes- que a droga destrói sua vida.
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Jornal do Brasil 21.12.2012
O infrator não é o usuário, mas o município.
Siro Darlan
Em pleno debate sobre a prevalência dos poderes da República, enquanto o Legislativo afirma ser o senhor dos mandatos de seus congressistas, a Suprema Corte diz que decisão deve ser cumprida. Embora ambos tenham suas razões, o que deve prevalecer é a Constituição que diz que todo poder emana do povo e em seu nome deve ser exercido. Portanto, a palavra final deve ser a do povo, que não foi ouvido senão para eleger, sem direito a “recall”.
A Justiça acaba de se manifestar sobre a polêmica do recolhimento compulsório. Embora a Constituição de 1988 determine que crianças e adolescentes tenham o direito á proteção integral, devendo ficar a salvo de toda forma de negligência, violência, crueldade e opressão, sendo obrigação do município a criação de programas de prevenção e atendimento especializado à criança e ao adolescente dependente de entorpecente e drogas afins, o magistrado desenterrou um decreto-lei do tempo da ditadura de 1938 para justificar sua adesão a essa limpeza étnica e social com o nome fantasia de internação compulsória.
Ao buscar amparo na legislação nazista então vigente, o magistrado atirou no que viu e acertou no que não viu. Só mesmo uma legislação de exceção poderia justificar essa prática perversa e revogar o Estatuto da Criança e do Adolescente, que determina que o poder público tem obrigação de proteger e socorrer tais cidadãos em quaisquer circunstâncias, não apenas privando-os de liberdade mas através de políticas públicas sociais que lhes garantam a inclusão em programas de auxílio à família, à criança e ao adolescente, incluindo-os em tratamento médico, psicológico ou psiquiátrico em regime hospitalar ou ambulatorial e inclusão em programa oficial de auxílio, orientação e tratamento a alcoólatras e toxicômanos.
Ora, até a prefeitura já se deu conta dessa política equivocada de exclusão social, remetendo a atenção às vítimas de drogas para a Secretaria de Saúde. Como pode a deusa Themis continuar com vendas nos olhos?
 * Siro Darlan Oliveira, desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, é membro da Associação Juízes para a Democracia. - sdarlan@tjrj.jus.br
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Correio da Cidadania 28.11.2012

Quem deu a Israel o direito de negar todos os direitos?
Eduardo Galeano[1]
Para justificar-se, o terrorismo de Estado fabrica terroristas: semeia ódio e colhe pretextos. Tudo indica que esta carnificina de Gaza, que segundo seus autores quer acabar com os terroristas, acabará por multiplicá-los.
 Desde 1948, os palestinos vivem condenados à humilhação perpétua. Não podem nem respirar sem permissão. Perderam sua pátria, suas terras, sua água, sua liberdade, seu tudo. Nem sequer têm direito a eleger seus governantes. Quando votam em quem não devem votar são castigados. Gaza está sendo castigada. Converteu-se em uma armadilha sem saída, desde que o Hamas ganhou limpamente as eleições em 2006.
 Algo parecido havia ocorrido em 1932, quando o Partido Comunista triunfou nas eleições de El Salvador. Banhados em sangue, os salvadorenhos expiaram sua má conduta e, desde então, viveram submetidos a ditaduras militares. A democracia é um luxo que nem todos merecem.
 São filhos da impotência os foguetes caseiros que os militantes do Hamas, encurralados em Gaza, disparam com desajeitada pontaria sobre as terras que foram palestinas e que a ocupação israelense usurpou. E o desespero, à margem da loucura suicida, é a mãe das bravatas que negam o direito à existência de Israel, gritos sem nenhuma eficácia, enquanto a muito eficaz guerra de extermínio está negando, há muitos anos, o direito à existência da Palestina.
 Já resta pouca Palestina. Passo a passo, Israel está apagando-a do mapa. Os colonos invadem, e atrás deles os soldados vão corrigindo a fronteira. As balas sacralizam a pilhagem, em legítima defesa.
 Não há guerra agressiva que não diga ser guerra defensiva. Hitler invadiu a Polônia para evitar que a Polônia invadisse a Alemanha. Bush invadiu o Iraque para evitar que o Iraque invadisse o mundo. Em cada uma de suas guerras defensivas, Israel devorou outro pedaço da Palestina, e os almoços seguem. O apetite devorador se justifica pelos títulos de propriedade que a Bíblia outorgou, pelos dois mil anos de perseguição que o povo judeu sofreu e pelo pânico que geram os palestinos à espreita.
 Israel é o país que jamais cumpre as recomendações nem as resoluções das Nações Unidas, que nunca acata as sentenças dos tribunais internacionais, que burla as leis internacionais, e é também o único país que legalizou a tortura de prisioneiros.
 Quem lhe deu o direito de negar todos os direitos? De onde vem a impunidade com que Israel está executando a matança de Gaza? O governo espanhol não conseguiu bombardear impunemente o País Basco para acabar com o ETA, nem o governo britânico pôde arrasar a Irlanda para liquidar o IRA. Por acaso a tragédia do Holocausto implica uma apólice de eterna impunidade? Ou essa luz verde provém da potência manda-chuva que tem em Israel o mais incondicional de seus vassalos?
 O exército israelense, o mais moderno e sofisticado do mundo, sabe a quem mata. Não mata por engano. Mata por horror. As vítimas civis são chamadas de “danos colaterais”, segundo o dicionário de outras guerras imperiais. Em Gaza, de cada dez “danos colaterais”, três são crianças. E somam aos milhares os mutilados, vítimas da tecnologia do esquartejamento humano, que a indústria militar está ensaiando com êxito nesta operação de limpeza étnica.
 E como sempre, sempre o mesmo: em Gaza, cem a um. Para cada cem palestinos mortos, um israelense. Gente perigosa, adverte outro bombardeio, a cargo dos meios massivos de manipulação, que nos convidam a crer que uma vida israelense vale tanto quanto cem vidas palestinas. E esses meios também nos convidam a acreditar que são humanitárias as duzentas bombas atômicas de Israel, e que uma potência nuclear chamada Irã foi a que aniquilou Hiroshima e Nagasaki.
 A chamada “comunidade internacional” existe? É algo mais que um clube de mercadores, banqueiros e guerreiros? É algo mais que o nome artístico que os Estados Unidos adotam quando fazem teatro?
 Diante da tragédia de Gaza, a hipocrisia mundial se ilumina uma vez mais. Como sempre, a indiferença, os discursos vazios, as declarações ocas, as declamações altissonantes, as posturas ambíguas rendem tributo à sagrada impunidade.
 Diante da tragédia de Gaza, os países árabes lavam as mãos. Como sempre. E como sempre, os países europeus esfregam as mãos. A velha Europa, tão capaz de beleza e de perversidade, derrama alguma que outra lágrima, enquanto secretamente celebra esta jogada de mestre. Porque a caçada de judeus foi sempre um costume europeu, mas há meio século essa dívida histórica está sendo cobrada dos palestinos, que também são semitas e que nunca foram, nem são, antissemitas. Eles estão pagando, com sangue constante e sonoro, uma conta alheia.
 PS: Este artigo é dedicado a meus amigos judeus assassinados pelas ditaduras latino americanas que Israel assessorou.
[1] Eduardo Galeano é escritor e jornalista Uruguaio, autor do livro As veias abertas da América Latina
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Observatório da Imprensa 20/11/2012
A “EPIDEMIA” DO CRACK
O cultivo científico da ignorância
Sylvia Debossan Moretzsohn
O jornalista vive mergulhado em sua rotina, ouvindo as fontes autorizadas de sempre, treinadas para falar o que se encaixa nas concepções prévias das pautas cotidianas. Está tão acostumado que passa a agir automaticamente, como se não fosse capaz de pensar.
De repente, se dá conta: não, as coisas não são tão simples assim.
E agora?
O depoimento da repórter Laura Capriglione, da Folha de S.Paulo (transcrito ao final deste artigo), num debate sobre a repressão aos usuários de crack, merece atenção especial pela rara coragem da autocrítica, muito reveladora sobre a formação – e as deformações – do jornalista e sobre as possibilidades de ruptura do círculo vicioso que se forma entre repórteres e fontes.
Antes de chegarmos a ele, tentemos apresentar as bases que sustentam esse questionamento.
A demonização das drogas
A enxurrada de reportagens sobre o uso do crack, que nos últimos anos volta e meia ganham capa e suítes nos principais jornais do país, converge para o sentido comum de aceitação e reverberação do discurso das autoridades: trata-se de uma epidemia que se espalha pelo país, que é extremamente letal e por isso exige intervenção imediata e articulada da polícia e da medicina, com a combinação de dois tipos de violência: a repressão a quem consome a droga nas ruas e a internação compulsória dos usuários.
O discurso terrorista contra o uso de drogas – certas drogas, que se alternam conforme a conjuntura – é recorrente ao longo da história e obedece a interesses políticos muito específicos, como a socióloga Rosa del Olmo apontou num precioso livrinho lançado no Brasil em 1990 (A face oculta da droga, Editora Revan). Não se trata de negar que as drogas fazem mal – evidentemente que sim, embora nunca devamos esquecer que as guerras do ópio, no século 19, foram travadas justamente em defesa do comércio dessas substâncias, considerando os interesses em jogo.
Drogas fazem mal, drogas ilícitas mais ainda, tendo em vista seus danos colaterais de corrupção e violência, tantas vezes fatal. O trabalho alienado faz um mal enorme, e disso pouca gente se lembra, embora estejamos todos voltados para a busca da felicidade e estimulados, permanentemente através da mídia, aos apelos para uma “mudança de estilo de vida” que, estranhamente, ignora os constrangimentos estruturais que nos levam a viver como vivemos, e às tentativas tantas vezes frustradas de escapar da infelicidade pelos mais diversos meios.
Demonizar as drogas é o melhor caminho para sedimentar a ignorância confortavelmente instalada na sala de estar. “Não ofenda, não contorne, não surpreenda o senso comum: enquanto as pessoas acreditarem que as drogas são um mal em si, mantém-se a zona de segurança”, escreveu neste Observatório o professor Luis Fernando Tófoli (ver “A imprensa entorpecida“), ao criticar uma edição do Jornal Nacional em que o âncora-símbolo da emissora arrematava uma reportagem sobre o crack e a internação compulsória dos usuários com o comentário de que “todo mundo diz que crack basta experimentar uma vez só e a pessoa fica viciada”:
“Mesmo com as fantasias apocalíptico-epidêmicas associadas ao crack, ainda assim é necessário corrigir a informação do jornalista e alertar ao leitor que ‘todo mundo’, nesse caso específico, está errado. Não existe uso de droga sem usuário e sem contexto. Por mais que uma substância possa ter, por sua farmacologia, um maior ou menor potencial para induzir dependência, não existem drogas com propriedades ‘mágicas’. É a combinação entre a substância, o momento de vida da pessoa e o contexto de consumo que causam ou impedem a adição. Nenhuma droga vicia por si e nem instantemente, e isso vale tanto para o crack e a heroína quanto para uma das drogas de maior potencial de dependência, o tabaco.”
As próprias reportagens deveriam sugerir alguma dúvida quanto a essa mistificação. Pois não é raro lermos sobre pessoas que “venceram o vício” ou que foram resgatadas das ruas após anos usando essa droga (ver aquiaqui). Além do mais, se o crack vicia ao primeiro contato e condena o indivíduo à morte em pouco tempo – quanto tempo, nunca se diz –, deveríamos estar assistindo a uma sucessão de cadáveres sendo carregados diariamente em carroças – mais ou menos como no tempo da gripe espanhola –, dada a quantidade de maltrapilhos aglomerados em determinadas regiões das grandes cidades que passam os dias se drogando.
Pelo contrário, o recente episódio de repressão no Parque União, uma das favelas da Maré, à beira da Av. Brasil, em 9/11 (ver aqui), mostrou gente muito ágil e lúcida, capaz de serpentear entre o tráfego intenso da via expressa para fugir da “acolhida” das autoridades. A corrida alucinada deveria sugerir alguma indagação sobre o motivo por que essas pessoas rejeitam tão desesperadamente a hipótese de ir para algum abrigo.
A construção do inimigo
Em uma passagem de A sociedade excludente, Jock Young sintetiza a funcionalidade do processo de demonização do “outro”, que recorrentemente se associa ao tema-tabu dos entorpecentes:
“A demonização é importante porque permite que os problemas da sociedade sejam colocados nos ombros dos ‘outros’, em geral percebidos como situados na ‘margem’ da sociedade. Ocorre aqui uma inversão costumeira da realidade causal: em vez de reconhecer que temos problemas na sociedade por causa do núcleo básico de contradições na ordem social, afirma-se que todos os problemas da sociedade são devidos aos próprios problemas. Basta livrar-se dos problemas e a sociedade estará, ipso facto, livre deles! Assim, em vez de sugerir, por exemplo, que grande parte do uso deletério de alto risco de drogas é causado por problemas de desigualdade e exclusão, sugere-se que, se nos livramos deste uso de drogas (diga não’, trancafiem os traficantes), não teremos mais nenhum problema."
A demonização das drogas, e desta droga em particular – que é mais simples porque seus viciados estão mais expostos, visíveis e identificáveis pela sua degradação física –, facilita a articulação do discurso clássico da repressão violenta a um discurso supostamente científico que legitima essa violência ao dizer que não há saída senão a internação compulsória. No domingo (18/11), O Globo repete a ideia ao reproduzir declaração do secretário de Segurança do Rio sobre essa gente que “perdeu a condição cidadã. Sem discernimento, vive miseravelmente entre ratos e baratas, abandonado e em situação deplorável. Basta olhar para perceber que ele precisa de acolhimento”.
Se não soubéssemos do que se tratava, poderíamos até imaginar que o secretário descrevia algum mendigo, esse personagem tão antigo quanto a própria história das cidades, desde a Idade Média.
O risco da adoção do discurso da internação compulsória – e nem vamos aqui discutir a ausência de estrutura para abrigar e tratar tanta gente – é precisamente este: sugere que o foco é um universo restrito de indivíduos e não demora a alcançar todos os que, por qualquer motivo, são incômodos ao convívio social. É o processo típico de construção do inimigo, que o jurista argentino Raúl Zaffaroni analisou em O inimigo no direito penal, apontando sua mais remota origem no conceito de hostis (o “inimigo” ou o “estranho”) do direito romano, que nunca desapareceu da realidade operativa do poder punitivo nem da teoria jurídico-penal: atravessa as épocas, “de cara limpa ou com mil máscaras”, e abrange desde o prisioneiro escravizado da Antiguidade até o imigrante ilegal – e potencialmente “terrorista” – dos dias de hoje, o traficante ou o drogado que vive em bandos. O processo é sempre o mesmo: retirar-lhes a condição de pessoas e classificá-los como entes perigosos ou daninhos para apresentá-los como inimigos da sociedade, de modo que a eles não se apliquem as garantias comuns aos demais cidadãos.
Zaffaroni contesta o argumento de que esse hostis contemporâneo possa ser submetido à contenção “apenas na estrita medida da necessidade” porque “a estrita medida da necessidade é a estrita medida de algo que não tem limites, uma vez que esses limites são estabelecidos por quem exerce o poder”:
"Como ninguém pode prever exatamente o que algum de nós – nem sequer nós mesmos – fará no futuro, a incerteza do futuro mantém aberto o juízo de periculosidade até o momento em que quem decide quem é o inimigo deixa de considerá-lo como tal. Com isso, o grau de periculosidade do inimigo– e, portanto, da necessidade de contenção – dependerá sempre do juízo subjetivo do individualizador, que não é outro senão o de quem exerce o poder."
Pensemos, só por hipótese, nos interesses de quem detém o poder e precisa limpar uma determinada região para “revitalizá-la” através de milionários projetos imobiliários.
De repente, a luz
No início do ano, o governo de São Paulo deflagrou uma espetacular operação de repressão à cracolândia instalada na região da Luz. Orientava-se pelo princípio de “dor e sofrimento” – quem sabe inspirado no “choque e pavor” da última guerra de George W. Bush –, que impediria os usuários de se fixarem em algum ponto da cidade, cortaria o fornecimento da droga e, ao provocar a síndrome da abstinência, os levaria “logicamente” a buscar o serviço de saúde.
No debate sobre “Mídia, Drogas e HIV“ promovido pelo Centro de Convivência É de Lei na quarta-feira (14/9), a jornalista Laura Capriglione relatou que foi durante a cobertura dessa operação que ela e outros colegas, antes acostumados ao conforto da apuração por telefone e ao discurso médico aparentemente coerente, se viram confrontados com uma realidade que desconheciam. Presenciaram a violência, começaram a andar junto com as pessoas obrigadas a circular, conversaram com elas e aos poucos foram desconstruindo a imagem preconcebida do usuário de crack como alguém desprovido de inteligência e capacidade de discernimento e vontade própria.
A rigor, não fizeram nada diferente do que deveriam fazer como repórteres: estar no local dos acontecimentos. Em outros tempos, era comum repórteres saírem às ruas sem pauta definida, para descobrirem coisas sobre o cotidiano da cidade. No caso da cracolândia, tão flagrantemente exposta há tanto tempo, o que os teria impedido de se aproximar daquela gente?
Talvez o preconceito, que Laura citou recorrentemente em seu depoimento. A facilidade de aceitação acrítica do discurso da autoridade – mais impositivo porque aparentemente científico – e a naturalização do viciado como uma não-pessoa, um “nóia”, um zumbi, que eventualmente poderia se tornar perigoso, como nas ocasiões em que ameaçavam os jornalistas e apedrejavam os carros de imprensa.
“Quantas vezes a gente viu aquela cena do carro da imprensa, do carro da televisão, sendo apedrejado pelos craqueiros violentíssimos? A gente viu essa cena um milhão de vezes, um zilhão de vezes... mas ninguém parou pra se perguntar por que é que aquelas pessoas apedrejavam os carros da imprensa. A maior parte apedrejava os carros da imprensa pelo único e acho que legítimo motivo que essas pessoas têm direito à própria imagem, coisa que não passava pela cabeça de alguém que julgava os caras desumanos demais.”
(Bem a propósito, em junho de 2011 o tema do direito à imagem chegou a ser discutido porque a Folha publicou na capa uma sequência de fotos de um homem grisalho e bem vestido, usando a droga e depois se afastando do local. “A gravata na cracolândia” não correspondia ao estereótipo do viciado em crack. Na crítica em sua coluna semanal, a ombudsman Suzana Singer rejeitou o argumento de que “sempre fizemos assim” com pessoas que se drogavam publicamente, o que apenas reiterava a falta de sensibilidade da redação no trato desse tema. Porém, como comentei aqui à época (ver “Alguém como nós na Cracolândia“), a cena só chamou a atenção porque ali estava exposto “alguém como nós”. O direito à imagem dos marginalizados nunca foi motivo de preocupação).
O monopólio da fala
“Quem, durante muito tempo, teve o monopólio da fala sobre os craqueiros foi exatamente a turma dos médicos, a turma dos psiquiatras, a turma das clínicas”, disse Laura Capriglione, apontando a articulação de interesses: “a maior parte dessas pessoas são também donas de clínicas, donas de entidades e são contratadas pelo poder público, são entidades que têm clínicas, convênios com a Secretaria da Saúde”. E este, segundo ela, era “um pequeno detalhe que passava totalmente despercebido da imprensa, que entrevistava médicos que o tempo inteiro estavam disponíveis para falar sobre os efeitos devastadores do crack na experiência de um dependente químico”.
Essa disponibilidade permanente é parte da estratégia de construção de um consenso no qual o repórter entra como um autômato, alguém a simplesmente reproduzir o discurso da fonte: “Se você ligar para eles à meia-noite e meia eles atendem o telefone e falam, olha, os efeitos são devastadores, e fazem aquela cara: de-vas-ta-dores, e tudo bem, e a gente escreve, devastadores...”.
Por que o repórter não é capaz de questionar? Talvez porque seus preconceitos estejam tão arraigados que bloqueiem a perspectiva da dúvida. Mas nada justifica a falta de percepção da solidariedade de interesses entre certas fontes e as autoridades do Estado.
O recurso a fontes alternativas
Laura reconhece que estava, como a maioria dos colegas, “contaminada por esse discurso médico”, mas ao mesmo tempo argumenta que a contrapartida custa a aparecer. O que é uma forma de atribuir às fontes a responsabilidade pelo sentido do noticiário, como se tudo se resumisse a um problema de “falta de comunicação” ou de preparo adequado para lidar com a imprensa.
Fontes alternativas, entretanto, não faltam. No caso, a Escola Nacional de Saúde Pública, da Fiocruz, é uma delas, muito bem qualificada e estruturada, responsável, aliás, pela revista que trouxe a síntese do debate de que Laura participou (ver aqui).
O problema talvez esteja na própria formação dos jornalistas, acostumados ao reino das aparências e a reproduzir o senso comum que fantasia soluções simples para questões complexas.
Mas a boa formação é apenas o começo. Porque a melhor formação do mundo é impotente diante de determinada orientação editorial. E, mesmo que a orientação editorial seja crítica, será sempre preciso levar em conta os preconceitos do público, especialmente no caso de estigmas como o do consumo de drogas. Quebrá-los é tão necessário quanto difícil, porque a ignorância é sempre mais confortável: a simplificação maniqueísta é apaziguadora, enquanto a dúvida nos perturba e nos obriga a um esforço incômodo de reflexão.
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FSP 05/07/2012

A cura gay

Contardo Calligaris
Em 1980, a homossexualidade sumiu do "Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais". Em 1990, ela foi retirada da lista de doenças da Organização Mundial da Saúde.
Médicos, psiquiatras e psicólogos não podem oferecer uma cura para uma condição que, em suas disciplinas, não é uma doença, nem um distúrbio, nem um transtorno. Isso foi lembrado por Humberto Verona, presidente do Conselho Federal de Psicologia, numa entrevista à Folha de 29 de junho.
No entanto, o deputado João Campos (PSDB-GO), da bancada evangélica, pede que, por decreto legislativo, os psicólogos sejam autorizados a "curar" os homossexuais que desejem se livrar de sua homossexualidade.
Um pressuposto desse pedido é a ideia de que os psicólogos saberiam como mudar a orientação sexual de alguém (transformá-lo de hétero em homossexual e vice-versa), mas seriam impedidos de exercer essa arte --por razões ideológicas, morais, politicamente corretas etc.
Ora, no estado atual de suas disciplinas, mesmo se eles quisessem, psicólogos e psiquiatras não saberiam modificar a orientação sexual de alguém --tampouco, aliás, eles saberiam modificar a "fantasia sexual" de alguém (ou seja, o cenário, consciente ou inconsciente, com o qual ele alimenta seu desejo).
Claro, ao longo de uma terapia, alguém pode conseguir conviver melhor com seu próprio desejo, mas sem mudar fundamentalmente sua orientação e sua fantasia.
Por via química ou cirúrgica (administração de hormônios ou castração real --todos os horrores já foram tentados), consegue-se diminuir o interesse de alguém na vida sexual em geral, mas não afastá-lo de sua orientação ou de sua fantasia, que permanecem as mesmas, embora impedidas de serem atuadas. A terapia pela palavra (psicodinâmica ou comportamental que seja) tampouco permite mudar radicalmente a orientação ou a fantasia de alguém.
O que acontece, perguntará João Campos, nos casos de homossexualidade com a qual o próprio indivíduo não concorda? Posso ser homossexual e não querer isso para mim: será que ninguém me ajudará?
Sim, é possível curar o sofrimento de quem discorda de sua própria sexualidade (é a dita egodistonia), mas o alívio é no sentido de permitir que o indivíduo aceite sua sexualidade e pare de se condenar e de tentar se reprimir além da conta.
Por exemplo, se eu não concordo com minha homossexualidade (porque ela faz a infelicidade de meus pais, porque sou discriminado por causa dela, porque sou evangélico ou católico), não posso mudar minha orientação para aliviar meu sofrimento, mas posso, isso sim, mudar o ambiente no qual eu vivo e as ideias, conscientes ou inconscientes, que me levam a não admitir minha orientação sexual.
Campos preferiria outro caminho: o terapeuta deveria fortalecer as ideias que, de dentro do paciente, opõem-se à homossexualidade dele. Mas o desejo sexual humano é teimoso: uma psicoterapia que vise reforçar os argumentos (internos ou externos) pelos quais o indivíduo se opõe à sua própria fantasia ou orientação não consegue mudança alguma, mas apenas acirra a contradição da qual o indivíduo sofre. Conclusão, o paciente acaba vivendo na culpa de estar se traindo sempre --traindo quer seja seu desejo, quer seja os princípios em nome dos quais ele queria e não consegue reprimir seu desejo.
Isso vale também e especialmente em casos extremos, em que é absolutamente necessário que o indivíduo controle seu desejo. Se eu fosse terapeuta no Irã, para ajudar meus pacientes homossexuais a evitar a forca, eu não os encorajaria a reprimir seu desejo (que sempre explodiria na hora e do jeito mais perigosos), mas tentaria levá-los, ao contrário, a aceitar seu desejo, primeiro passo para eles conseguirem vivê-lo às escondidas.
O mesmo vale para os indivíduos que são animados por fantasias que a nossa lei reprova e pune. Prometer-lhes uma mudança de fantasia só significa expô-los (e expor a comunidade) a suas recidivas incontroláveis. Levá-los a reconhecer a fantasia da qual eles não têm como se desfazer é o jeito para que eles consigam, eventualmente, controlar seus atos.
Agora, não entendo por que João Campos precisa recorrer à psicologia ou à psiquiatria para prometer sua "cura" da homossexualidade. Ele poderia criar e nomear seus especialistas; que tal "psicopompos"? Ou, então, não é melhor mesmo "exorcistas"?
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Porque será que o Ministro da Saúde Alexandre Padilha, mudou de opinião? Conveniência ou convicção?

Para terminar leiam o artigo que ele escreveu em setembro de 2011!
Crack - solução é acolher e reconstruir vidas

www.pt.org.br
Alexandre Padilha (Ministro da Saúde)
Roberto Tykanori
No início dos anos 1980, quando os primeiros casos de HIV foram registrados no País, a comunidade médica e as estruturas de saúde desconheciam a forma mais eficaz de tratar os pacientes, cujo número crescia em progressão geométrica.

O dedo foi posto na ferida. Assim, apesar de todos os avanços ainda necessários, demos passos para começar a enfrentar essa epidemia mundial.
Hoje é mais do que evidente que o abuso e a dependência de drogas no Brasil -em especial do álcool e do crack- se transformaram numa nova chaga social.
As vítimas acumulam-se, com graves repercussões na ocupação do espaço urbano, na exclusão econômica e social, na rede de saúde e na vida das famílias. Dados de pesquisadores da Universidade Federal de São Paulo evidenciaram a complexidade que é tratar esses pacientes.
Durante 12 anos acompanharam 107 dependentes do crack. Após esse período, 32,8% estavam abstinentes, 20,6% haviam morrido (a maioria, pela violência),10% encontravam-se presos, 16,8% continuavam usando crack e cerca de 20% estavam desaparecidos, num destino incerto para quem esbarra em algum momento da vida com essa realidade.
A dependência, inclusive do crack, reúne situações sociais muito diversas: desde recursos para suportar a exclusão até estratégias para se sentir incluído.
Nas estatísticas estão crianças na rua que se iniciaram nas drogas para suportar a fome e o frio, os trabalhadores rurais que acreditam que a pedra lhes pode fazer suportar toneladas a mais de cana-de-açúcar, profissionais liberais pressionados pelo desempenho no trabalho e jovens que querem alcançar, cada vez mais rapidamente, a inserção na turma. Para todos é crucial construir novos projetos e redescobrir sentido para a vida.
As raízes do problema são externas ao campo da saúde pública, mas sabemos que a rede de ambulatórios, de hospitais e de profissionais pode interferir no curso da dependência. Estamos convencidos de que uma abordagem bem-sucedida está relacionada a uma reestruturação do Sistema Único de Saúde (SUS) que possibilite aos Estados, aos municípios, à sociedade civil atuar em conjunto com o Ministério da Saúde, de forma articulada, no enfrentamento do crack e de outras drogas. O SUS, pela sua capilaridade e pelo seu compromisso com a defesa da vida, deve estar mais presente junto aos indivíduos, grupos e no ambiente social onde se inicia ou se perpetua a dependência de drogas.
Para uma ação eficaz é preciso distinguir o que precisa ser distinto: por um lado, reprimir e criminalizar, de forma vigorosa, o tráfico de drogas e o contrabando; por outro, acolher de forma humanizada e possibilitar o acesso dos usuários às diversas terapias, salvando vidas e evitando mortes precoces.
Uma resposta da área de saúde poderá prevenir sofrimento pessoal, conflitos familiares, violência e acidentes urbanos.
Somente com a estruturação de uma rede de serviços que ofereça abordagens diferentes para diferentes indivíduos é que será possível aumentar as chances dos dependentes de reconquistarem sua vida e de a sociedade ganhar de volta seus cidadãos. 
Para ter sucesso o tratamento deve considerar e se adequar a necessidades distintas. Qualquer proposta que se paute em apenas uma forma de ação ou um tipo de serviço está fadada ao fracasso. Ou seja, não pode ser só ambulatorial, nem somente clínicas de internação ou apenas espaços de internação prolongada.
Por isso o Ministério da Saúde propôs uma parceria à sociedade com Estados e municípios para uma nova rede de serviços. Num mesmo território serão ofertados unidades básicas / Programas de Saúde da Família, consultórios volantes para abordagem e cuidado das pessoas em situação de rua, enfermarias especializadas em pacientes dependentes de álcool e drogas, unidades de acolhimento para pessoas que necessitem de internação prolongada, parcerias com entidades do terceiro setor e com comunidades terapêuticas. Além disso, vai capacitar os serviços de urgência e emergência como portas de entrada possíveis. E também ampliar para 24 horas o funcionamento dos Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas.
O tema é polêmico, mas não nos devemos paralisar diante de dúvidas. Toda iniciativa que se paute pelo respeito aos direitos individuais e pela proteção à vida deve ser defendida, até mesmo com o recurso à internação involuntária, na forma da lei. Mas nem ela - muito menos o uso da força - pode ser o centro da estruturação dos serviços de saúde e da estratégia de saúde. Nesse sentido, saudamos o recente protocolo organizado pelo Conselho Federal de Medicina, que apresenta uma abordagem contemporânea e equilibrada do tema.
A qualificação profissional e o uso de tratamentos bem estruturados são fundamentais, mas uma abordagem multissetorial será decisiva para o sucesso desta empreitada. Nós, profissionais de saúde, precisamos estar cada vez mais preparados para proporcionar os cuidados necessários, porém sabemos que é imprescindível o envolvimento da sociedade e de outras políticas públicas -como educação, qualificação profissional, moradia, esportes e convívio comunitário- para produzir resultados duradouros.
Essa não é uma tarefa nova. Ao longo dos seus 22 anos, o SUS enfrentou vários desafios que também exigiram abordagem multissetorial. E mostrou-se capaz de enfrentá-los quando uniu a capacidade de quem sofre e agregou quem estava disposto a se mobilizar.
Este é o desafio: criar uma grande frente de saúde pública, comprometida com tratamento, a recuperação e a reinserção dos milhares de crianças, jovens e adultos machucados pelo crack e outras drogas. Estamos prontos para pôr o dedo nessa ferida e começar a cicatrizá-la. Dessa forma estaremos cumprindo nossa missão.
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Revista Periferia
APRESENTAÇÃO
PERIFERIA Dossiê Drogas trata de uma questão polêmica e pouquíssimo abordada em publicações acadêmicas. Contamos, em geral, apenas com as “opiniões”, e a conversa pobre da mídia, com seus editoriais preconceituosos; mais interessada em repetir o lugar comum a que seus leitores/espectadores estão acostumados. Isto é grave, especialmente para educadores, que lidam com crianças, jovens e suas famílias, e frequentemente têm que responder a questões nesta área, sem a informação que a pesquisa acadêmica pode trazer.
Começamos com um recorte igualmente polêmico, um extrato do 1º Simpósio Carioca de Estudos sobre a Maconha, de 1983, (publicado pela Ed. Brasiliense, em 1985) naquele período, ainda complicado, do regime ditatorial, organizado pelo Centro de Debates Maria Sabina, para colocar em questão tanto a legislação quanto o tratamento policial e judicial que vigoravam em relação ao uso dessa “droga”.  Esta introdução é justificada, pois vem mostrar que, depois de tanto tempo, as coisas pouco mudaram.  Trata-se de depoimentos, falas transcritas do Simpósio, e é interessante acompanhar a continuidade da leitura feita pelo antropólogo Gilberto Velho – a quem queremos homenagear – e do jurista Lizst Vieira, com os artigos atuais, que publicamos em seguida, do sociólogo Michel Misse e do jurista André Barros em parceria com a socióloga Marta Peres. Também é interessante acompanhar a fala provocativa de Mauro Sá Rego Costa com o trabalho científico, acadêmico e rigoroso do canadense Kenneth Tupper – também Doutor em Educação – sobre as possibilidades de uso educacional de algumas substâncias psicoativas. Concluímos com o artigo da Beatriz Labate, sobre o périplo mundial das leituras e mudanças jurídicas em relação à utilização religiosa não-indígena da ayahuasca e um  artigo na perspectiva dos estudos cognitivos sobre os chamados  “estados alterados de consciência” por Antonio José de Meneses Gonçalves, doutor em História das Ciências, das Técnicas e Epistemologia. 
Mauro Sá Rego Costa, Silvia Pimenta Velloso Rocha, Neiva Vieira da Cunha
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O lugar do Estado na questão das drogas: O paradigma proibicionista e as alternativas.
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Folha de São Paulo 06.05.2012
Dialética da mudança
As certezas nos dão tranquilidade; pô-las em questão equivale a tirar o chão de sob nossos pés.
Ferreira Gullar
Certamente porque não é fácil compreender certas questões, as pessoas tendem a aceitar algumas afirmações como verdades indiscutíveis e até mesmo a irritar-se quando alguém insiste em discuti-las. É natural que isso aconteça, quando mais não seja porque as certezas nos dão segurança e tranquilidade. Pô-las em questão equivale a tirar o chão de sob nossos pés.
Não necessito dizer que, para mim, não há verdades indiscutíveis, embora acredite em determinados valores e princípios que me parecem consistentes. De fato, é muito difícil, senão impossível, viver sem nenhuma certeza, sem valor algum.
No passado distante, quando os valores religiosos se impunham à quase totalidade das pessoas, poucos eram os que os questionavam, mesmo porque, dependendo da ocasião, pagavam com a vida seu inconformismo.
Com o desenvolvimento do pensamento objetivo e da ciência, aquelas certezas inquestionáveis passaram a segundo plano, dando lugar a um novo modo de lidar com as certezas e os valores. 
Questioná-los, reavaliá-los, negá-los, propor mudanças às vezes radicais tornou-se frequente e inevitável, dando-se início a uma nova época da sociedade humana. Introduziu-se o conceito não só de evolução como o de revolução.
Naturalmente, essas mudanças não se deram do dia para a noite, nem tampouco se impuseram à maioria da sociedade. O que ocorreu de fato foi um processo difícil e conflituado em que, pouco a pouco, a visão inovadora veio ganhando terreno e, mais do que isso, conquistando posições estratégicas, o que tornou possível influir na formação de novas gerações, menos resistentes a visões questionadoras.
A certa altura desse processo, os defensores das mudanças acreditavam-se senhores de novas verdades, mais consistentes porque eram fundadas no conhecimento objetivo das leis que governam o mundo material e social.
Mas esse conhecimento era ainda precário e limitado. Basta dizer que, até começos do século 20, ignorava-se a existência de microrganismos -como vírus e bactérias-, o que inviabilizava tratar doenças como a tuberculose.
Costumo dizer que o poeta Augusto dos Anjos foi assassinado pelo tratamento médico de uma pneumonia: submeteram-no a sangrias e lavagens intestinais, debilitando-o mais, ou seja, anularam-lhe as defesas naturais e o desidrataram.
A descoberta dos vírus e bactérias como causas de muitas e graves enfermidades possibilitou a produção dos antibióticos, o que representou um enorme avanço na cura desse tipo de doenças. 
Igualmente significativas foram as mudanças nos terrenos econômico e político, resultantes da crítica ao capitalismo e da luta dos trabalhadores em defesa de seus direitos. O comunismo se impôs como uma alternativa à democracia burguesa e influi até hoje na visão ideológica de parte considerável da sociedade contemporânea.
Todos esses fatos -que são apenas uns poucos exemplos do que tem ocorrido- tornam indiscutível a tese de que a mudança é inerente à realidade tanto material quanto espiritual, e que, portanto, o conceito de imutabilidade é destituído de fundamento.
Ocorre, porém, que essa certeza pode induzir a outros erros: o de achar que quem defende determinados valores estabelecidos, em contraposição a outros considerados inovadores, está indiscutivelmente errado.
Em outras palavras, bastaria apresentar-se como inovador para estar certo. Será isso verdade? Os fatos demonstram que tanto pode ser como não.
Mas também pode estar errado quem defende os valores consagrados e aceitos. Só que, em muitos casos, não há alternativa senão defendê-los. E sabem por quê? Pela simples razão de que toda sociedade é, por definição, conservadora, uma vez que, sem princípios e valores estabelecidos, seria impossível o convívio social. Uma comunidade cujos princípios e normas mudassem a cada dia seria caótica e, por isso mesmo, inviável.
Por outro lado, como a vida muda e a mudança é inerente à existência, impedir a mudança é impossível. Daí resulta que a sociedade termina por aceitar as mudanças, mas apenas aquelas que de algum modo atendem a suas necessidades e a fazem avançar.
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Carta a uma mãe
Maria Aparecida Affonso Moysés[1]
Desculpe meu atrevimento em te escrever, pois não nos conhecemos pessoalmente. Talvez este seja o problema: não nos conhecemos. Então me atrevo novamente e peço: esqueça por instantes tudo que já ouviu falar de mim.
Nunca disse que a ciência médica não propicia avanços na qualidade de vida das pessoas, ou que não há crianças e adolescentes com dificuldades para aprender ou para agir/reagir segundo os padrões mais aceitos.
Você nunca me ouviu dizer que os pais de jovens com dificuldades jogam seus problemas sobre os filhos, são os culpados de tudo e só querem se desresponsabilizar. Sei muito bem o quanto sofrem, buscando o melhor.
Sei que você sabe que não tenho filhos, mas isso não é defeito nem impede que compreenda e acolha crianças e pais, suas dores físicas e afetivas. Aliás, nesses mais de 30 anos como pediatra, não me lembro de alguma mãe falar que não se sentia bem atendida por mim. Afinal, o que busco na formação de futuros médicos é que sejam capazes de se identificar com medos e dores do outro sem que precisem passar pela mesma situação.
Então, o  que tenho defendido como médica, pesquisadora e professora de pediatria e que provoca tantos mal entendidos e ressentimentos entre nós?
Dizer que não há comprovação científica de que existam doenças que comprometam exclusivamente aprendizagem e comportamento não é dizer que não existam pessoas com dificuldades, sofrendo por isso.  Não aceitar que uma doença inata atinja 10% da população é obrigação de médicos bem formados; em medicina, só usamos porcentagem para falar de doenças socialmente determinadas!
Comprovar uma doença exige um rigor científico não encontrado nos autores que defendem a existência de dislexia e Tdah. Esse rigor é diferente de inventar testes/exames para provar a doença. Ao contrário: comprovada a doença, buscam-se exames que permitam diagnosticar com mais segurança; do mesmo modo, melhorar com tratamento não prova que estava doente!
Daí os questionamentos em todo o mundo, por pesquisadores de diferentes áreas. E aí, algo estranho: ao invés do debate acadêmico, que é o que mais acontece em ciência, tenta-se desqualificar os que questionam, inclusive com agressões grosseiras. Você sabe, a ciência só avança pelo questionamento, nenhum conhecimento é eterno.
Desculpe, essa é uma longa discussão teórica. Por favor, voltemos a seu filho. Aceite meu convite e vamos tentar vê-lo e ouvi-lo como ele é.
A maioria das crianças diagnosticadas como disléxicas são absolutamente normais, que apenas aprendem de modos diferentes. Aliás, não aprendemos todos do mesmo modo. Dizer isso não significa abandoná-lo à própria sorte (ou azar); ao contrário. Defendo que TODA CRIANÇA TEM DIREITO DE APRENDER  E É CAPAZ, devendo ser atendida em suas necessidades e especificidades.
Você já se perguntou por que seu filho precisa ter um laudo de doente (sem eufemismos: se está no DSM é doença!) para ter acesso a outros modos de ensinar? Não é esquisito que o diagnóstico de uma doença que só atinja a linguagem escrita seja baseado na própria linguagem escrita? Mesmo em exames mais sofisticados como o PET, a pessoa deve ler um texto, que já se sabe que ela lê mal. Se o tratamento é pedagógico, por que falar em doença? Desculpe a intimidade, só mais uma pergunta: além do acesso a outros modos de ensinar, que benefício real esse diagnóstico trouxe pra sua família?
Tenho certeza que você luta para que seu filho aprenda e não simplesmente para que não seja reprovado! Não devemos lutar pelo direito de todos, sem necessidade de laudos ou rótulos, sem estigmas? Vamos lançar esta campanha?
Vamos olhar agora como foi feito o diagnóstico de TDAH em seu filho? Por meio de um questionário com 18 perguntas, mal formuladas, vagas, a serem respondidas de modo ainda mais vago (bastante, demais, pouco). Com seis respostas positivas, está selado o diagnóstico de uma doença neurológica, que deverá ser tratada com psicotrópicos por toda a vida.
Você não estranha que uma doença neurológica não precise se manifestar em todos os contextos da vida, mas apenas em dois? Qual a lógica para “atenção no videogame” não anular “desatenção na escola”?  Apenas como exemplo, vejamos algumas perguntas: Parece não estar ouvindo quando se fala diretamente com ele (quem fala o que?); Evita, não gosta ou se envolve contra a vontade em tarefas que exigem esforço mental prolongado (o que é esforço mental prolongado? Geralmente o que não gosto ou não sei!); Distrai-se com estímulos externos; Responde as perguntas de forma precipitada antes delas terem sido terminadas. .
 Na busca de defeitos, não há circunstâncias, interesses, modulações; não há vida. A transformação de padrões sociais em biológicos, em critérios de doença neurológica, fica ainda mais patente em perguntas como: Sai do lugar na sala de aula ou em outras situações em que se espera que fique sentado. Perguntemos: QUEM espera que fique sentada?
Para complicar, 50% dos que têm dislexia também têm Tdah e aí precisam tomar psicotrópico, aquele que deixa a criança contida, quieta, sem sonhos pois focada, que pode provocar arritmia, hipertensão, parada cardíaca, dependência química etc.  Você já leu a bula do remédio que dá pro seu filho?
A maioria dos jovens com esses diagnósticos são normais, apenas não se enquadram em padrões sociais que te convenceram que são normas biológicas. É cruel acabar com questionamentos, devaneios e utopias, com as possibilidades de outros futuros. Pode ser que seu filho esteja sofrendo assim.
Porém, existe sim um número pequeno, mas real, de jovens que têm dificuldades mais sérias.
Eis a outra face da moeda, ainda mais perversa.  Ao invés de buscar entender o que acontece com eles, de pesquisar causas e modos de  superação, admitindo que ainda não se sabe qual o problema de cada um, estão sendo todos enquadrados em diagnósticos que os aprisionam sem resolver o problema real.
Talvez este seja o caso de seu filho.
Está na hora de abandonar certezas e ter a coragem de admitir que a medicina não sabe por que alguns jovens têm dificuldades extremas.
Talvez você deva se perguntar se, junto com seu filho, também não é refém de diagnósticos equivocados e terapias que não tratam.
Se quiser continuar essa conversa, pode contar comigo.
Um abraço
Cida Moysés

[1] Maria Aparecida Affonso Moysés é pediatra, Professora Titular de Pediatria da UNICAMP. Coordena o Laboratório de Estudos sobre Aprendizagem, Desenvolvimento e Direitos do Centro de Investigações em Pediatria (CIPED), na Unicamp. É fundadora do Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade (www.medicalizacao.com.br
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MEDICALIZAÇÃO:
ELEMENTO DE DESCONSTRUÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS[1]
Maria Aparecida Affonso Moysés [2]
Cecília Azevedo Lima Collares [3]
“O corpo é uma realidade biopolítica; a medicina é uma estratégia biopolítica”. 
Michel Foucault
 As sociedades ocidentais apresentam, em sua história recente, um ponto de inflexão fundamental para sua própria conformação, tal como as conhecemos hoje. Nesse período, próximo a oitenta anos, na transição entre os séculos 18 e 19, ocorreram vários processos, de intensa ebulição política, todos articulados entre si, brotando no mesmo chão social, histórico e político.
Aqui, tomamos como alicerces de nossa reflexão, três desses processos: a revolução francesa; o surgimento de uma nova anatomia política nos modos de vigiar e punir; e a constituição, pela medicina, de seu estatuto de ciência moderna.
É na articulação entre os dois primeiros processos, no mesmo terreno que os possibilitou, que pode brotar e resistir a concepção de que todos os seres humanos têm os mesmos direitos, inalienáveis. Trata-se, como todos os conceitos e concepções, de uma construção histórico-cultural, e não de algo natural, inato ao ser humano, ou inerente às sociedades humanas. Nem natural, nem biológico, menos ainda genético. Uma construção cultural que somente pode existir quando enxergo “o outro” como um sujeito como eu, com ele me identifico, o que faz com que seja afetada quando ele é atingido, sentindo e sabendo que “quem cala sobre teu corpo, consente na tua morte”.
A revolução burguesa apregoa a igualdade
Em um mundo regido pela concepção de “herança divina”, dividido em estamentos estanques entre si – nobres e plebeus – a desigualdade constituía, não apenas um elemento natural, mas um de seus pilares. Em mundo regido pela desigualdade, não há espaço para direitos humanos, pois direitos de todos pressupõem igualdade entre todos.
A revolução burguesa, ao se contrapor a essa concepção de mundo fundado na desigualdade, toma, por um de seus lemas, exatamente a igualdade. Uma igualdade que jamais se concretizaria, mas, mesmo assim, mantém até hoje seu status de alicerce de uma nova ordem social. Status tanto mais importante quanto mais distante dele estiver a pessoa, cumprindo, assim, plenamente, seu papel ideológico. Um ideário se torna e se mantém hegemônico ao ser capaz de permear os modos de pensamento que regem a vida cotidiana de homens e mulheres.
Esta aparente contradição entre discurso e realidade necessita criar instrumentos e processos que expliquem o paradoxo, transformando a contradição em algo indesejável, porém natural, inevitável, porque decorrente de “defeitos humanos”.
Os preconceitos serão um dos principais instrumentos a serviço desse ideário; ao tomarem por objeto, na maioria das vezes, questões de gênero, etnia e classe social, abarcam quase a totalidade das desigualdades, justificando-as e transformando-as em motivos para chacotas. Assim, naturalizam-se as desigualdades e promove-se o retorno da culpa/responsabilidade sobre a própria vítima. Em uma tosca aproximação, “é a volta do cipó de aroeira no lombo de quem já levou”.
Esse o motivo para que os preconceitos assumam tanta relevância nas sociedades burguesas. Nunca se criaram e difundiram tantos preconceitos como nos últimos dois séculos. Até então, a ordem social era assumidamente fundada na desigualdade; portanto, dispensava explicações ou justificativas. Era assim e ponto. Em contraste, a nova ordem se baseava – e ainda se baseia – na igualdade e seus ideólogos alardearam – e ainda alardeiam – uma promessa que sabem que não pode ser cumprida sem rupturas com essa mesma velha nova ordem. [4]
Porém, ao afirmar, reafirmar e reiterar a igualdade entre todos, para sua própria preservação, a ideologia ainda hoje dominante cria, do outro lado da moeda, o chão onde vicejará a concepção de direitos humanos. Para todos!
Esse processo, que poderíamos chamar de efeitos colaterais do discurso da igualdade é fortalecido pelas interações com as transformações que ocorrem, na mesma época, na anatomia política da punição.
O sistema penal assume nova tarefa: reeducar
 É impossível pensar a evolução das formas de controle e punição na sociedade ocidental sem nos basearmos nos estudos de Michel Foucault (1996). Suas análises mostram uma história sem rupturas, sem cortes epistemológicos, as diferentes formas se sucedendo pela sua transformação; daí, as mais atuais trazem em si, como elementos inerentes a elas, vestígios de todas as formas que a precederam.
Nessa história, podem-se identificar os eixos que percorrem todas as transformações ocorridas: por um lado, a suavização da pena, com ampliação de sua abrangência; por outro, profundas mudanças no plano discursivo.
Essa evolução, com grandes mudanças e disputa entre projetos distintos, ocorreu entre 1760 e 1840; período em que estão acontecendo intensas transformações na ordem econômica e social na França, com a derrocada do Antigo Regime. A relevância desse processo se mantém até os dias de hoje, pois os sistemas judiciários e penais do mundo ocidental atual ainda trazem suas marcas.
Para Foucault, a reforma penal pode nascer pela junção histórica de dois vetores, de duas lutas interligadas, uma contra o superpoder do soberano e a outra contra o infrapoder das ilegalidades conquistadas e toleradas.
Até a revolução francesa, os crimes eram considerados como de lesa-majestade, isto é, sempre voltados contra o soberano, que tinha o poder de julgar e definir a punição a ser aplicada pelo carrasco. A punição consistia basicamente no suplício do corpo e era um grande espetáculo público, com um pretendido efeito amedrontador e, assim, preventivo de novos crimes. Ao apagar das luzes do século XVIII, o suplício vai sendo extinto, na primeira transformação visível do sistema, transformação essa engendrada por dois processos simultâneos: a supressão do espetáculo punitivo e o deslocamento do objeto da punição, do corpo biológico para o espírito.
 “O desaparecimento dos suplícios é, pois, o espetáculo que se elimina; mas é também o domínio sobre o corpo que se extingue.” (Foucault, 1996: 15)
A supressão do espetáculo punitivo deve-se, basicamente a razões políticas, revelando uma estratégia de contornar as imprevisíveis e indesejadas reações populares. Igualando-se ao crime a ser castigado, muitas vezes até mais selvagem e bárbaro, o suplício tornava iguais, aos olhos dos espectadores, criminoso e carrasco, juiz e assassino; ao final, atingia-se resultado contrário ao pretendido, com a inversão de papéis e transformação de juízes e carrasco em objeto de ódio popular e dos supliciados em mártires, glorificados e dignos de piedade e admiração. Ao expor com frequência os populares à violência e ferocidade das quais não se queria afastá-los, se não por princípios ao menos pelo temor, o espetáculo das punições terminava por incentivar a violência. (Moysés, 2002)
O teatro dos suplícios vai sendo extinto, substituído pelo que se apresenta como atos e procedimentos puramente administrativos. Tem início o processo que irá resultar na criação das instituições totais, especialmente a prisão e o manicômio. O sistema judicial desloca para o espaço externo a si próprio a efetivação da punição por ele determinada. A execução do castigo, o cumprimento da pena torna-se procedimento de aparato administrativo e burocrático. (Foucault, 1996; Goffman, 1974).
Articulada a esse contexto, ocorre também outra mudança, de grande relevância para nossa reflexão: a transformação do discurso sobre a punição, pois não se trata mais de punir, mas de corrigir, reeducar, curar. Somente se pode pensar em direitos de condenados se o objetivo é recuperar e não mais supliciar.
Essas transformações demandam um outro processo, que desloque do corpo o alvo do castigo. Modifica-se o objeto da punição, altera-se a relação castigo-corpo. O corpo não mais deve ser o alvo, pois se busca atingir algo que se situa além dele. O castigo agora deve buscar atingir a alma, dirigindo-se ao coração, ao intelecto, à vontade, às disposições. O suplício do corpo, as mil e uma mortes em uma única pena, a lenta e planejada agonia saem de cena e o corpo cede espaço a um novo objeto de punição: a alma.
Foucault ressalta que se deve olhar para além das aparências, buscando dar visibilidade ao que se oculta por trás dos discursos sobre corpos biológicos e almas incorpóreas. O real objeto em disputa é a anatomia política do momento histórico.
“O homem de quem nos falam e que nos convidam a liberar já é em si mesmo o efeito de uma sujeição bem mais profunda que ele. Uma ‘alma’ o habita e o leva à existência, que é ela mesma uma peça no domínio exercido pelo poder sobre o corpo. A alma, efeito e instrumento de uma anatomia política; a alma, prisão do corpo.” (Foucault, 1996: 31)
O deslocamento do objeto de punição, do corpo para a alma é precedido por outra substituição, essa sim mais ampla, pois se refere ao próprio conceito de crime, ou seja, do que seja passível de punição. É no inicio do século XIX que ocorre a grande mudança de concepção sobre o objeto “crime”, porém sem uma nova conceitualização formal. A justiça constrói para si própria os instrumentos para que possa julgar não mais apenas o crime cometido, mas os antecedentes do criminoso, seus desejos, suas intenções. Desde então, ainda ocorrerão mudanças até os dias de hoje, porém sem nenhuma transformação conceitual.
“Porém julgam-se também as paixões, os instintos, as anomalias, as enfermidades, as inadaptações, os efeitos de meio ambiente ou de hereditariedade. Punem-se as agressões, mas, por meio delas, as agressividades, as violações e, ao mesmo tempo, as perversões, os assassinatos que são, também, impulsos e desejos”. (Foucault, op cit: 21)
Inicia-se a construção de uma jurisprudência respaldada pela medicina, que tem propósitos mais amplos do que apenas a punição dos atos criminosos, voltando-se ao controle do indivíduo. Os laudos periciais psiquiátricos e psicológicos que atestam a condição de inadaptados, incapazes, incapacitados, doentes, deficientes etc. possibilitam que o poder de punir se exerça não mais sobre o que fizeram, sobre seus crimes, mas sobre os indivíduos, o que são ou possam vir a ser.
Impossível não lembrar que, nos dias de hoje, um condenado, mesmo tendo cumprido integralmente sua pena, somente será solto se for carimbado por um psicólogo ou psiquiatra após uma avaliação. Uma avaliação que – acredita-se – seja capaz de perscrutar sua alma, suas intenções e garantir que não voltará a cometer novo crime no futuro. Uma avaliação preditiva, quase quiromâncica.
Erving Goffman e Franco Basaglia, ao estudarem as instituições totais – manicômios e prisões – analisam que tais instituições são conformadas de modo que, ao ingressar em uma delas – mais adequado dizermos ser ingressado –, jamais se retorna à condição anterior de inocência pré-condenação; o máximo que se consegue é sair de uma para entrar em outra, exatamente por não serem, de fato, organizadas para a reeducação, a cura, que permearão os discursos desde então.
“Por acaso não é certo que os regulamentos sobre os quais se organizam as instituições da marginalização estão estruturados de modo que a reabilitação não seja possível já que, em definitivo, estes indivíduos, uma vez reabilitados, ficariam à margem, expostos continuamente ao perigo de cair novamente em novas infrações de uma norma que para eles nunca teve uma função protetora e sim repressiva? (Basaglia, 1986: 91)
Nesse curto período de 80 anos, o que está de fato ocorrendo é a disputa entre três estratégias do poder de punir: a) a do antigo regime, que consistia no direito do soberano de punir, com características de vingança, concretizadas nos cerimoniais de suplício; b) o direito de punição do corpo social, com o objetivo de requalificar o transgressor do pacto como sujeito de direito; c) o direito de punição dos aparelhos administrativos (a prisão) pela coerção dos indivíduos, através de técnicas e treinamentos solitários, corporais, secretos.
O terceiro modelo é o que se impõe, reinstalando a punição sobre o corpo, não mais como suplício, mas pela coerção institucional. A prisão, em sua nova forma, possibilita a organização de um saber individualizante, sobre o criminoso, seu comportamento, os perigos virtuais que encerra em si, pela observação cotidiana. Esse saber fundamentará a reorganização de todas as instituições, voltadas agora para a construção de corpos disciplinados e obedientes, corpos dóceis.
            “É dócil um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado. (...) Esses métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma relação de docilidade-utilidade, são o que poderíamos chamar as ‘disciplinas’.” (Foucault, 1996: 126)
Acontecendo na mesma esfera temporal e política que a revolução francesa, a reforma judiciária e penal, desvela a disparidade entre discursos e práticas, criando mecanismos que permitam distinguir crimes conforme a inserção social de quem os comete. Afinal, em uma sociedade alicerçada na desigualdade, “um sistema penal deve ser concebido como um instrumento para gerir diferencialmente as ilegalidades, não para suprimi-las a todas”.(Foucault, op cit: 82). Após a nova conceituação do que será considerado crime, é necessário criar gradações das infrações, codificando as toleráveis das intoleráveis.
Parafraseando Giordano Bruno, uma nova ordem política exige um novo homem.
O que se oculta por trás de tanta normatização e tipificação do que seja passível de punição? Mais uma vez, busquemos no espaço fora do foco das luzes, no contexto político da época.
Nesse mesmo período, pelo aumento das riquezas e de sua circulação, cresce um novo tipo de crime, voltado não mais aos direitos do soberano, mas aos bens. A sonegação de impostos e o contrabando e outros modos de lutar contra o fisco são ultrapassados, em importância econômica, por roubos e pilhagens de bens da burguesia, que até então realizava e incentivava a “ilegalidade dos direitos”.
Com a ascensão da burguesia ao poder, ocorre a reestruturação da “economia das ilegalidades”, esfera em que a nova ordem sócio-política mostrará mais explicitamente seu caráter de classe. Desnuda-se a concepção de sociedade fundada na desigualdade.
“A ilegalidade dos bens foi separada da ilegalidade dos direitos. Divisão que corresponde a uma oposição de classes, pois de um lado, a ilegalidade mais acessível às classes populares será a dos bens transferência violenta das propriedades; de outro, a burguesia, então, se reservará a ilegalidade dos direitos: a possibilidade de desviar seus próprios regulamentos e suas próprias leis; de fazer funcionar todo um imenso setor da circulação econômica por um jogo que se desenrola nas margens da legislação margens previstas por seus silêncios, ou liberadas por uma tolerância de fato. [...] A burguesia se reservou o campo fecundo da ilegalidade dos direitos”. (Foucault, op cit: 80)
Igualdade no plano das idéias, nos discursos, sim. Já no mundo dos homens, nem tanto...
Novamente é impossível não associar ao que vemos acontecer, reiteradamente, a cada dia, um suceder de fraudes e corrupções, ocupando por apenas 15 minutos as manchetes, para logo cair no esquecimento, em justificativas vãs.
Se para a elite econômica e política tudo se esvai quase que instantaneamente, para os homens comuns, a prisão, mesmo que como punição por atos como roubar um litro de leite para alimentar a família.
“E essa grande redistribuição das ilegalidades se traduzirá até por uma especialização dos circuitos judiciários: para as ilegalidades de bens para o roubo os tribunais ordinários e os castigos; para as ilegalidades de direitos fraudes, evasões fiscais, operações comerciais irregulares jurisdições especiais com transações, acomodações, multas atenuadas, etc...” (Foucault, op cit: 80)
Assim, ao mesmo tempo em que prepara o solo para que brotem as concepções de direitos humanos, a anatomia política do poder de vigiar e punir elabora instrumentos que criam condições para as contestações desses mesmos direitos.
Afinal, os homens comuns cometem tantas pequenas ilegalidades que os presídios vivem superlotados, o que impossibilita as ações re-educativas dos discursos – com exceção das desenvolvidas pelo crime organizado – e as transforma em espaço perene de conflitos. Daí a se produzir e disseminar pelo senso comum – codinome dos modos de pensar a vida segundo a ideologia dominante – a idéia de que “criminosos não têm direitos” é uma passagem muito rápida.
Obviamente não se pode pensar que esta dualidade seja inerente ao – ou de responsabilidade do – sistema judicial e penal. As diferentes instituições refletem o momento histórico e político da sociedade em que se inscrevem, em sofisticado e intrincado jogo de poderes que “cedem com uma mão e retiram com a outra”, a segunda sempre mais ágil.
É necessário recorrermos ao campo da história das mentalidades para que se apreenda que esses processos se engendram ao longo de muito tempo; um novo modo de pensar o mundo e os homens produzirá mudanças concretas séculos depois. O capitalismo somente pode surgir em terreno preparado mais de quinhentos anos antes, quando a usura deixou de ser considerada pecado pela igreja. Do mesmo modo, agora em lapso de tempo muito menor, o conceito de que todos os homens têm direitos que não desaparecem quando alguém comete infrações, tem convicções políticas distintas da dominante ou luta contra regimes e governantes, somente pode vicejar em sociedades que pregam – mesmo que não efetivem de fato – a igualdade entre todos e a reeducação como tarefa do sistema judiciário e penal.
Também é importante escapar das armadilhas do maniqueísmo, para apreender que avanços e retrocessos costumam coexistir no mesmo ideário, na mesma racionalidade, nas mesmas ações políticas. Assim, são inegáveis as transformações que ocorreram nos modos de punir, porém seria ingenuidade acreditar que o objetivo era apenas a humanização das penas.
O mesmo processo em que se avança constitui os instrumentos que controlarão tais avanços. A igualdade será cerceada pelos preconceitos; as mudanças do sistema penal, que, inegavelmente, suavizaram as penas, serão moduladas por sua distribuição desigual. Os discursos sobre igualdade e sobre o projeto reeducativo das prisões criarão as condições para que surja a concepção de direitos humanos, porém os mesmos preconceitos e desigualdade modulada construirão os direitos humanos desiguais, modulados, apenas para os que merecem.
A medicalização acalma corações e mentes
No mesmo espaço temporal, geográfico e político em que ocorreram a revolução burguesa e a reforma do sistema judiciário e penal, a medicina passará por intensas transformações. Em menos de cinqüenta anos, se constituirá a medicina moderna, com seu estatuto de ciência. Primeiro campo da ciência que tomará por objeto os seres humanos, as relações entre eles e deles com a natureza, constituirá a raiz epistemológica de todas as ciências do homem.
Também aqui poderíamos discorrer sobre os avanços científicos e tecnológicos da medicina, propiciando inegáveis melhorias na qualidade de vida, logicamente desigualmente distribuídas. Em outras palavras, falar do lado bom da moeda. Entretanto, para nossa reflexão, interessam seus efeitos colaterais.
Estamos nos referindo ao processo de medicalização da vida.
Considerando-se o tema abordado – direitos humanos –, é necessário um parêntese. Não se pode confundir ciência médica, atuação profissional, nem medicalização com participação ou conivência com qualquer afronta aos direitos de qualquer pessoa; mais especificamente, não se pode discutir um campo da ciência a partir da atuação de profissionais que facilitam, legitimam ou acobertam tortura. Isto não é medicalização, é tortura. Sem adjetivos ou amenizações, tortura. Torturar não é medicalizar, inscreve-se na esfera do crime mais covarde e brutal.
Para melhor apreendermos como e porque a medicalização torna-se o outro lado dos avanços da ciência médica, é necessária uma breve recuperação de alguns momentos dessa história e os estudos de Michel Foucault (1980) são, mais uma vez, base para nossas reflexões. Criticar o caráter essencialmente autoritário, porque normativo, da medicina demanda a identificação das raízes históricas que possibilitam essa forma de entender e de atuar sobre o mundo.
O método clínico conforma e é conformado pela historicidade dos conhecimentos sobre o ser doente, sobre o corpo doente; enfim, da medicina que se inscreve no terreno da positividade e como tal é apreendida. Conhecimentos que só podem se constituir pelo descolamento da metafísica e deslocamento do olhar para a visibilidade da morte; nessas condições, a doença se transforma, tornando-se legível e plenamente enunciável, expondo-se à dissecção da linguagem e do olhar.
Na articulação entre linguagem, espaço e morte, constitui-se o método clínico. Desde seus primórdios, a medicina traz em si a busca de uma linguagem que possibilite a equivalência absoluta entre o visível e o enunciável, entre o significado (a doença) e o significante (o sintoma); uma equivalência absoluta porque sem resíduos. A linguagem constitui ponto central na construção do método clínico: dizer o que se vê, mas também, fazer ver, dizendo o que se vê. Sob uma linguagem aparentemente superficial, presa a descrever o visível, revela-se na linguagem médica, o ato de desvelamento. Desvelamento do interior, tornando legível o invisível. A medicina moderna se constitui na coexistência e disputa entre concepções distintas sobre doença. Reajustes do olhar, mudanças de foco, de local, representam mudanças conceituais importantes, porém jamais cortes epistemológicos. Sem rupturas, o método clínico traz em si elementos de todos os que o precederam. (Moysés, 2000)
No decorrer desse processo de constituição da medicina científica, têm importante papel as epidemias. A “medicina das epidemias”, que se dedica privilegiadamente a seu estudo, será reconhecida e fortalecida pelo Estado, em função dos enormes prejuízos econômicos delas decorrentes.
No final do século XVIII, começa a ser organizada a estrutura que permitirá uma nova forma de experiência médica, mais adequada ao estudo das epidemias e à elaboração de propostas de intervenção: médicos e cirurgiões são designados, em cada região, para acompanhar as epidemias que surjam, em constante troca de informações.
Porém, para essa nova organização, é imprescindível a constância da atuação, que deve ser coercitiva. Surge, assim, a polícia médica.
“Só poderia haver medicina das epidemias se acompanhada de uma polícia: vigiar a instalação das minas e dos cemitérios, obter, o maior número de vezes possível, a incineração dos cadáveres, em vez de sua inumação, controlar o comércio do pão, do vinho, da carne, regulamentar os matadouros, as tinturarias, proibir as habitações insalubres; seria necessário que depois de um estudo detalhado de todo o território, se estabelecesse, para cada província, um regulamento de saúde para ser lido na missa ou no sermão, todos os domingos e dias santos, e que diria respeito ao modo de se alimentar, de se vestir, de evitar as doenças, de prevenir ou curar as que reinam”. (Foucault, 1980: 28)
As preocupações com as desastrosas conseqüências das epidemias, tanto no plano sócio-político como econômico, criam condições para que surjam propostas de educação de hábitos de higiene para os pobres, tendo por tarefa “civilizar os novos bárbaros”. Inicia-se a construção doutrinária do movimento que viria a ser denominado Puericultura. (Boltanski, 1974)
O conhecimento médico tem condições, nesse momento, de se institucionalizar, construindo para si o local de onde enuncia seu julgamento e saber. A medicina faz coincidir seu espaço com todo o espaço social, atravessando-o e ocupando-o plenamente. Iniciam-se discussões sobre a relevância da presença generalizada dos médicos na sociedade, seus olhares cruzando-se e formando uma rede, exercendo uma vigilância constante, em todos os espaços físicos e temporais. Nascimentos e mortes são registrados, iniciando o controle estatístico. Normatizam-se as condutas adequadas, referentes a alimentos, vestuários, habitações, educação física e moral.
Está pronto o chão da medicalização da sociedade.
Sobre isto, é melhor ouvir Michel Foucault na íntegra:
            “Os anos anteriores e imediatamente posteriores à Revolução viram nascer dois grandes mitos, cujos temas e polaridades são opostos; mito de uma profissão médica nacionalizada, organizada à maneira do clero e investida, ao nível da saúde e do corpo, de poderes semelhantes aos que este exercia sobre as almas; mito de um desaparecimento total da doença em uma sociedade sem distúrbios e sem paixões, restituída à sua saúde de origem. A contradição manifesta dos dois temas não deve iludir: tanto uma quanto a outra destas figuras oníricas expressam como que em preto e branco o mesmo projeto da experiência médica. Os dois sonhos são isomorfos: um, narrando de maneira positiva a medicalização rigorosa, militante e dogmática da sociedade, por uma conversão quase religiosa e a implantação de um clero da terapêutica; o outro, relatando esta mesma medicalização, mas de modo triunfante e negativo, isto é, a volatilização da doença em um meio corrigido, organizado e incessantemente vigiado, em que, finalmente, a própria medicina desapareceria com seu objeto e sua razão de ser”. (Foucault, 1980: 35)
Assim, a medicina estuda doenças e técnicas de cura, porém amplia seu objeto, ao tomar para si, o homem saudável, o que significa olhar o homem não doente e definir o homem modelo. Atribuindo-se a autoridade normativa sobre a vida e as relações, individuais e em sociedade, muda o foco de seu olhar: se até o século XVIII, a medicina refere-se à saúde, no século XIX privilegia a normalidade.
Com essa mudança, a medicina está apta a abranger toda a vida do ser humano, na doença e na saúde; todas as suas relações com outro homem ou com a natureza. Esse movimento, segundo Guilhon de Albuquerque (1978), permitirá à medicina seu papel normatizador de todas as relações do homem, de sua vida inteira enfim. Ao definir como objeto o par de oposições, saúde/doença, a medicina poderá transitar de um pólo a outro do par, sem constrangimentos, em movimento plenamente aceito e endossado pela sociedade.
Esse movimento inscreve-se no processo de transformações de todas as práticas sociais, repercutindo sobre as noções de criança, família, adequando as estruturas políticas e sociais à nova ordem que surge. (Ariès, 1978)
Em seus estudos sobre as relações entre saúde e sociedade, Cecília Donnangelo discute as conseqüências e os modos de se concretizar desse projeto de medicalização nos tempos atuais. A extensão da prática médica como elemento que traz em si, inevitavelmente, a extensão da normatividade e, portanto, da medicalização constitui um dos pontos privilegiados em sua análise.
            “No que se designa aqui por extensão da pratica médica há que destacar pelo menos dois sentidos que devem merecer atenção: em primeiro lugar, a ampliação quantitativa dos serviços e a incorporação crescente das populações ao cuidado médico e, como segundo aspecto, a extensão do campo da normatividade da medicina por referência às representações ou concepções de saúde e dos meios para se obtê-la, bem como às condições gerais de vida”. (Donnangelo, 1976:33)
Novamente nos defrontamos com a impossibilidade de maniqueísmos. A mesma ampliação da rede de saúde, o maior acesso às imunizações e às terapias de rehidratação oral, assim como outras conquistas da população, carregam consigo a medicalização.
Entretanto, o processo de medicalização é mais perverso, pois atinge inclusive pessoas que não têm acesso aos benefícios da medicina, perpassando seu ideário, de modo que enxergam um mundo medicalizado sem jamais terem usufruído os avanços médicos. Para eles, só resta “esperar aqui na terra o que Jesus prometeu”.
Em pleno terceiro milênio, a medicina mantém o mesmo discurso, com as mesmas promessas de salvação e felicidade, embora sua impossibilidade de realizá-las esteja se evidenciando mais e mais.
 “Ao povo restam os ‘milagres’ médicos e os milagreiros populares. De fato, se economicamente e politicamente ele foi o grande excluído do ‘milagre’ só lhe restou a procura de outros santos. As Instituições Médicas têm sido, assim, um ‘santo remédio’ para os males da saúde do povo”. (Luz, 1986: 19)
Após sucessivos movimentos de aproximação, podemos agora avançar nossas reflexões para as conseqüências da medicalização sobre os direitos humanos.
A medicalização desloca problemas coletivos para a esfera do individual; problemas sociais e políticos para o campo médico. E o que significam esses deslocamentos? A biologização e, conseqüentemente, a naturalização desses problemas.
A medicalização ocorre no interior de uma concepção de ciência em que tudo, no mundo da natureza ou no mundo dos homens, pode – e deve – ser transformado em variáveis, em quantificações; uma concepção em que o social é reduzido a mais uma variável, tornado abstrato, imponderável e imutável. Nesse paradigma, saúde e doença são determinadas pelas relações do corpo biológico do hospedeiro com o ambiente, relações essas que são tornadas neutras, assépticas. Relações biológicas, naturalizadas. Esse paradigma, ainda hegemônico em todos os campos da ciência, enxerga, cada vez mais, o ser humano quase como um corpo apenas biológico, determinado por seus genes.
A esse paradigma, contrapõe-se um outro, em que o social é concreto, histórico, construído pelos homens, portanto mutável; nele, o processo saúde-doença é apreendido como resultante da inserção social das pessoas, da qualidade (ou falta de) de suas vidas. Aqui não há espaço para a medicalização; aqui, tenta-se combatê-la, ou ao menos minimizá-la, com todos desafios postos pelo fato de que, como já apontado, uma crítica à medicalização costuma significar um ato medicalizante, especialmente se realizado por um profissional da saúde.
Para a concepção positivista, dominante no campo médico, não é difícil transformar conflitos sociais em questões meramente biológicas; aliás, nos dias de hoje, mantendo a conexão com os avanços científicos, são deslocados preferencialmente para o campo da biologia molecular.
A história das sociedades ocidentais, nos últimos dois séculos, mostra que em períodos de conturbação social, a ciência substituiu a igreja na tarefa de fornecer os critérios para identificar os “infratores”. Assim, ateus hereges e bruxas foram transformados em loucos, criminosos, agressivos, disfuncionais.
As ciências da saúde, particularmente a medicina e a psicologia, têm desenvolvido esse papel com grande competência. Exatamente porque os profissionais exercem seu papel sem se darem conta, pois se fossem preparados para agir conscientemente não seriam tão eficientes.
E como as ciências da saúde resolvem os conflitos sociais e políticos? Naturalizando-os. Basta lembrar as grandes contribuições da medicina e da psicologia nos anos 1960, período em que praticamente todos os valores foram contestados pela juventude. Nessa década, “comprovou-se” que a agressividade era biologicamente determinada por cérebros disfuncionais e a solução proposta e implantada para a violência nos guetos foi a psicocirurgia, eufemismo para lobotomia; também foi “provado” que a inteligência é geneticamente determinada e que os negros são, naturalmente, inferiores aos brancos; “provou-se”, ainda, que geneticamente as mulheres desenvolvem menos o raciocínio matemático e o abstrato, o que explicaria sua maior dificuldade de inserção no mercado de trabalho, particularmente nos cargos de chefia. Isto sem falarmos das teorias de Lombroso e, em especial, de suas recentes releituras.
Na atualidade, o quadro se repete, até amplificado. Medicaliza-se o medo de viver em cidades violentas, assim como a própria violência, desconectada da exclusão social e de uma vida sem perspectivas. Tentam nos reduzir a seres estritamente biológicos. Células sem contexto, sem cultura. Genes atemporais, sem história, sem política.
A medicalização – que, deve ser ressaltado, não é realizada apenas pela medicina, mas por todas as ciências da saúde e outros campos que, mesmo sem saber, empreguem o método clínico – cumpre uma tarefa fundamental para a manutenção de tudo que já está posto no mundo dos homens. Ao se biologizar um problema, transformando-o em algo “natural, inevitável”, isenta-se todas as instâncias nele envolvidas. A sociedade, com suas desigualdades, os governantes e suas opções, tudo é escamoteado pelo fato – talvez seja melhor falar em azar – de que existem defeitos que incidem como se aleatoriamente, sem determinação social. Um ideário perfeito para que tudo permaneça como está.
Como já apontamos, a noção de direitos é datada e situada, como diria Paulo Freire, e não tem espaço em um território biologizado. A medicalização constitui, portanto, elemento primordial na desconstrução de direitos.
A medicalização ainda constrói o terreno “cientificista”, onde se enraizará a maior parte dos preconceitos – que justificarão a desigualdade, deslocando sua causa para fatores individuais – e dos modos de operar do sistema judiciário, que subtraem o que aparentemente havia sido conquistado.
 “A normatização da vida tem por corolário a transformação dos problemas da vida em doenças, em distúrbios. O que escapa às normas, o que não vai bem, o que não funciona como deveria... tudo é transformado em doença, em problema individual. Afasta-se a vida, para sobre ela legislar, muitas vezes destruindo-a violenta e irreversivelmente. E os profissionais, com sua formação acrítica e a-histórica, exercem, a maioria sem se dar conta, seu papel de vigilantes da ordem. Crentes nas promessas de neutralidade e objetividade da ciência moderna, não sabem lidar com a vida, quando se defrontam com ela”. (Moysés e Collares, 2002: 4)
Assim, no processo de medicalização e conseqüente des-responsabilização social e política, os profissionais da saúde desempenharão papel fundamental, constituindo o último elo da corrente, exatamente aquele que concretiza e opera o autoritarismo da ciência, aquele que exclui ao definir prioridades, perdendo, ao final, o estranhamento quando frente a frente com desigualdades.
“Um pouco de possível, senão eu sufoco”
Estas reflexões não falam do inevitável, menos ainda do natural; ao contrário, falam de algo histórica e culturalmente construído. Têm por objetivo buscar as raízes do que aí está, para poder melhor enfrentá-lo, para superá-lo. Não são pessimistas; existem exatamente pela firmeza na busca de se integrar a um esforço coletivo na construção de uma nova ordem social, que não se baseie na desigualdade, na exclusão, elementos motrizes dos não-direitos de não-cidadãos.
Embora considerados pessimistas, profetas do inexorável, Foucault, Deleuze e Canguilhem não apresentam situações sem possibilidades de transformações. Ao analisarem as formas de organização da sociedade, com seus jogos políticos de poder e saber tramados por seres humanos, especialmente ao longo dos dois últimos séculos, apontam insistentemente para a necessidade urgente de rupturas epistemológicas, que inventem novas possibilidades de tessitura, circulação e apropriação dos conhecimentos.
Não se trata de pacientemente, passivamente esperar por essas rupturas, mas de se engajar em sua constituição, buscando ativamente se engajar nesse trabalho coletivo de tecitura de novos paradigmas, que saibam que “não se ditam, cientificamente, normas à vida” (Canguilhem, 1982:185)
Também não se trata de, enquanto não se constituem esses novos paradigmas, acreditar que nada temos a fazer. É pouco, muito pouco, mas podemos interferir na formação dos profissionais, propiciando-lhes o acesso a concepções críticas, dialéticas da ciência. Discutir com os estudantes, futuros profissionais, os processos de medicalização e suas raízes históricas, talvez seja um bom começo, para que possam, pelo menos, optar por inventarem novos modos de atuar, em compasso com novos modos de levar a vida. Podemos fazer o pouco, desde que não percamos de vista nossos horizontes, muito mais distantes.
Talvez um bom ponto de partida seja termos em mente, frente a nossos alunos, dar-lhes condições para que possam fazer suas opções, de modo que deles se possa dizer, um dia, “mas o doutor nem examina, chamando o pai de lado, lhe diz logo em surdina, que o mal é da idade e pra tal menina não há um só remédio em toda a medicina”.
Afinal, segundo Deleuze (1992), até mesmo Foucault teria dito “Um pouco de possível, senão eu sufoco”.
Bibliografia:
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Moysés, M.A.A. A institucionalização invisível. Crianças que não-aprendem-na-escola. Campinas/São Paulo: Mercado de Letras/Fapesp, 2001
Moysés, M.A.A. e Collares, C.A.L. Rotular, classificar, diagnosticar. A violência dos laudos. Jornal do GTNM-RJ (Grupo Tortura Nunca Mais), agosto 2002

[1] Texto apresentado no II Seminário de psicologia e Direitos Humanos, promovido pelo CRP-RJ em 2006 e publicado originalmente em “Direitos Humanos? O que temos a ver com isso?”, organizado pela Comissão de Direitos Humanos do CRP-RJ, em 2007.
[2] Professora Titular em Pediatria Social, Faculdade de Ciências Médicas, Unicamp.
[3] Professora Associada, Livre-Docente em Psicologia Educacional, Faculdade de Educação, Unicamp (aposentada).
[4] Os estudos de Agnes Heller (1989) sobre a vida cotidiana e seus modos de pensamento são muito importantes para o entendimento da importância dos preconceitos para a manutenção da ordem social burguesa.
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O crack na versão cor-de-rosa
Cada vez mais, mulheres integram as estatísticas de dependentes da droga que é epidemia no Brasil
Fernanda Rodrigues
O consumo de entorpecentes é hoje um dos grandes problemas de saúde pública no Brasil. O crack – droga que vem da pasta-base da cocaína, é refinada e misturada ao bicarbonato de sódio e à água até virar uma pedra – atingiu, primeiro, os moradores de rua da cidade de São Paulo e, agora, já é responsável por quase 40% das internações por dependência química em todo o país. Os dados são da Secretaria Nacional Antidrogas (Senad). O levantamento, realizado nos Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas, mostra que o crack, depois do álcool, é a droga que mais leva as pessoas para o tratamento.
As mulheres, que são protagonistas de tantos dramas, também figuram entre os usuários do crack. O baixo custo e a ação rápida dessa droga provocam reações mais destrutivas no sexo feminino. O psiquiatra e especialista em dependência química Valdir Campos reforça que a genética, os hormônios e todo o contexto biológico e social favorecem uma absorção e eliminação diferente da substância nas mulheres. A epidemia do crack que vivemos atualmente passa pelos corredores de hotéis e casas de prostituição, onde, muitas vezes, a droga é moeda de troca e chega à classe média e média alta tendo como usuárias jovens sedentas por riscos e cheias de insegurança.
A destruição do crack entre as mulheres no Estado de Minas Gerais cresceu de maneira preocupante nos últimos anos. Segundo o Centro Mineiro de Toxicomania (CMT), entre 2000 e 2009 houve aumento de 79,5% da quantidade de mulheres que procuraram ajuda para se livrar do vício. O volume de internadas pelo Sistema Único de Saúde (SUS) por consumo de substâncias psicotrópicas, como crack e cocaína, aumentou 76% no Estado, passando de 25 para 44, entre 1999 e 2007.
As mulheres que se envolvem com o crack deixam para trás uma bagagem cheia de sonhos. Elas, que costumam ser o pilar da família, não conseguem nem lutar para continuar próximas dos filhos. Com uma vida desregrada, muitas também estão mais vulneráveis a todo tipo de violência e doenças sexualmente transmissíveis. Uma pesquisa do Departamento de Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) mostrou que usuários de drogas são mais sujeitas à infecção pelo vírus HIV e outros males ligados ao sexo porque têm um comportamento sexual, em média, mais intenso. Além disso, eles também usam menos preservativos.
Entre os danos provocados pelo uso do crack estão os problemas respiratórios causados pela inspiração de partículas sólidas, a perda de apetite, a falta de sono e a agitação motora. A dificuldade de alimentação pode levar à desnutrição, à desidratação e à gastrite. Outros sintomas são lábios rachados, cortes e queimaduras nos dedos e nas mãos.
De acordo com Valdir Campos, as mulheres estão mais vulneráveis a uma overdose e são as principais vítimas da comorbidade, que seria a combinação de duas ou mais doenças na mesma pessoa. A dependência alcoólica e a depressão, por exemplo. A faixa etária mais comum dessas usuárias é a de 15 aos 18 anos. Lutar contra todo tipo de drogas, desde as ilegais, passando pelas que são vendidas com receita médica até as consideradas lícitas, é hoje um fantasma que ronda as famílias e aterroriza os pais. O especialista alerta que, mesmo antes de se ter o filho, é preciso cuidar para que as possibilidades de contato dele com o tóxico sejam evitadas. Para o psiquiatra, o exemplo de hábitos de adultos que convivem com crianças e adolescentes faz toda a diferença na postura que vão ter com relação às escolhas que precisam fazer na vida.
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Drogas: Brasil ou Portugal?
Pedro Abramovay
Rio -  “Sei que está em festa, pá / Fico contente / E enquanto estou ausente / Guarda um cravo para mim / Eu queria estar na festa, pá / Com a tua gente / E colher pessoalmente / Uma flor no teu jardim.”
O usuário de drogas é um criminoso? Ou devemos pensar em tratá-lo de outras maneiras? Só de ouvir estas perguntas, muitos se recusam a debater. É sempre assim quando a conversa é sobre drogas. As pessoas espalham o pânico e não aceitam encontrar soluções reais.
Drogas são um problema grave demais para não ser levado a sério. A lógica do pânico quer nos fazer acreditar que uma política eficiente é a que prende mais e apreende drogas. Ora, se estamos prendendo e apreendendo, mas a violência e o consumo de drogas continuam, é porque esse não é o caminho correto.
A maioria dos 125.000 presos por tráfico nunca cometeu um crime violento ou usou armas e portava pequenas quantidades. Na verdade estão muito mais para usuários do que para traficantes. A nossa lei não diferencia bem quem é usuário e quem é traficante. Usuário é o rico. Traficante é o pobre. Portugal descriminalizou o consumo de todas as drogas, estabeleceu claramente quem é usuário e quem é traficante.
Quem apostou no pânico perdeu. Despencaram as mortes por overdose, pois o problema foi finalmente enfrentado sob a ótica da saúde; o consumo se manteve — até caiu entre os mais jovens —, e a polícia deixou de gastar energia com os usuários e pôde finalmente se organizar para enfrentar o crime organizado.
Vamos continuar com a nossa política que vem dando tão errado ou vamos tentar, pelo menos neste tema, transformar o Brasil num imenso Portugal?

Pedro Abramovay é professor de Direito da FGV-Rio, ex-secretário nacional de Justiça e coordenador do projeto Banco de Injustiças
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Situação irregular
Maria Lucia Karam (*)

Continuam acontecendo no Rio de Janeiro operações nas quais crianças e adolescentes que vivem nas ruas são conduzidos para o que a Prefeitura chama de “sistema de abrigamento (sic) compulsório”. A resolução nº 20 de 27 de Maio de 2011 da Secretaria Municipal de Assistência Social determina a internação compulsória de crianças e adolescentes que “na avaliação de especialistas, estiverem comprometidas com o uso do crack e outras drogas psicoativas”. Esse “sistema de abrigamento (sic) compulsório” foi anunciado como mais uma medida de suposta "proteção" à infância, ao estilo da antiga "doutrina da situação irregular", já afastada da lei brasileira, mas ainda ilegitimamente presente na cartilha de muitas autoridades.
A lei brasileira determina a municipalização da política de atendimento às crianças, e, portanto, a existência de programas comunitários e oficiais de orientação e apoio às famílias dessas crianças (art. 88 e 101 do Estatuto da Criança e do Adolescente). A lei brasileira determina que as prefeituras promovam programas oficiais de auxílio, orientação e tratamento a alcoólatras e toxicômanos (art. 101, VI do Estatuto da Criança e do Adolescente). Tais programas, no entanto, não existem. As unidades ditas de “acolhimento” não são clínicas de tratamento de dependentes de drogas. Não há tratamento. O que há é apenas a privação da liberdade. 
Crianças e adolescentes pobres são perseguidos e “recolhidos” porque as autoridades insistem em dizer que eles estariam em "situação irregular". Mas, na verdade, quem está em situação irregular são os governos que não garantem os direitos fundamentais dessas crianças e adolescentes. Por que crianças e adolescentes permanecem perambulando pelas ruas? Onde estão as escolas de qualidade e de horário integral? Onde está a política que deve garantir que todas as pessoas tenham condições materiais para poder viver com dignidade?
Em uma democracia todos têm direitos assegurados na Constituição e nas leis. Crianças e adolescentes, vivendo em lares ou em situação de rua, dependentes de drogas ou não, são sujeitos de direitos, devendo ser respeitados como cidadãos e não recolhidos como lixos humanos em “situação irregular”. O pânico criado em torno do crack serve de pretexto para a concretização do indisfarçável objetivo de “limpeza” das ruas, afastando-se das vistas “sensíveis” dos auto-intitulados “cidadãos de bem” e dos tão esperados turistas os “incômodos” miseráveis que, sem condições mínimas de sobrevivência, sem amparo, sem assistência, sem moradia, sem formação educacional, sem lazer, perambulam pelas ruas sem destino e encontram nas drogas – crack ou outras – um dos poucos alívios para suas privações e sofrimentos.
A proibição às drogas tornadas ilícitas não impede que crianças e adolescentes tenham fácil acesso a essas substâncias. Ao contrário. Em todos esses anos de “guerra às drogas”, as substâncias proibidas foram se tornando mais baratas, mais potentes, mais diversificadas e mais acessíveis. A ilegalidade torna as drogas proibidas mais perigosas. A política de “guerra às drogas” ilegitimamente trata crianças e adolescentes pobres como criminosos, submetendo-os à humilhação, à perseguição e ao recolhimento a instituições em tudo semelhantes a prisões, acrescentando às suas miseráveis e traumáticas condições de vida a violência da privação de sua liberdade.
Já é tempo de por fim a essa violenta, ilegítima, danosa e dolorosa política. Já é tempo de legalizar e consequentemente regular a produção, o comércio e o consumo de todas as drogas, de modo a afastar medidas repressivas violadoras de direitos fundamentais, pôr fim à enorme parcela de violência e corrupção provocada pela proibição, tirar do mercado os descontrolados agentes que agem na clandestinidade e verdadeiramente proteger a saúde. 
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(*) Maria Lucia Karam é juíza aposentada e membro da direção da Law Enforcement Against Prohibition (LEAP), organização internacional formada por policiais, juízes e promotores que, compreendendo os danos causados pela proibição, apontam a necessidade da legalização e consequente regulação da produção, do comércio e do consumo de todas as drogas. 
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Carta Capital 08.04.2012
O diabo e as drogas
Emiliano José
A política de criminalização das drogas tem sido um rotundo fracasso. Esta foi uma das conclusões fundamentais do Seminário Internacional “O uso e usuários do álcool e outras drogas na contemporaneidade”, realizado em Salvador, entre os dias 3 e 6 de novembro, promovido pelo Núcleo de Estudos Avançados Sobre Álcool e outras Drogas e pelo Centro de Estudos e Terapia do Abuso de Drogas (CETAD), vinculado à Universidade Federal da Bahia. Para mim, cuja iniciação nas drogas limita-se ao álcool, de preferência vinho, e uma iniciação que nunca extrapolou limites – de mim, dir-se-ia um careta – foi um impressionante aprendizado.
Disse, durante o seminário, que eu estava apenas costeando o alambrado, relembrando expressão muito a gosto do velho e saudoso Leonel Brizola. Estou começando a me aproximar do tema, embalado pelos conhecimentos da psicanalista Maria Luiza Mota Miranda, coordenadora do Núcleo de Estudos Avançados Sobre Álcool e outras Drogas, e do deputado Paulo Teixeira, amigo e companheiro, do PT de São Paulo, um dos conferencistas do encontro. Numa sociedade como a brasileira, dada a uma impressionante hipocrisia e farisaísmo, não é um tema simples de ser abordado.
É só lembrar o que foi a recente campanha presidencial para ver o quanto um tema como esse é explosivo. Afinal, o aborto, ao qual milhares de mulheres de classe média recorrem colocando-se sob cuidados médicos especializados e milhares de mulheres pobres morrem ou têm seqüelas decorrentes de abortos realizados em condições ultrajantes, para compreender como alguns assuntos são tratados como tabus. Serra descarregou toda a sua carga de farisaísmo, de hipocrisia, e só foi constrangido a parar quando revelou-se que sua mulher, Mônica, havia feito um aborto. Se o aborto enfrenta clima tão adverso, imagine a discussão em torno das drogas, especialmente uma discussão que pretenda não deixar o tema vinculado exclusivamente à esfera policial, à repressão violenta, a tratamentos desumanos, à perspectiva pura e simples da proibição.
Disse, durante o seminário, que toda essa política proibitiva, repressiva, estava e está vinculada a uma visão imperial, e vem de longe. Os EUA de há muito trabalham com essa ideia de combate às drogas, e os resultados que colhem são extremamente precários – quase nenhum. Afinal, todos se lembram das conseqüências da Lei Seca, dos anos 30. A proibição do consumo do álcool resultou, a rigor, no fortalecimento da máfia, de métodos criminosos, e não resolveu, de modo nenhum, o problema. Assim, tem acontecido atualmente com as drogas em escala mundial. Se tomamos a América do Sul como exemplo, os EUA têm desenvolvido uma autêntica guerra contra as drogas, e essa guerra não tem implicado em diminuição da oferta da droga, a par de servir de pretexto para a instalação de bases militares no Continente.
A psicanalista Maria Luiza Mota Miranda, na fala de abertura do seminário, lembrava que não há notícias históricas de uma sociedade sem drogas. Parece chocante ouvir isso, mas é absolutamente verdadeiro. E as drogas, com suas propriedades psicoativas, revelaram-se sempre um potente recurso das pessoas para a sobrevivência, pois anestesiam dores das intempéries, da fome e do frio, e constituem solução para a angústia e a dor da existência, como solução momentânea. Como medicamento, alivia tensões, stress, dores, sofrimentos. E ela, provocando, pergunta: o que dizer do vinho, o maior dos afrodisíacos, símbolo do prazer, louvado pelos poetas? E a cocaína, desde há muito inscrita na cultura dos povos, em suas religiões, rituais e no auxílio à força produtiva?
As perguntas de Maria Luiza podem parecer impróprias ou revelar apenas tentações panfletárias, mas não é nem uma coisa, nem outra. Têm absoluta propriedade. Vem de uma especialista que trabalha com o assunto há muito tempo. Ao lado do CETAD, um centro que se dedica ao assunto há mais de 25 anos, sob a dedicada orientação do professor Antonio Nery Filho, que fez a conferência de abertura do seminário sob o título, também aparentemente provocante, O CETAD e sua trajetória de 25 anos no campo da invisibilidade social. E Maria Luiza, na sua postura de questionar, perguntou mais:
Se há tantos séculos e de tantas formas o álcool e as outras drogas perfilam na história dos homens por que o uso dessas substâncias ganha um destaque tão intenso em nossa cultura, transformando-se em fenômeno e em sintoma social contemporâneo, especialmente a partir da segunda metade do século XX?
Para Maria Luiza, a lógica capitalista atual, com o avanço da ciência e da tecnologia, possibilita a transformação de algumas substâncias em negócios de larga escala e de grande valor econômico, entre elas as substâncias psicoativas que hoje ocupam um dos primeiros lugares na economia mundial, junto com a indústria de armas.
Assim, considerar, ainda para acompanhar a palestra de Maria Luiza, os usos intensivos do álcool e outras drogas uma doença sem cura, um desvio de comportamento, uma perversão, transforma a substância em mito, reduz o problema à dimensão clínica, deixando ao indivíduo somente a condição de impotência, sem alternativa senão a da marginalização. E não falamos de alienígenas, de seres distantes de nós, mas de nossos filhos, de nossos amigos, das figuras mais queridas de nossas vidas. As drogas, em suas múltiplas manifestações, as legais, tantas, e as ilegais são parte inseparáveis da vida contemporânea, a par de ter sido parte, também, como já dito, de todos os períodos históricos. Baco nunca nos abandonou, foi sempre um deus generoso, pródigo.
Na sociedade do consumo desenfreado, do gozo sem limites prometido pelo capitalismo, império do valor de troca, para recuperar noção cara ao marxismo, o gozo da droga se adequa como uma luva às leis do mercado. Por tudo isso, a discussão sobre as drogas, sobre essa louca política simplesmente repressiva, precisa ser muito ampliada, e não pode vincular-se a um desespero apocalíptico que muitos querem divulgar, espécie de beco sem saída a que estaríamos condenados, especialmente com a emergência do crack, novo demônio dos nossos tempos.
O buraco é mais embaixo, a discussão tem ir até os fundamentos de nossa sociedade, pensar a própria lógica capitalista, que estimula profundamente o uso das drogas, tanto com a pletora das drogas legais, que vão do álcool à profusão de drogas medicamentosas, até as ilegais, cujo consumo cresce, cresce e cresce, salvo naqueles países onde o consumo foi legalizado ou ao menos uma política menos repressiva foi implantada, a exemplo da Holanda, Portugal e Espanha.
Como estou costeando o alambrado, reflito sobre uma passagem de um livro de Saramago, que li há muito tempo – o título, se me lembro bem é O Evangelho segundo Jesus Cristo. Numa conversa entre Deus, Jesus e Lúcifer, no meio de um lago, ou do mar, não me recordo bem, Lúcifer, diante do mundo de sofrimentos que viria à frente, e Deus podia saber o que viria de sofrimentos na esteira do cristianismo, Lúcifer propõe então a Deus, para evitar todas aquelas dores, que ele voltasse ao aprisco dele, já que antes fora um de seus anjos prediletos. Deus, então, reage: não, de jeito nenhum, eu sem você não sobrevivo. Como faz muito tempo que li, pode haver equívocos, mas é mais ou menos este o raciocínio.
Penso que hoje há um demônio, a necessidade de um demônio, e o demônio deve ter sempre um nome: drogas, drogas ilícitas. E para chegar ainda mais perto do diabo, para ter um alvo, melhor ter um nome mais específico, e aí encontraram o crack, que é dada como uma droga mortal, contra a qual nada se pode fazer. E o usuário vira um adereço, uma estatística. Deixa de ser uma pessoa, um ser humano.
Antes, durante décadas, o Império apresentou um demônio ao mundo: o comunismo. Comunista, todos se lembram, comia criancinhas, e agora Serra tentou ressuscitar até a frase pelas palavras de sua mulher. Acabou a guerra fria, e é sempre necessário ter um demônio, mesmo que seja só nas aparências, mesmo que contraditoriamente, seja a partir mesmo do Império que o consumo, o grande negócio das drogas, legais e ilegais, seja tão profundamente estimulado. O diabo necessário agora são as drogas.
É fundamental desmistificá-lo. Trazer o assunto para perto das pessoas. Humanizar o problema. Olhar para os usuários com o carinho necessário. Trabalhar sem preconceitos com a ideia da legalização ou, para dizer de outra forma, quem sabe menos assustadora, com outros paradigmas que não sejam apenas aqueles vinculados à repressão pura e simples.
Costuma-se dizer que o diabo, ele outra vez, mora nos detalhes. Um detalhe simples: como trabalhar contra as drogas, com tanta violência, numa sociedade que nos bombardeia, segundo a segundo, com a promessa do gozo incessante, que se afirma como a sociedade do gozo eterno? Não há possibilidade de discutir a droga sem discutir a permanente droga proposta pela sociedade capitalista, a promessa do gozo sem fim, só possível por minutos no delírio que as muitas drogas possibilitam.
Eliminar as drogas é impossível. Ter outra convivência com elas, não. Esse foi o ensinamento desse oportuno seminário. Agora, nem que a médio prazo, trata-se de tirar conseqüências políticas disso, na esteira do que vem sendo feito na Europa, ou continuar o banho de sangue, cujo exemplo mais próximo de nós, de conseqüências assustadoras, vem sendo dado pelo México, cuja guerra contra as drogas tem implicado num quase genocídio. 
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Resenha Exército Brasileiro 08.04.2012
Drogas: está aberto o debate
Fernando Henrique Cardoso, César Gaviria e Ernesto Zedillo
Qual a melhor maneira de enfrentar o problema das drogas?
Criminalizando o usuário ou tratando os dependentes como pacientes do sistema de saúde?
Mantendo a ferro e fogo uma visão proibicionista ou experimentando com diferentes formas de regulação e prevenção?
Nos últimos quatro meses, a discussão avançou mais do que em 40 anos. O que parecia impensável está sendo discutido à luz do dia. Isto aconteceu por imposição da realidade e pela coragem dos presidentes Juan Manuel Santos, da Colômbia, Otto Perez Molina, da Guatemala, e Laura Chinchilla, da Costa Rica.
Os fatos falam por si. Décadas de esforços imensos, liderados pelos Estados Unidos, não levaram nem à erradicação da produção nem à redução do consumo. Enquanto houver demanda por narcóticos haverá oferta. Os únicos que ganham com a proibição são os traficantes.
No México e na América Central, a violência e corrupção associadas ao tráfico são uma ameaça direta à estabilidade democrática. Frente a este risco, criamos faz quatro anos a Comissão Latino-Americana sobre Drogas e Democracia. Diante da ineficácia e dos efeitos desastrosos da guerra às drogas, abrimos o debate sobre estratégias alternativas.
Formulamos duas recomendações. Em primeiro lugar, descriminalizar o consumo de todas as drogas, visto que não faz sentido pôr na cadeia pessoas que usam drogas, mas não causam dano a terceiros. Podem causar danos a si mesmos e a suas famílias, mas persegui-los não os ajuda a se livrarem das drogas.
Droga é um problema de saúde pública. Tratar os dependentes como criminosos só dificulta o acesso ao tratamento. O primeiro objetivo de uma política antidrogas deve ser proteger os jovens, prevenindo o consumo que leva à dependência. Isto se faz mediante educação, tratamento e reintegração social.
O poder repressivo do Estado e a pressão da sociedade devem se concentrar na luta contra os narcotraficantes, sobretudo os mais violentos e corruptores, não em perseguir jovens ou doentes.
Nossa segunda recomendação, mais complexa porém não menos importante para a paz cidadã, é abrir o debate sobre modelos de regulação de drogas, como a maconha, de maneira similar ao que já se faz com o tabaco e o álcool.
Estudos científicos demonstram que a maconha é menos danosa à saúde que o tabaco. Regular não é a mesma coisa que legalizar. Regular significa criar as condições para impor restrições e limites ao comércio e consumo do produto, sem colocá-lo na ilegalidade. A redução espetacular do consumo do tabaco comprova que a prevenção e a regulação são mais eficientes que a proibição para mudar hábitos e mentalidades.
A regulação corta o vínculo entre traficantes e consumidores. Como a maconha é a droga mais consumida no mundo, sua regulação reduziria grande parte dos enormes recursos obtidos pelo crime organizado nos mercados ilegais, fonte de seu poder e influência.
Felicitamos aos presidentes da Colômbia, da Guatemala e da Costa Rica por colocarem sobre a mesa diferentes opções mais eficazes para proteger a saúde das pessoas e a segurança da sociedade. Por sua iniciativa, o tema da droga foi incluído na pauta da Cúpula das Américas que se reúne em Cartagena, Colômbia, nas proxima sexta-feira (14) e sábado (15 ).
Deste encontro de chefes de Estado não se deve esperar soluções mágicas ou acordos imediatos sobre o que fazer. Neste momento o que importa é um debate sério e rigoroso que permita a cada país encontrar as soluções mais adequadas à sua realidade.
A experiência da América Latina no combate ao narcotráfico e da Europa em saúde pública e redução do dano causado pelas drogas, a mobilização de setores empresariais e da comunidade científica, o anseio de paz dos jovens, tudo converge na direção de políticas mais humanas e eficientes.
Uma mudança de paradigma, capaz de combinar repressão ao tráfico com prioridade ao tratamento, reabilitação e prevenção, é a melhor contribuição da América Latina, continente que já sofreu tanto com este problema, para uma revisão global da política sobre drogas.
A hora da mudança é agora.
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO foi presidente da República (1995-2002).
CÉSAR GAVIRIA presidiu a Colombia (1990-1994).
ERNESTO ZEDILLO foi presidente do México (1994-2000).

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A fabricação do vício
Prof. Dr. Henrique Carneiro, 2002 
“A virtude é quando se tem a dor seguida do prazer; o vício, é quando se tem o
prazer seguido da dor”
Margaret Mead 
“Assim como o direito veda ao poder humano invadir-nos a consciência, assim lhe veda transpor-nos a epiderme. Uma, envolve a região moral do pensamento. A outra, a região fisiológica do organismo. Dessas duas regiões se forma o domínio impenetrável da nossa personalidade”
Rui Barbosa (1904) 
A história de certos conceitos médicos é essencialmente política, ou seja, ligada ao poder e aos interesses materiais de instituições, classes, camadas e grupos sociais . Talvez o conceito médico mais controverso do último século e meio seja o de “dependência” de drogas. Este é o termo hoje adotado como o mais indicado, de acordo a uma nomenclatura normatizada internacionalmente pela OMS, mas antes dele houveram outros termos análogos e igualmente oficiais em suas épocas, tais como “adição”, “hábito”, “transtornos da vontade”, “insanidade moral”.
A construção política dos conceitos conecta o Estado e a Medicina, pois a “história social da linguagem é basicamente uma questão de poder” (Burke, 1987). Existem conceitos investidos de alto poder simbólico, conceitos “tótens”, como escreve Berridge (1994). A demonização do “drogado” e a construção de um significado suposto para o conceito “droga” alcança na época contemporânea um auge inédito. Um fantasma ronda o mundo, o fantasma da droga, alçado à condição de pior dos flagelos da humanidade.
Afinal, o que é a dependência de drogas? Hábito, vício, necessidade, desejo, vontade. Na definição atualmente aceita, o “abuso” se distinguiria do “uso” por produzir um quadro de tolerância, síndrome de abstinência, compulsividade, desestruturação da vida pessoal e persistência no consumo apesar dos efeitos nocivos .
O surgimento deste conceito, assim como deste personagem, é simultâneo de uma série de outros, como o “homossexual”, o “alienado”, o “erotômano” ou “ninfomaníaca”, o “onanista”. Antes desse momento impreciso, que toma seus contornos no início do século XIX, beber demasiado não era uma doença. No máximo, uma prova de mau caráter ou de falta de auto-controle. A embriaguez não suprimia a vontade, aliás, não se distinguia entre desejo e vontade de beber, não havia um vocabulário que expressasse a existência de uma compulsão, de uma escravidão à bebida ou alguma outra droga. As exceções são alguns relatos sobre o uso do ópio no Oriente no século XVI e, a partir do século XVIII, os  primeiros autores (J. Jones, 1701; Lettson, 1787; S. Crumpe, 1793) que passam a descrever “uma perda de controle voluntária do hábito”, que será mais tarde chamada de “abuso” (Berridge, 1994). Mas acima de tudo, o uso do álcool e outras drogas era visto como uma prática condenável em muitos aspectos, e virtuosa em outros, mas jamais como uma doença.
A doença do vício será uma construção do século XIX. A concepção da embriaguez como doença pode ser datada de 1804, quando Thomas Trotter publicou o Essay Medical Philosophical and Chemical on Drunkenness, que seria considerado um marco na “descoberta” (ou na criação?) de uma nova entidade nosográfica na medicina. Para Trotter, o hábito da embriaguez seria “uma doença da mente”.
Benjamin Rush, nos Estados Unidos, já em 1791, relacionara alcoolismo e masturbação como “transtornos da vontade”, desencadeando contra ambos uma campanha médica e psiquiátrica. Na França, Esquirol tipificou a ebriedade como “monomania” e “insanidade moral com paralisia da vontade”.
Em 1819, Carl von Bruhl-Cramer cunhou o termo “dipsomania” para referir-se ao alcoolismo como uma doença do sistema nervoso. Legrain e Morel sintetizaram o pensamento médico predominante de sua época ao definir a adição alcoólica dentro de uma teoria da degeneração hereditária.
O estudo pioneiro de Moreau de Tours sobre o haxixe, publicado em 1845, representou um marco na tendência de fazer da droga, como escreve Jésus Santiago, “um meio poderoso e único de exploração em matéria de patogenia mental”, através de um método introspectivo baseado no princípio epistêmico da observação interior experimental.
Nesse momento, a toxicomania está sendo constituída e isolada como uma entidade clínica autônoma. Em Esquirol (Des maladies mentales, 1838) conceitua-se a “monomania instintiva”, como “um ímpeto irresistível”. Emmanuel Régis (Précis de psychiatrie, 1885), para Santiago, certamente um dos primeiros a usar o termo ‘toxicomania’, escreve que as tendências impulsivas devem se aplicar à solicitação motriz involuntária em direção a um ato, como uma “apetência doentia”.
A década de 1870-9 foi quando “descobriu-se” a capacidade aditiva da morfina. Em 1878, Levinstein publicou “O desejo mórbido pela Morfina” e, em 1884, Kerr referia-se ao vício em drogas como “produto natural de uma organização nervosa depravada, debilitada ou defeituosa (...) indiscutivelmente uma doença, assim como a gota, a epilepsia, ou a insanidade” (apud Berridge, 1994). Nesse mesmo ano, foi fundada em Londres a Society for the Study of Inebriety.
Ao longo do século XIX, a teorização médica sobre a natureza dos efeitos e do uso das drogas acompanhou-se do isolamento químico de drogas puras (morfina, 1805; codeína, 1832; atropina, 1833; cafeína, 1860; heroína, 1874; mescalina, 1888) o que permitiu precisão de dosificação, facilitando a atividade experimental controlada.
Todo este período foi de uma escalada crescente na intervenção do Estado sobre a disciplinarização dos corpos, a medicalização das populações, recenseadas estatisticamente de acordo aos modelos epidemiológicos para os objetivos da eugenia social e racial, a “higiene social” e a “profilaxia moral”, ou seja, tentativas de evitar a deterioração racial supostamente causada pelos degenerados hereditários, entre os quais se incluíam com lugar de destaque os viciados e bêbados. Assim como se buscava, à essa época, a erradicação das doenças contagiosas, com o estabelecimento de medidas como quarentenas e notificação compulsória dos doentes (Disease Act, em 1889, na Inglaterra), também planejou-se uma campanha de aniquilação do vício, que desaguou no massivo movimento pela temperança, nos Estados Unidos. O controle epidemiológio impunha-se para um comportamento socialmente infeccioso como o alcoolismo. Também as mulheres e a maternidade eram alvos especiais pois os nascimentos deveriam ser regulados evitando-se os riscos de procriação de filhos de bêbados, homossexuais, viciados, loucos, etc. Assistia-se o nascimento pleno do bio-poder.
Como enfatiza Virginia Berridge (1994 : 17), a novidade no século XIX não são os conceitos de vício, dependência ou embriaguez, já existentes, mas a “conjunção de forças políticas, culturais e sociais que deu hegemonia a esses conceitos”.
A adoção de uma teoria orgânica da doença para explicar os comportamentos de uso imoderado de drogas correspondeu ao clima geral de uma época em que “as teorias da doença foram colocadas dentro da tradição clínica e individualista da medicina como parte da revolução bacteriológica, e em contraste com a abordagem do ambientalismo e da reforma social e sanitária da saúde pública” (Berridge, 1994). A ontologização do mal, a construção da nosologia como um jardim das espécies e a busca filatelista de coleções nosográficas levaram à construção de mais uma entidade: a adição, e suas vítimas, os aditos. Tal foi o modelo orgânico e hereditário que identificou e circunscreveu as fronteiras do vício.
Esse termo, entretanto, só tornar-se-á consensual após o século XX, quando o modelo orgânico da doença for superado por um modelo psicológico. William Collis, a partir de 1919, recusou o modelo orgânico e passou a defender a noção de “doença da vontade”. O alcoolismo provoca doenças orgânicas mas não é uma doença orgânica, portanto Collis propôs “adição” para a doença da vontade. O termo adição (addiction, em inglês) deriva da palavra latina que designava, na Roma antiga, o cidadão livre que fora reduzido à escravidão por dívidas não pagas.
Nesse mesmo período, o advento da medicina psicológica ocorria devido ao tratamento da neurose de guerra, durante e depois da Primeira Guerra Mundial. Não apenas a psicanálise como outras correntes, como o comportamentalismo (behaviorismo) ampliavam sua influência.
Os hábitos, por sua vez, também se expandiam, tornando-se alguns dos mais rendosos ramos do comércio mundial. Tabaco, opiáceos, café, chá, chocolate, mate, coca, cola seduziam as populações mundiais. A indústria química e farmacêutica, especialmente na Alemanha, isolava e produzia princípios ativos de plantas. Nascia o grande século das drogas, o século XX.
As drogas são um dos arquétipos culturais mais fortemente presentes no espírito da nossa época. O significado econômico de um consumo massivo e as formas políticas do seu controle - como o regime do proibicionismo, adotado como “lei seca” de 1920 a 1934 nos Estados Unidos em relação ao álcool e hoje estendido a uma escala mundial com a “guerra contra as drogas” - são alguns dos aspectos mais relevantes do fenômeno contemporâneo das drogas. Mas além disso, as drogas impregnam o imaginário do século XX com a marca ambivalente de uma passagem para o paraíso através da felicidade em pílulas e, ao mesmo tempo, de um paradigma do vício, da escravização extrema a uma mercadoria.
A ciência da farmacologia vem tornando disponíveis para a humanidade recursos técnicos para a produção de estados de consciência alterada, ou, em outras palavras, técnicas para a intervenção planejada sobre a subjetividade, com o poder de produzir mecanismos mentais específicos, como determinados estados de humor, de prazer, de excitação de capacidades sensoriais, perceptivas, intelectivas, cognitivas, mnemônicas e emocionais. Há um duplo potencial despertado pelas novas tecnologias produtoras de subjetividades auto-programáveis: de um lado, a utopia reacionária do controle do pensamento pelo Estado; de outro, a utopia da libertação e emancipação do espírito através da farmácia: a revolução psicodélica. No primeiro caso, os estados de consciência são legislados e policiados pelo Estado, que reprime e controla populações nos seus hábitos íntimos e cotidianos estabelecendo um sistema de terror e altos investimentos, no segundo, a liberdade de auto-determinação da subjetividade amplia-se na mesma medida que a autonomia do espírito para interferir quimicamente em seu funcionamento.
Freud foi um dos primeiros a teorizar sobre o papel das drogas na economia da libido, identificando-as como o mais eficaz mecanismo de obtenção do prazer e de afastamento da dor. “O serviço prestado pelos veículos intoxicantes na luta pela felicidade e no afastamento da desgraça é tão altamente apreciado como um benefício, que tanto indivíduos quanto povos lhes concederam um lugar permanente na economia de sua libido” .
Desde os primórdios da elaboração da teoria da libido que Freud buscou integrá-la aos fundamentos das ciências naturais de sua época, considerando a libido como uma forma de energia que se submeteria às leis da termodinâmica e que possuiria um substrato bioquímico. A chamada “hipótese substancialista da libido” admitia a existência suposta de uma “toxina sexual”. A ambição de Freud residia, nas palavras de J. Santiago, na tentativa de inaugurar uma termodinâmica da satisfação, uma cifragem do gozo, explicitada numa carta à Karl Abraham, em 1908, em que afirmava que: “o filtro de Soma contém certamente a intuição mais importante, isto é, que todas nossas beberagens inebriantes e nossos alcalóides excitantes são somente o ‘substituto da toxina única, da libido ainda a ser pesquisada’, que a embriaguez do amor produz” .
Em Freud, não existe a categoria clínica da toxicomania, o uso de drogas sendo visto como uma “técnica vital” para a evitação do sofrimento e a busca do prazer.
Após Freud, entretanto, a toxicomania torna-se uma categoria clínica autônoma na psicanálise, que a relaciona com a sexualidade. Karl Abraham, Sándor Ferenczi, Alfred Gross e Sándor Rado elaboraram uma “teoria geral da toxicomania” como uma “patologia da regressão libidinal”, com uma importância etiológica do erotismo oral e em relação estreita com a homosssexualidade. A droga ou o álcool destruiriam as sublimações, desgenitalizariam a libido e promoveriam um “curto-circuito” no sujeito desejante, que mergulharia numa desordem de tipo narcísica, com a busca de uma prazer auto-erótico, cujo extremo levaria a uma ruptura com o Outro e a um prazer solitário e autista .
Michel Foucault elaborou a noção de dispositivo, para referir-se à organização social do sexo, instituído pelos poderes. As drogas, como arsenais de substâncias produtoras de prazeres e sensações específicas, também foram submetidas historicamente a um dispositivo de normatização. Duas são as principais intervenções do biopoder: sobre os corpos e o regime químico das mentes, o controle do sexo e o controle farmacoquímico.
Assistimos ao nascimento de um novo racismo que, além de biológico, assume contornos biopolíticos, na estigmatização demonizante dos consumidores de drogas do final do século X e inícios do XXI.
O controle estatal sobre os comportamentos intensificou-se no século XX com a constituição de uma ampla rede de poderes ligados à vida cotidiana. A definição de vício perpassou a formação dessa rede institucional baseada sobretudo no estamento médico, mais tarde, no “poder psi”, vasta esfera de psicólogos, terapeutas, assessores de empresas, publicitários, pesquisadores de mercado, etc., que se imiscuíram na família, na escola, nas empresas e nos quartéis para assegurar a eficácia científica das técnicas de controle . Tais “tecnologias sociais” tornaram-se teorias da propaganda e, no que se refere às drogas, serviram tanto para incentivar a sobriedade como para condicionar o consumo compulsivo.
Um exemplo marcante da relação destes “engenheiros do comportamento” com a prática de dependências químicas socialmente estimuladas foi o de John B. Watson (1878-1958), fundador da escola do behaviorismo na psicologia norte-americana e que, após desenvolver suas teorias comportamentais na Johns Hopkins, tornou-se publicitário e passou a trabalhar para a campanha dos cigarros Lucky Strike, sendo autor do slogan “Pegue um Lucky Strike ao invés de um doce”, que teria ajudado na popularização dos cigarros, especialmente entre o público feminino (Wertheimer, 1978 : 153).
Um outro exemplo marcante da relação dos vícios oficiais com a ordem cultural contemporânea foi o do milionário James B. Duke que, ao morrer, em 1925, deixou não  apenas sua filha única, Doris Duke, conhecida então como a “menina mais rica do mundo”, como uma doação de 4 milhões de dólares, para o Trinity College, em Durham, Carolina do Norte, com a condição de que mudasse o nome para Duke University. A fortuna da família Duke veio da exploração comercial do tabaco, desde 1881 e, mais tarde, com a American Tobacco Company (ATC), que na passagem do século, controlava a maior parte dos cigarros fabricados nos Estados Unidos e estendia o seu truste para o mundo . Que universidades importantes, como a Duke University, sejam produto do capital da indústria do tabaco é não apenas um sintoma da importância desta droga na ascensão econômica dos Estados Unidos, como da legitimidade cultural de certos comportamentos viciosos e compulsivos na sociedade capitalista contemporânea.
O consumo de tabaco e álcool, assim como das drogas legais e ilegais em geral, passou a ser objeto de uma forte intervenção reguladora estatal desde o início do século XX, que redundou em tratados internacionais, legislações específicas, aparatos policiais e numa consequente hipertrofia do preço e do lucro do comércio de drogas. Ao mesmo tempo, desenvolveu-se um imenso aparato de observação, intervenção e regulação dos hábitos cotidianos das populações. O dispositivo das políticas sexuais e raciais se constituiu como um dos fundamentos da luta ideológica no início do século XX. O controle dos hábitos populares tornou-se objeto de corpos policiais, estamentos médicos, psicólogos industriais, administradores científicos. O taylorismo e o fordismo foram concomitantes aos mecanismos puritanos da Lei Seca, e a discriminação racial de imigrantes serviu de pretexto para a estigmatização do ópio chinês e da marijuana mexicana nos Estados Unidos.
Um dos núcleos da atividade normatizadora da medicina sobre os hábitos foi a campanha contra a masturbação desencadeada desde o final do século XVIII e intensificada no XIX. O comportamento central atacado como paradigma do vício, da tentação, da perda do controle de si para si mesmo, foi a masturbação, especialmente a infanto-juvenil. Uma das matrizes das noções de intervenção médica e estatal sobre o controle do corpo parte das campanhas contra a masturbação. O médico mais representativo da medicina que diagnostica no erotismo a pior das doenças foi o suíço Dr. Simon-André Tissot, cujo livro Tentamen de morbis ex manustupration ortis, (Louvain, 1760), tornou-se a referência oficial da opinião médica e pedagógica que identificava na masturbação a pior e a mais perigosa causa das doenças e dos óbitos.
Tissot condenava, além da masturbação, toda prática que incorresse na imobilidade do corpo e na excitação da imaginação, como a leitura contínua, por exemplo. A denúncia médica da leitura incluiu-se na crítica geral às prática solitárias, e a medicina buscou infiltrar-se cada vez mais em todos os interstícios da subjetividade. O auto-erotismo, o víciosolitário, é apresentado como inimigo da espécie, pois, como no crime de Onã, o sêmen é  desperdiçado, e além disso, constitui-se numa prática antissocial, uma “ameaça à natureza da solidariedade humana”, como explica Thomas Laqueur (1992 : 263), destacando que oacento maior incide mais sobre o “solitário” do que sobre o “vício”.
O lento declínio do consenso médico que considerava a masturbação uma doença grave fez com que mesmo médicos como Freud, ainda continuassem a considerá-la como algo maléfico, originadora não mais de psicoses, mas de neuroses. Freud escreveu diversos artigos defendendo essa posição e divergindo da opinião contrária de Stekel que não via qualquer mal no hábito do prazer solitário. Em 1912, realizou-se uma discussão na sociedade psicanalítica de Viena acerca do onanismo. Na verdade, culminou numa declaração diplomática uma controvérsia que prolongava-se há anos sobre este tema e, em particular, sobre a sua nocividade. Embora conclua pela afirmação de que o tema do  onanismo é “inesgotável”, Freud esquiva-se de tomar partido na disputa de fundo sobre a nocividade do onanismo, contestada veementemente por Stekel. Até os anos 40 do século XX, os manuais de pediatria norte-americanos continuaram a condenar as práticas masturbatórias e propor como “terapia” a circuncisão completa das meninas, a cauterização do clitóris ou meios mecânicos de coerção . Por outro lado, Freud afirmou, numa carta a Fliess, em 1897, que os hábitos compulsivos, os vícios, como fumar cigarro ou cheirar cocaína, eram todos derivativos da masturbação: “me ocorreu que a masturbação é um hábito fundamental, o ‘vício primário’, e que apenas como substituição é que aparecem os outros vícios - por exemplo, álcool, tabaco, morfina, etc” . O combate cerrado à masturbação no século XIX, assim como as atuais campanhas contra as drogas, essa “masturbação química”, fazem parte de um projeto de constituição de um modelo de subjetividade onde o autocontrole, o superego forte, deve primar sobre tudo.
Definir vício não é uma tarefa fácil. Como distinguir hábitos de compulsões? Há hábitos não compulsivos? Segundo Anthony Giddens (1993 : 88) o vício é “uma incapacidade de administrar o futuro”. Todos os vícios seriam, nesta visão, “patologias da auto-disciplina”. Mas este mesmo sociólogo inglês é obrigado a reconhecer a constatação de Foucault de que a “invenção do viciado é um mecanismo de controle, uma nova rede de poder/conhecimento”, assim como “um passo à frente na caminhada para a emergência de um projeto reflexivo do eu”.
A própria essência do mecanismo de reprodução ampliada do capital baseia-se no incentivo à formas de consumo de mercadorias baseadas não num valor de uso intrínseco, mas num fetiche da forma-mercadoria que sobrepõe-se à efetivas satisfações de demandas sociais. O consumo das mercadorias fetiches é estimulado por complexos e cada vez mais poderosos mecanismos de criação de comportamentos de consumo compulsivo. A publicidade, municiada por técnicas comportamentalistas, como as desenvolvidas por Watson, impinge o consumo compulsivo.
A sociedade contemporânea é cada vez mais viciada: em alimentos, em roupas, em carros. Diversas práticas sociais tomam características compulsivas: as torcidas esportivas viciam-se em seus times e adotam comportamentos de dependência, os próprios esportistas, pressionados pela indústria da quebra dos recordes, viciam-se literalmente em suas próprias endorfinas, quando não tomam simplesmente aditivos hormonais ou excitantes. Diversas práticas como o alpinismo ou a direção de carros velozes, tomam a mesma dimensão viciante e socialmente arriscada de certos consumos de drogas.
A noção de co-dependência aplica-se à nossa sociedade contemporânea, onde a ausência de um zeitgeist (espírito da época), não deixou de manifestar um mal-du-siècle, o deste nosso final de século/milênio é certamente o do vício em drogas. Nada mais demonizado, nenhum personagem sintetiza melhor a paranóia pública da nossa era do que o do viciado e do traficante. Na verdade, a nossa sociedade tornou-se dependente da dependência, a qual não passa da hipertrofia das conseqüências inerentes à forma contemporânea do mercado, imenso cardápio de comportamentos compulsivos, hiperestimulados pela mídia.
As campanhas contra as drogas, sob o slogan “Vida sim, drogas não”, supõe que possa existir vida sem drogas, o que é uma completa contradição com a história da humanidade, que desde a idade da pedra, passando por todas grandes civilizações, sempre usaram algum tipo de droga. O próprio álcool, para ficarmos em uma droga apenas, faz parte essencial da cultura ocidental, onde o vinho tem um lugar primordial, até mesmo na eucaristia cristã. Não se duvida que o vinho tem bons usos, não só na eucaristia, como em qualquer boa mesa. Há, obviamente, usos nocivos do vinho, a existência de milhões de álcool-dependentes comprova isso. Mas nem todos que consomem o vinho, ou o álcool em geral, tornam-se dependentes e os que se tornam, como ocorre com muitas mercadorias que a intoxicação publicitária torna fetiches de consumo compulsivo, necessitam tão somente que não lhes impeçam de poder gozar do seu hábito. Hábito esse que é elevado como símbolo da felicidade e da identidade nacional, bastando se recensear os temas das campanhas publicitárias de cerveja. A fusão, aliás, das duas maiores empresas de cerveja do
Brasil, na Ambev, dá nascimento à maior empresa privada brasileira como uma multinacional global player da alcoolização planetária, o que se junta ao nosso recorde de primeiro exportador mundial de tabaco.
O álcool, que é uma das drogas mais perigosas do mundo, reconhecida oficialmente como a causa de uma boa parte das patologias individuais e sociais, desde a cirrose e a dependência metabólica (calcula-se que cerca de 5% da população mundial é álcool-dependente), até a violência urbana e os acidentes de trânsito não só é permitido, como faz parte do imaginário oficial da felicidade e da alegria. Quais as razões históricas para o predomínio do álcool na preferência popular para a obtenção de meios simples e diretos para o consolo físico e espiritual da dor, da fadiga, do tédio e do sofrimento? Porque como remédio para o sofrimento, diante de um cardápio incomensurável de substâncias químicas, se consome acima de todas os diferentes tipos de álcool?
Não se trata, entretanto, de abolir o álcool, como os Estados Unidos tentou fazer durante a “Lei Seca”, que durou de 1919 a 1933, mas de buscar um uso saudável e responsável dessa droga. O que foi dito em relação ao álcool aplica-se a todas as outras drogas. Cada uma possui a sua virtude, faz parte de determinadas culturas humanas e, ao mesmo tempo, oferece o seu perigo. A proibição cria não só um Estado policial como um fluxo de comércio clandestino, devido a hipertrofia do preço. Foi o que se aprendeu da tentativa da Lei Volstead (“Lei Seca”), no EUA, e o que se verifica lamentavelmente repetir-se hoje em dia em escala global.
As drogas fazem parte da cultura. A cultura da droga é estética, religiosa, científica e política. A cultura da droga faz parte do processo fundador da psicologia como ciência no século XIX. O conhecimento do funcionamento do espírito, a classificação das instâncias do pensamento, a “história natural da mente”, como podem ser definidos os objetivos da psicologia, tiveram nas drogas alguns dos seus principais veículos. Assim como o telescópio para a astronomia, o microscópio para a biologia, as drogas representaram o principal instrumento tecnocientífico para o conhecimento da mente humana. Desde Humphrey Davy, Moreau de Tours, Freud, Havelock Ellis, William James até Albert Hoffman e Alexander Shulguin.
Os estados da consciência começam a ser classificados como vigília, sono e sonho, e seus estados limítrofes identificados como zonas crepusculares, fronteiras hipnogógicas.
A tentativa de conhecimento científico da mente principiou por cartografar essas estranhas arquiteturas psíquicas. Uma de suas regiões, a do sono, tornou-se reprodutível artificialmente por meio dos soníferos que representaram o papel dos primeiros anestésicos.
Desde o óxido nitroso estudado por Humphrey Davy, até o uso do éter e do clorofórmio, que se difundiram após 1845, tais substâncias tornaram-se veículos químicos de um estado mental, consolo universal do pior dos sofrimentos humanos: a dor física.
A discussão sobre o uso do éter como anestesia provocou repercussões morais e políticas. O Vaticano se opunha ao uso de anestesia em partos (foi um escândalo quando a rainha Vitória realizou seu oitavo parto com anestésicos, em 1853). O fato da anestesia provocar um adormecimento cheio de sonhos parecia especialmente perigoso, sobretudo para as pacientes femininas, que poderiam perder o seu auto-controle, ao ponto de, num debate sobre o uso do éter como anestésico na Academia de medicina de Paris, no início de 1847, Magendie chegar a afirmar que: “Fala-se de sonhos agradáveis, de êxtases, de sensações voluptuosas (...) eu vejo aí muito mais perigos do que vantagens. O que sei de certo a este respeito é que mulheres, moças sobretudo, tem sonhos eróticos, acessos de histeria, algumas até mesmo acessos de furor uterino, que poderiam não ser sem perigos para as pessoas que as rodeiam, e particularmente para os senhores cirurgiões (...) ora, eu pergunto, isto é uma coisa moral ?” .
O sonho também mostrou-se reprodutível pelo mesmo mecanismo das drogas. Sua investigação pioneira na obra de Thomas de Quincey, abre um espaço para a compilação da tipologia do onírico, para um arquivo das imagens do fantástico. Essa tipologia imagética tem função estética e literária, sendo usada amplamente pela escola da narrativa fantástica, com De Quincey, Musset, Poe, Baudelaire, Gautier, e mais tarde pela poesia simbolista, mas também é alvo de um olhar investigativo científico que quer conhecer todas as formas de manifestação do espírito humano. O experimentalismo das formas de consciência é aberto pelo uso controlado de drogas que permite desvendar o lado oculto e noturno do espírito. Se o espírito se resume à consciência, memória e imaginação, como consciência do momento, do passado e projeção do futuro, todas as suas esferas serão passíveis de estímulo e análise psicoquímica.
O imaginário das drogas mudou de acordo com as épocas até chegar ao atual produto de um século de proibicionismo, com os seus estereótipos do viciado como paradigma da degeneração física e mental. Muito antes, entretanto, da invenção do quadro clínico do vício, as drogas forneceram elementos indispensáveis para a atmosfera cultural da modernidade e para a abordagem estética e científica dos fenômenos da mente humana.
Segundo Max Milner, Thomas De Quincey com a publicação das Confissões de um comedor de ópio, em 1821, inaugurou a teorização da relação entre a droga e a criação poética.
A experiência oitocentista das drogas, de certa forma funda a psicologia na medida em que fornece um instrumento de produção de diferentes estados de consciência que permitem uma observação de si-próprio como nunca antes alcançada, “um reflexo de si mesmo  (...) a sombra espelho simbólica destinada à refletir à luz do dia o que deveria de outra forma permanecer escondido para sempre”. É assim que os espíritos curiosos sobre si próprios serão seduzidos incessantemente por esta via para o auto-conhecimento: “é um assunto de psicologia, um estudo sobre mim mesmo”, como escrevia Balzac numa carta. É a atitude experimental diante da consciência que inaugura uma ciência cujo objeto é o próprio sujeito observador, e os instrumentos produtores de consciência alterada permitem ampliar a gama dos três estados básicos da consciência: vigília, sono e sonho. O ópio e o haxixe trazem o sonho para a vigília, confundem-nos num novo estado. Os anestésicos trazem o sono para a vigília, anulando-a quimicamente de uma forma tão absoluta que se tornaram possíveis as intervenções cirúrgicas indolores.
A droga será vista nesse imaginário romântico do início do século XIX como um instrumento para sonhar. Na segunda edição, de 1856, De Quincey declara que o seu livro foi escrito na “intenção de expor este poder específico do ópio sobre a faculdade de sonhar”. O ópio “aviva as cores das cenas dos sonhos, aprofunda suas sombras e reforça o sentido de suas terríveis realidades”, mas ele não cria sonhos do nada (para De Quincey, eles dependem das preocupações diurnas, do passado, da cultura e do temperamento), mas estimula, sobretudo, “o poder de pintar toda sorte de fantasmas nas trevas”. Além de fazer sonhar acordado, o ópio franqueia regiões limítrofes, franjas entre os estados da consciência, produzindo visões hipnogógicas, que são aquelas que conduzem ao sono e surgem na zona crepuscular entre a vigília e o sono. A idéia do cérebro humano como palimpsesto que uma memória involuntária decifra surge primeiro em De Quincey, para depois manifestar-se em Freud e em Proust. Em De Quincey, as camadas do palimpsesto podem ser lidas através das lentes emprestadas pelo ópio.
O tema do sonho já fazia parte do acervo poético do romantismo. Mas as drogas trazem novos dados experimentais sobre as noções tradicionais do fantástico. A natureza precisa das sensações, percepções, pensamentos e emoções produzidas pelas drogas se tornará assim não só um repertório literário ampliado de imagens e temas como uma via privilegiada do estudo científico da mente. Aos conceitos de alucinações, ilusões, visões, êxtases se juntará outro: o de loucura.
A noção de loucura, então em constituição no discurso científico, encontrará no efeito das drogas uma poderosa analogia. O médico francês Jacques-Joseph Moreau de Tours publicou, em 1845, Du Haschisch et de l’aliénation mentale, onde buscava identificar os parentescos entre o haxixe e a loucura, que a obra de Gerard de Nerval exemplificaria. Numa época em que as especulações sobre a alma humana alcançavam uma expansão desvairante, com o mesmerismo, o espiritismo, o sonambulismo, os êxtases místicos e estéticos e a atmosfera onírica em geral fazendo parte da moda dos salões, o universo da loucura, do sonho e da droga encontravam o paralelo fácil: a loucura seria uma espécie de sonho acordado. A literatura refletindo esse clima renova também os temários tradicionais do gótico e amplia o gênero do fantástico com alusões diretas e indiretas à experiências farmacológicas (em Poe, Dumas, Flaubert, etc.).
Em Rimbaud essa busca deliberada e sistemática de alteração da consciência alcança um auge, com o “desregramento sistemático de todos os sentidos” para se obter a vidência. A poética alucinante de Rimbaud, “me habituei à alucinação simples (...) depois explicava meus sofismas mágicos pela alucinação das palavras”, manifesta uma atmosfera cultural onde o estatuto da experiência onírica, alucinatória, extática e poética era comparado, um exemplo é a obra Des Hallucinations ou Histoire raisonnée des apparitions, des visions, des songes, de l’extase, des rêves, du magnétisme et du somnambulisme, (3. Ed., Germer Baillière, 1862) de A. Brierre de Bosimont.. A definição precisa de alucinação, assim como de todas as faculdades mentais, era um dos temas centrais no debate da psicologia nascente. Esquirol definia alucinação como “um homem que tem a convicção íntima de uma sensação atualmente percebida sem que nenhum objeto exterior próprio a excitar esta sensação esteja ao alcance de seus sentidos está num estado de alucinação: é um visionário” (Des maldies mentales, Baillière, 1838). Este debate foi realizado, em 1856, pela Sociedade médico-psicológica de Paris, onde as drogas eram apresentadas como “alucinações voluntárias”.
Procurava-se assim, distinguir-se não só os tradicionais vigília, sono e sonho, mas todos os “estados de consciência”, como alucinação, ilusão, sonambulismo, efeitos de drogas, hipnose, etc. A distinção precisa entre tais estados era motivo de grande controvérsia, para alguns, como o Dr. Buchez, “a sensação real, a representação mental e a alucinação são fenômenos da mesma essência. Entre a representação mental e a alucinação só há uma diferença de grau. Certos pintores, certos compositores possuem a capacidade de representar os objetos até a alucinação”.
Todos estes estados confluíram para constituir um modelo clínico que se cristalizou ao final do século XIX: o da toxicomania. Após a aparição da morfina, houve uma tendência em se abranger no amplo modelo médico-estatal de controle da vida cotidiana das populações e de adoção de normas disciplinares dos corpos, centrado sobre os mecanismos da sexualidade, também a prática do consumo de drogas. O modelo eugenista sexista-racista que fundamentava as ciências sociais e biomédicas do final do século, e operava, segundo Foucault, sobre o tríplice eixo da perversão-hereditariedade-degenerescência, se deslocará também para os prazeres químicos, acusados igualmente ao sexo de possuírem um componente vicioso, causador de extrema dependência e ao mesmo tempo de completa degradação física e espiritual.
O eixo no caso das drogas obedece aos mesmos pressupostos teóricos: as drogas causam degeneração do indivíduo e, portanto, da sociedade, são doenças sociais e individuais, de caráter epidêmico, pois altamente contagiantes. São um dos principais fatores anti-eugênicos, pois poluem o sangue e a raça, que se torna degenerada, por isso atinge especialmente as mulheres, que possuem constituição mais frágil. A noção médica e eugênica de decadência física e racial se uniu à noção de decadência política, moral e filosófica, assim como estética e literária. A droga tornou-se, de acordo a esta visão, um símbolo indiscutível desta decadência, restando debater apenas se causa ou conseqüência.
Até mesmo a busca do desconhecido, a sede de aventura, quando levada ao extremo levaria ao vício. Como escrevia Octave Doin (1889): “o estado mental tão especial dos hereditários, dos degenerados (...) que consiste sobretudo numa apetência, numa sede de desconhecido e de sensações ainda não experimentadas. Esta sede do desconhecido se encontra, evidentemente, entre os indivíduos mais ponderados e é mesmo a base de todos os nossos conhecimentos científicos. Mas, no hereditário degenerado, esta busca é levada ao extremo e chega ao delírio”.
A curiosidade experimental em geral, indispensável entre os homens de ciência, é considerada como uma “predisposição neuropática hereditária”, e torna-se uma “tendência a estudar a sua organização mental e experimentar sobre ela”. A busca de sensações raras, que existe entre os “degenerados”, designados como “cerebrais”, “originais” ou “superiores”, se explica, segundo o Dr. Ernest Chambard, devido à “diminuição intelectual e moral de uma raça envelhecida”. 
Particularmente as mulheres seriam afetadas pelo vício, pois sua sexualidade reclamaria o prazer específico da morfina, por isso todas as morfinômanas são ninfômanas e as eterômanas são erotômanas. Consolida-se no final do XIX uma conexão entre morfinomania, sexualidade feminina e lesbianismo. A seringa de Pravaz (com trocadilho para depravar) torna-se o fetiche máximo, cravejada de brilhantes em estojos de prata, forma fálica de êxtase que dispensa o homem.
Passado mais de um século, e a droga continua fazendo valer a sua importância na economia da libido humana. Alçada à condição de principal mercadoria do mundo, os meios químicos de prazer sofreram um crescimento análogo em seu valor mercantil e em sua influência econômica, social e cultural. Ao mesmo tempo que cresce a demanda pelo prazer químico, também institui-se um sistema proibicionista que apóia-se num discurso médico-jurídico para justificar uma pretensa guerra contra as drogas que, na verdade, desde a Lei Seca de 1919, nos EUA, só tem servido para aumentar o lucro e a violência. A história dessa guerra, em seus aspectos econômicos, culturais, políticos e militares ainda está sendo escrita.

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Jornal do Brasil
O crack que ninguém queria ver
Jorge Jaber ([i])
Ainda não há nenhum remédio que cure a dependência da cocaína. E cada vez se usa mais o crack, o substrato da droga, portanto mais fatal que ela. Essa é uma das tristes conclusões que trago das aulas que assisti no início deste mês na Universidade de Harvard, nos Estados Unidos. Ano após ano, busco a reciclagem no curso de Educação Médica Continuada da Universidade, o que me confere autorização da Associação Médica Americana para continuar atuando como especialista pós-graduado em dependência química.
Isso tem explicação em uma doença social. O crack deve ser visto como um produto qualquer dentro do sistema capitalista. Como uma solução mágica, ele vem revestido da ideia de felicidade imediata, satisfação instantânea, a preço muito baixo, já que cada pedra pode sair a R$ 1,00. Além disso, há uma forte propaganda boca a boca, enaltecendo o uso de drogas como sendo ‘uma boa’.  Penso que a propaganda favorável aumenta à custa dos que se calam. O problema é que a grande maioria não diz aquilo que pensa. Essa pouca manifestação em geral é por temor de represália de violência, já que a venda do produto tóxico é realizada em ambientes sujeitos à violência, mas também pode ser por medo social de ser rejeitado por não estar de acordo com a conduta geral. Chegamos ao ponto absurdo em que um veneno extraordinariamente nocivo como o crack  é usado nas ruas, por crianças, e fingimos que não estamos vendo.
E o pior: quando o governo toma a atitude de tratar destes menores, começa a receber críticas.  Defendo a internação compulsória de menores proposta pelo Secretário Municipal de Assistência Social do Rio, Rodrigo Bethlem, que conta com minha assistência sempre que precisar. Conter involuntariamente uma criança que esteja se drogando é atitude humana, amparada na lei e tem o apoio do juizado de menores. É preciso considerar que nem sempre a pessoa que quebra um braço quer ser atendida pela ambulância: muitas vezes porque não conseguem avaliar adequadamente suas necessidades. A questão já foi até debatida por nós na Comissão de Justiça da Câmara dos Deputados, em Brasília, e o projeto do combate ao crack no Rio - mesmo imperfeito por ser uma espécie de cobaia está sendo imitado em outros estados.
Vamos lembrar que crack  é uma droga que entra muito rapidamente na circulação sanguínea, enfraquecendo o organismo e predispondo-o a doenças infecciosas e à morte. Causa doenças pulmonares graves, porque o usuário respira veneno, a escória da cocaína. Quem se droga, se descuida da alimentação, ingerindo menos proteína e fabricando menos anticorpos. Também não se importa com a higiene, permitindo a entrada de micróbios agressores no organismo. O crack cria dependência em menos de dez vezes de uso. Sua ação cerebral grave altera a condução do pensamento, levando a transtornos mentais e comportamentais sérios, com aumento significativo da agressividade.
Minha experiência clínica me permite afirmar que até cinco anos atrás eram pouco frequentes as internações por crack no país. Mas agora, é raríssimo encontrar alguém internado para tratar dependência química que não tenha usado crack. Com isto, o tempo das internações também mudou. Se antes, precisávamos de 60 dias de internação para casos graves de dependência de cocaína, hoje são necessários seis meses para estancar a compulsividade que toma conta do usuário de crack, com equipe de médicos, enfermeiros, psicólogos, terapeutas ocupacionais, fisioterapeutas, professores de Educação Física, nutricionistas...
E depois da alta, o paciente depende de acompanhamento 24h e frequência aos grupos de Narcóticos Anônimos, o recurso gratuito de manutenção da abstinência, para não facilitar a temida recaída.
Há muito tempo, ofereço um espaço gratuito para tratamento ambulatorial de dependentes químicos na Câmara Comunitária da Barra da Tijuca([ii]), onde também formo conselheiros. Este ano, o curso gratuito conta com 160 alunos. Serão eles que, em 2013, como todos os anos, vão se organizar para colocar na rua a banda Alegria Sem Ressaca, que faz prevenção à dependência química, desfilando pela orla de Copacabana no domingo anterior ao Carnaval.  Será o décimo desfile da banda, que tem a atriz Luiza Tomé, familiar de dependente químico, como madrinha.

[i] Jorge Jaber é médico, especialista em dependência química pela Um de Harvard, diretor científico da Associação Brasileira de Alcoolismo e Outras Drogas (ABRAD), e assessor da presidência Associação Brasileiro de Psiquiatria, para assuntos ligados à dependência química (ABP).
[ii] Sugiro que liguem (21. 2431-5071) para esse serviço e se informem que tipos de atendimento são feitos ali e por quem, principalmente, os remunerados.
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Maioria dos usuários da Cracolândia se submeteriam a tratamento, afirma pesquisa da Uniad/Unifesp
Pesquisadores entrevistaram 170 usuários em dezembro de 2011 para traçar o perfil do usuário de crack. 34% defende a internação involuntária em determinadas ocasiões
Pesquisa realizada pela Uniad/Unifesp (Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas da Universidade Federal de São Paulo) procurou compor um perfil do usuário de crack e ouviu 170 dependentes da região em dezembro de 2011.
Apesar do retrato desolador, 47% dos entrevistados se submeteriam a um tratamento e 62,3% expressaram o desejo de parar de usar drogas. Uma parte menor (18,8%) afirmou que gostaria de se submeter a um tratamento que permitisse apenas diminuir o consumo, sendo que uma parte similar (18,9%) não deseja interromper ou diminuir o consumo da droga.
Segundo a pesquisa, 51% dos usuários acreditam conseguir parar sem internação, enquanto 46% acham que só com tratamento é possível interromper o uso da droga. Segundo o relatório, 34% dos entrevistados aceitam que o tratamento da dependência do crack envolva, ocasionalmente, uma internação involuntária.
A maioria dos usuários (61%) já se submeteu a tratamento alguma vez na vida. Entre as organizações que ofereceram tratamento estão Igreja (53%), ONGs (22%), projetos sociais (10%), família ou amigos (5%), casas de recuperação (2%) e não informaram quem ofereceu (8%).
Esse dado é muito relevante, pois aponta que existe uma vontade do usuário de interromper o uso”, explica o psiquiatra Marcelo Ribeiro que, ao lado de Ronaldo Laranjeira e Lígia Duailibi, coordenou a pesquisa.
Entre os 170 usuários ouvidos pela equipe da Uniad/Unifesp, 102 são homens e 68 mulheres, sendo que entre elas 10% são gestantes.
Em relação aos recursos para obter drogas, 59% afirmam ter dinheiro próprio para a compra do produto, 13% reconhecem apelar ao roubo, outros 13% recorrem à troca de objetos pessoais, 12% obtêm os recursos de esmolas, 9% de furtos, outros 9% de dinheiro obtido de venda de objetos de família, 11% trocam droga por sexo e 13% prestam serviços ao traficante.
Quase um terço dos que responderam à pesquisa afirmaram ter sofrido algum tipo de violência da Cracolândia em dezembro. Seis mulheres afirmaram ter sido vítimas de abusos sexuais na região, provocados por outros usuários. Mais da metade dos usuários ouvidos presenciaram mortes na Cracolândia
Mais da metade dos usuários (54%) já foram detidos ou presos. Entre eles, 46% informaram que o motivo da detenção eram relacionados ao consumo de crack.   
Tratamento
Marcelo Ribeiro e Ronaldo Laranjeira são autores do primeiro tratado escrito no Brasil sobre usuários de crack, lançado pela editora Artmedia: “O Tratamento do Usuário do Crack” (Artmed).
A obra reúne os estudos mais recentes sobre o tema, abordado sob três frentes:
1)   os subsídios teóricos para o tratamento da dependência do crack, com epidemiologia; a história natural do consumo e sua relação com a violência; e a neurociência aplicada ao tratamento do consumo de crack.
2)  Os componentes do tratamento da dependência da droga, incluindo planejamento, avaliação, técnicas e manejo, reabilitação, ambientes ideal, avaliação e conduta em situações específicas.
3)  As políticas públicas relacionadas ao consumo do crack, incluindo políticas de prevenção, tratamento, reabilitação e reinserção social.
Entre os pontos polêmicos abordados, “O Tratamento do Usuário de Crack” fala sobre o uso do esporte como apoio ao tratamento, considerado por alguns um modo de trocar um vício “ruim” por outro “positivo”. Os bons resultados obtidos ao se adotar a abordagem espiritual em conjunto com o tratamento clínico e psicológico também são abordados. Além disso, os autores fazem uma proposta que vai contra o que se acreditava antes: combater, também, o tabagismo, como forma reforçar e consolidar o sucesso de um tratamento que não objetiva a simples abstinência, mas propõe um percurso de reintegração do indivíduo na sociedade.
O livro termina com um capítulo sobre as políticas públicas para a prevenção, pauta importante, inclusive se pensarmos nas polêmicas sobre as recentes propostas de combate ao consumo no Rio de Janeiro e em São Paulo, onde foram levantadas as possibilidades de internação compulsória dos usuários ou a proposta de devolver os usuários para os seus estados de origem. O livro traz propostas e modelos de atenção descritos de forma pragmática, por meio de protocolos e recomendações úteis para os interessados na organização de serviços de atendimento e para os encarregados de implementar redes de atendimento e políticas de saúde mais amplas

Sobre os organizadores
Marcelo Ribeiro é psiquiatra, Doutor em Ciência pelo Departamento de Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), Membro do Instituto Nacional de Políticas Públicas do Álcool e Drogas (INPAD/UNIFESP), além de Diretor de Ensino da Unidade de Pesquisas em Álcool e Drogas (UNIAD) da UNIFESP.
Ronaldo Laranjeira é PhD em Psiquiatria pela Universidade de Londres, Professor Titular do Departamento de Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), Coordenador da Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas (UNIAD) da UNIFESP e Investigador Principal do Instituto Nacional de Políticas do Álcool e Drogas (INPAD) do Conselho Nacional de Pesquisas (CNPq)
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OUTRAS PALAVRAS – 25/02/2012
Um controle psiquiátrico da dissidência?
Comportamento anti-autoritário, que recomenda avaliar poder antes de respeitá-lo, pode estar sendo reprimido desde a infância por diagnósticos e medicamentos questionáveis
Por Bruce E. Levine
Tradução: Antonio Martins
Imagem: Rico GatsonO Grupo
Em minha carreira como psicólogo, falei com centenas de pessoas antes diagnosticadas por outros profissionais como portadoras de Transtorno Desafiador de Oposição (TDO), Transtorno do Déficit de Atenção / Hiperatividade (TDAH), Transtorno de Ansiedade e outras doenças psiquiátricas.
Estou chocado por dois fatos:
1) quantos destes pacientes são, em essência, anti-autoritários;
2) como os profissionais que os diagnosticaram não o são.
Os anti-autoritários questionam se uma autoridade é legítima, antes de levá-la a sério. Sua avaliação de legitimidade inclui avaliar se as autoridades sabem de fato do que estão falando; se são honestas; e se se preocupam com aqueles que as respeitam. Quando anti-autoritários avaliam uma autoridade como ilegítima, eles desafiam e resistem a seu poder. Certas vezes, de forma agressiva; outras, de forma agressivo-passiva. Às vezes, com sabedoria; outras, não.
Alguns ativistas lamentam como parecem ser poucos os anti-autoritários nos Estados Unidos. Uma razão pode estar em que muitos anti-autoritários são psico-diagnosticados e medicados antes de formarem consciência política a respeito das autoridades sociais mais opressoras.
Por que profissionais de Saúde mental veem anti-autoritários como portadores de distúrbios mentais
Conquistar aceitação nas escolas superiores ou de especialização de medicina, e obter um doutoramento ou pós-doutoramento como psicólogo ou psiquiatra, significa superar muitos obstáculos. Requer adequar-se comportamentalmente a autoridades – inclusive aquelas pelas quais não se tem respeito. A seleção e socialização dos profissionais de saúde mental tende a excluir muitos anti-autoritários. Graus e credenciais são, antes de tudo, atestados de adequação. Quem estendeu seus estudos, viveu longos anos em um mundo onde é preciso conformar-se rotineiramente com as exigências de autoridades. Por isso, para muitos doutores e pós-doutores em saúde mental, pessoas diferentes, que rejeitam esta adequação comportamental, parecem ser de outro mundo – um mundo diagnosticável.
Descobri que a maior parte dos psicólogos, psiquiatras e outros profissionais de saúde mental não são apenas extraordinariamente adequados às autoridades – mas também inconscientes da magnitude de sua obediência. Também tornou-se claro para mim que o anti-autoritarismo de seus pacientes cria enorme ansiedade entre estes profissionais, o que impulsiona diagnósticos e tratamentos.
Na universidade, descobri que para ser rotulado como alguém com “problemas com autoridade”, bastava não bajular um diretor de treinamento clínico cuja personalidade era uma combinação de Donald Trump, Newt Gingrich e Howard Cosell. Quando alguns professores me disseram que eu tinha “problemas com autoridade”, reagi ao rótulo com sentimentos contraditórios. Por um lado, achei interessante, porque entre os filhos de trabalhadores, com quem havia crescido, eu era considerado de certa forma obediente à autoridade. Além disso, eu tinha feito minhas lições de casa, estudado e recebido boas notas. Entretanto, embora os meus novos “problemas com autoridade” deixassem-me alegre, por ser agora visto como um bad boy, também me preocupava com o tipo de profissão em que estava entrando. Mais especificamente, se alguém como eu era visto como tendo “problemas com autoridade”, como seriam chamados os garotos com quem cresci – atentos a tantas coisas que lhes interessavam, mas não suficientemente interessados com a escola para obedecê-la? Logo a resposta tornou-se clara.
Diagnósticos de doença mental para anti-autoritários
Um artigo de 2009 no Psychiatric Times, intitulado “TDO e TDAH: Enfrentando os Desafios do Comportamento Disruptivo”, relata que os “transtornos disruptivos”, uma categoria que inclui o Transtorno do Deficit de Atenção / Hiperatividade (TDAH) e o Transtorno Desafiador de Oposição (TDO), são os problemas de saúde mental mais comuns em crianças e adolescentes. O TDAH é definido por baixa atenção e tendência à distração; baixo auto-controle, impulsividade e hiperatividade. Já o TDO é definido como “um patrão de comportamento negativista, hostil e desafiante, sem as violações mais sérias dos direitos básicos de outros vistas no transtorno de conduta”. Os sintomas do TDO incluem “desafiar ativamente, ou recusar-se a obedecer com frequência as ordens e regras dos adultos” e “discutir frequentemente com adultos”.
O psicólogo Russel Barkley, uma das grandes autoridades da saúde mental mainstream em TDAH, diz que os que padecem deste mal têm déficits no que chama de “comportamento regrado”, já que são menos obedientes às regras das autoridades estabelecidas e menos sensíveis às consequências positivas ou negativas. Pessoas jovens com TDO também têm, segundo as autoridades do mainstream, os tão falados déficits em comportamento regrado. Por isso é tão comum, entre jovens, um “duplo diagnóstico” de TDAH mais TDO.
Realmente queremos diagnosticar e medicar todos os que têm “déficit em comportamento regrado”?
Albert Eisnten, quando jovem, teria provavelmente recebido um diagnóstico de TDAH, e talvez também de TDO. Ele não prestava atenção em seus professores, fracassou duas vezes nos exames de admissão à escola secundária e tinha dificuldades em conservar empregos. No entanto, Ronald Clark, um biógrafo de Einstein (Einstein: The Life and Times), sustenta que seus problemas não provinham de déficits de atenção, mas de seu ódio à disciplina autoritária, prussiana de suas escolas. Einstein dizia: “Os professores da escola primária pareciam-me sargentos e os do ginásio eram como tenentes”. Aos 13, ele leu o difícil Crítica da Razão Pura, de Kant – por estar interessado no livro. Clark também conta que Einstein recusava-se a se preparar para os exames de admissão ao ensino médio: era uma forma de rebelião contra o “intolerável” caminho exigido por seu pai, rumo a uma “profissão prática”. Depois que ele finalmente ingressou, um professor disse-lhe: “Você tem um defeito: ninguém pode te dizer nada”. As características particulares de Einstein, que tanto espantavam as autoridades, eram exatamente as que lhe permitiram destacar-se.
Para os padrões atuais, Saul Alinsky, o legendário organizador social autor de Regras para Radicais, teria sido certamente diagnosticado com um ou mais transtornos disruptivos. Rememorando sua infância, ele afirmou: “Eu nunca pensava em caminhar na grama até que via uma placa dizendo: ‘Não pise na grama’. Então, eu sapateava em cima dela”. Alinsky também recorda de uma ocasião, quando tinha 10 ou 11 anos, e seu rabino ensinava-lhe hebraico.
“Certo dia, li três páginas sem erros de pronúncia, e de repente uma moeda caiu sobre a Bíblia… No dia seguinte, o rabino voltou e me pediu para começar a ler. Simplesmente sentei em silêncio, recusando-me. Perguntou-me por que estava tão quieto e respondi: ‘Desta vez, é uma nota ou nada’. Ele começou a me bater”.
Muitas pessoas com ansiedade severa e ou depressão também são anti-autoritárias. Uma grande dor em suas vidas, que alimenta sua ansiedade e ou depressão, é o temor de que o desprezo a autoridades ilegítimas as torne social e financeiramente marginalizadas. Porém, também temem que a obediência a tais autoridades cause-lhes morte existencial.
Também empreguei muito tempo com pessoas que, numa época de sua vida, tiveram pensamentos e comportamentos bizarros a ponto de serem assustadores, para suas famílias e para si mesmas. Tinham diagnósticos de esquizofrenia e outras psicoses, mas se recuperaram e desfrutaram, por muitos anos, vidas produtivas. Neste grupo, nunca encontrei ninguém que não considerasse um grande anti-autoritário. Assim que se recuperaram, aprenderam a direcionar seu anti-autoritarismo para fins políticos mais construtivos – inclusive a reforma do sistema de saúde mental.
Muitos anti-autoritários que em fases anteriores de suas vidas tiveram diagnósticos de doenças mentais relatam que, ao serem rotulados como pacientes psiquiátricos, entraram num dilema. Autoritários exigem, por definição, obediência sem questionamentos. Por isso, qualquer resistência a seus diagnósticos e tratamentos causa enorme ansiedade em profissionais de saúde mental com este tipo de postura; e médicos que se sentiam descontrolados rotulavam estes pacientes como “refratários a tratamento”, expandindo a severidade do diagnóstico e entupindo-os de medicação. Às vezes, isso enraivecia de tal modo os anti-autoritários que sua reação os fazia aparecer ainda mais assustadores para suas famílias.
Há anti-autoritários que usam drogas psiquiátricas para ajudá-los a funcionar. Ainda assim, frequentemente rejeitam as explicações das autoridades psiquiátricas sobre quais são suas dificuldades. Podem, por exemplo, tomar Adderall (uma anfetamina prescrita para TDAH). Mas sabem que seu problema de atenção não resulta de um desequilíbrio bioquímico do cérebro, mas de um trabalho enfadonho. Da mesma forma, muitos anti-autoritários submetidos a ambientes muito estressantes podem ocasionalmente tomar benzodiazepínicos como Xanax. Pensam que seria mais seguro usar maconha, mas os testes de drogas existentes nas empresas a detectariam…
Minha experiência sugere que muitos anti-autoritários rotulados com diagnósticos psiquiátricos não rejeitam todas as autoridades, mas apenas aquelas que avaliam como ilegítimas. Ocorre que nessa categoria poderia ser enquadrada boa parte das autoridades, em nossa sociedade…
Agindo para manter o Status Quo
Os norte-americanos têm sido convencidos a considerar desatenção, raiva, ansiedade e desespero imobilizante como condições médicas – e a procurar tratamento farmacológico, em vez de soluções políticas. Haveria meio melhor de manter o status quo do que ver em tais reações problemas de quem está mentalmente enfermo – e não atitudes normais, diante de uma sociedade cada vez mais autoritária?
A realidade é que a depressão está altamente associada com dores sociais e financeiras. É muito mais provável tornar-se deprimido quando você está desempregado, subempregado ou em dívida (ler “400% Rise in Anti-Depressant Pill Use”). E é inegável: crianças rotuladas como portadoras de TDAH prestam atenção quando estão sendo recompensadas, ou quando uma atividade é nova, desperta seu interesse ou foi escolhida por elas (documentado em meu livro Commonsense Rebellion).
Numa idade das trevas anterior, as monarquias autoritárias associavam-se às instituições religiosas. Quando a humanidade superou esta fase e abriu-se o Iluminismo, houve uma explosão de energia. Muito da revitalização tinha a ver com arriscar-se diante de instituições autoritárias e corruptas; e com reconquistar confiança na própria mente. Vivemos uma nova era de trevas: mudaram apenas as instituições. Os EUA necessitam desesperadamente de anti-autoritários para questionar, desafiar e resistir às novas autoridades ilegítimas; e para reconquistar confiança em seu próprio senso comum.
Em todas as gerações, há autoritários e anti-autoritários. Embora seja incomum, na história dos EUA, que os anti-autoritários adotem ações efetivas, capazes de inspirar os demais à revolta que resulta em mudanças, de vez em quando um Tom Paine, Crazy Horse ou Malcolm X aparece. Então, os autoritários marginalizam financeiramente quem resiste ao sistema, criminalizam o anti-autoritarismo, psico-diagnosticam os anti-autoritários e produzem drogas de mercado para sua “cura”.
Bruce E. Leving (site: www.brucelevine.net) é psicólogo clínico nos EUA, há cerca de três décadas. Conhecido por suas posições anti-hegemônicas, escreve e debate sobre as intersecções entre Sociedade, Política, Cultura e Psicologia. É autor, entre outros livros, de Commonsense Rebellion (2003), Surviving America Depression Epidemic (2007) e Get Up, Stand Up: Uniting Populists, Energizing the Defeated, an Battling the Corporate Elite (2011).
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SAÚDE COM DILMA
 11.12.2011
Para além dos slogans sobre o Crack
Rafael Gil Medeiros([1])
Quando a cerimônia de lançamento do Plano Nacional de Enfrentamento ao Crack tem início, na manhã do dia 07 de Dezembro de 2011, fico sabendo de sua transmissão online.
 Clicando em alguns links, pude tecer um relato do que vi e ouvi, não só como cidadão preocupado com os problemas associados ao uso abusivo e problemático de drogas (incluindo-se o crack) e igualmente preocupado com os problemas associados às políticas públicas sobre drogas, mas sobretudo a partir das experiências que tive e tenho com o trabalho na Saúde e na Assistência Social, junto a pessoas que usam crack e sua rede afetiva e familiar.
Não vi toda a programação, mas bastaram-me os pronunciamentos que seguem comentados: o do ministro da Saúde, Alexandre Padilha; do ministro da Justiça, José Eduardo Cardoso; de Jacques Wagner, atual governador da Bahia; e da atual presidenta, Dilma Rousseff.
Ministro da Saúde, Alexandre Padilha
Locais seguros e atuação nas cenas de uso
No começo de sua fala, ouvimos sobre a necessidade de construímos lugares seguros para acolher as pessoas que usam crack (e, espero eu, que usam drogas ilícitas em geral). Enquanto aguardamos a apresentação das estratégias em si, fico pensando na conjuntura social em que tais serviços atuarão, principalmente preocupado em saber em que medida tais lugares seguros são possíveis de ser criados, numa sociedade na qual a polícia ainda cumpre um papel que é o de extermínio e controle das populações pobres. Em uma pesquisa citada pelo próprio ministro, as mortes violentas, apontadas como causa principal da mortalidade dentre pessoas que usam crack, associam-se não a questões clínicas do crack no organismo, mas sim, a questões da forma como a política de guerra às drogas aborda as pessoas que as usam – como inimigas.
Após falar na disponibilização de locais seguros, o ministro fala na importância dos trabalhadores da saúde atuarem no território. Acontece que, se os trabalhadores da saúde precisam trabalhar acompanhando esta realidade (e não há outra forma de lidar com problemas da vida senão os acompanhando), seria preciso mudar a lógica das políticas públicas também. Ou entendemos que as drogas (e problemas associados) fazem parte da vida, e os acompanhamos (coisa até então pouquíssimo tentada e valorizada, como veremos a seguir), ou então seguimos com o velho posicionamento de combater esta realidade, tão confusos quanto Dom Quixote diante dos moinhos de vento.
Queremos mesmo acessar pessoas que usam crack?
Pra começo de conversa: como é que as pessoas que usam crack e outras drogas podem “se sentir à vontade para falar sobre seus usos”, como quer o Ministro Padilha (e como queremos todos nós, a princípio) numa sociedade que proíbe a existência destas pessoas, estigmatizando-as? Um sentimento de vergonha alheia me toma, diante da fala de um ministro da Saúde que não parece situar a diferenciação entre usos e abusos de drogas, principalmente sem levar em conta que não se tratam de destinos, mas estágios de vida – dos quais, vale lembrar, ninguém está livre.
O cotidiano dos serviços de alta complexidade, nos quais estamos baseando nossas respostas, jamais trará dados suficientes sobre como se dão tais processos de usos abusivos. Daí a necessidade de acompanhamento e vínculo – de uma presença – em ações de promoção de saúde nos espaços de usos, combinado com a oferta de centros seguros de convivência, ter a potencialidade não só de reduzir a demanda por internações, mas principalmente, a de dar um sentido às internações eventuais, na continuidade de uma escuta. Planos de vida só podem ser operados e reinventados na própria vida. Mesmo que a passagem por espaços de isolamento ou por medidas de desintoxicação possam também compor este processo, estes perderão sua potencialidade sem o devido acompanhamento no território. Recolocamos a pergunta: queremos mesmo acessar estas pessoas e ajudá-las a enfrentar seus eventuais problemas com o crack, ou meramente encaminhá-las à internação e ao isolamento?
Se for esta a motivação do Plano, definitivamente não serão os consultórios de rua (estratégia cuja ampliação o ministro alardeia como positiva em si mesma), que resolverão o problema do acesso às pessoas que usam drogas. Devemos ter em mente tais ações operando sob uma política educativa de grande porte que ajude a desconstruir o estigma sobre quem usa drogas – do contrário, não haverá qualificação alguma na escuta destes consultórios, estejam ou não nas ruas. Em nenhum momento este aspecto foi citado como problemático para a falta de acesso destas pessoas aos serviços, ou dos serviços às pessoas.
Negando as potencialidades da atuação no território
Ao não colocar a estigmatização como algo também a ser “enfrentado”, os profissionais de saúde (e familiares) não terão elementos pra julgar o que são demandas de internação ou não – eles mais provavelmente desejarão internar a todos, já que não estão recebendo incentivos a pensar de outro modo além de um sensacionalismo antidrogas irresponsável.
Podemos entender que uma pessoa que tenha problemas com o crack encontre-se desestruturada em várias questões de vida que terão de ser trabalhadas, se é que queremos chamar nosso apoio de terapêutico, e não de mero paliativo.
Podemos entender, também, que os familiares destas pessoas vejam a si mesmos desassistidos para lidar com a situação. Igualmente compreensível é o posicionamento da FEBRACT que em recente seminário em Campinas/SP disse que “as Comunidades Terapêuticas são os únicos recursos que as famílias dispõem”. Mas que os gestores assumam este posicionamento fechado unicamente sobre consequências, sem olhar e trabalhar a partir de suas causas (causas diversas, que dirão respeito a cada pessoa que usa crack) é de uma irresponsabilidade criminosa.
Os também citados CAPS-AD cabem nesta mesma problemática: inicialmente projetados para operarem a partir destas questões singulares, individuais, bem como num acompanhamento das famílias, hoje não autorizam-se a acolher a demanda de famílias que, apoiando-se nos critérios sensacionalistas dos jornais locais, e sem recursos para falar sobre o assunto de modo mais aberto, também deseja unicamente a internação e o isolamento. Não de si mesmas, claro, mas dos culpados eleitos, os ditos drogados.
Quando estes retornam a casa após a desintoxicação e os espaços de tratamento em isolamento, paira o fantasma da recaída – para o qual também não olhamos causas, ao invés disso culpabilizando indivíduos por não terem conseguido seguir o caminho estreito que ofertamos. E assim indefinidamente, produzimos mais e mais pessoas distanciadas de referências em seus territórios, e por isto, mais e mais usos problemáticos.
A pretensão de nossas políticas públicas e de seus gestores é tamanha que, diante do total fracasso estatístico das estratégias ofertadas (desintoxicação e isolamento), ao invés de tecerem uma autocrítica, desejam impor, via ordem judicial, que as pessoas inscrevam-se nos programas já existentes, sem referência alguma quanto à eficácia dos mesmos (para além daquilo que atestam donos de clínicas e CTs e seus simpatizantes, como a Frente Parlamentar que os representa). Esperamos que a sociedade não demore tanto a descobrir que, entre inserção e adesão a um tratamento, há uma diferença gigantesca, assim como entre o número de pessoas que efetivamente beneficiam-se de tais estratégias, quando comparado como de pessoas que não são (e provavelmente nunca sejam) contemplados por elas. A questão, aqui, não é o acesso ou o número de vagas, e sim o tipo de trabalho realizado; motivo pelo qual a escolha por internações compulsórias constituem uma tragédia anunciada.
Porque não estamos trabalhando no território vivido, se estamos diante de uma “epidemia”?
O próprio Ministro Padilha deixa claro o quanto isso é importante, numa gafe que comete ao justificar que os CAPS-AD devem operar em 24h unicamente “porque os usuários não escolhem quando precisarão de desintoxicação, ou quando terão uma crise de abstinência”. Ora, então é pra isso que os CAPS-AD servem, no entender do Plano: não é pra dialogar com a demanda do território, ou pra compreender as causas da tal “epidemia”, mas sim, para encaminhar a espaços de confinamento e alta complexidade. O alarde sensacionalista, ao usar a palavra “epidemia”, deveria ao menos lidar como se estivéssemos, de fato, diante de uma epidemia, compreendendo como que os problemas acontecem e atuando sobre suas causas.
O ministro comparou a epidemia do HIV com aquilo que hoje chamam de epidemia do crack, como se fossem problemas de igual importância para o país. Antes fosse tratado com a mesma seriedade, competência técnica e coragem política, pois em momento algum dos esforços históricos no combate às infecções de HIV técnicos ou movimentos sociais perderam seu tempo tentando fazer a apologia a um mundo sem vírus. Simplesmente fizeram o que temos que fazer: compreender a realidade em que estamos, e trabalhar a partir dela. E fazer isso, ao contrário do que pensam as pessoas cegas pelo moralismo antidrogas, é muito diferente de desejar que os problemas aconteçam – assim como movimentos religiosos condenavam as primeiras campanhas de promoção de cuidado e sexo seguro.
A estratégia de Redução de Danos, que surgiu como intervenção para redução de contágios entre pessoas que usavam cocaína injetável, tem histórico inegável de eficácia, comprovado nas ruas e na academia. Desde o surgimento do crack, com a diminuição do uso de cocaína injetável, os Programas de Redução de Danos foram abandonados ou tornaram-se inutilizados. O que se esqueceu desta experiência é que o sucesso do trabalho de redutores e redutoras de danos pelo país não se deu pela mera troca de seringas limpas, mas pelo trabalho de vínculo e acompanhamento das pessoas que usam drogas nos seus próprios espaços de convivência. Desde que comecei a trabalhar como redutor de danos, nunca ouvi falar (como afirmam a grande maioria dos trabalhadores de clínicas e assemelhados) que este trabalho fosse algo de “difícil manejo”. A única dificuldade que relatamos, sem exceção, é a da disponibilidade, da vontade de trabalhar nestes contextos que são bem distantes do conteúdo ficcional (e quase infantil) das campanhas de prevenção antidrogas, bem como da formação de muitos profissionais.
Colegas redutores de danos de todo o Brasil queixam-se de uma demanda na inserção e no vínculo com esta dita população “difícil”, pois hoje a rede inteira pede para que intervenham sobre as famílias, fazendo não um trabalho compreensivo em saúde, mas sim, de encaminhamento à internações. A ideia de cura ainda persiste. Se a pessoa volta a usar drogas, é estigmatizada, culpabilizada. Entre uma coisa e outra, essa brava gente tenta trabalhar, de fato, promovendo sujeitos de cuidado, promovendo saúde, realizando matriciamento de equipes, articulação entre serviços de vários setores. Tudo isso sem perder o vínculo nas próprias cenas de uso, e atuando nos horários de uso.
Porque omitimos o histórico acúmulo técnico que já temos para lidar como crack?
Se o objetivo fosse o de tratar um problema de saúde de dimensões epidêmicas, certamente o ideal de eficácia não seria o da imposição de moralismos e ideais sobre corpo e saúde, exigindo-se pessoas abstinentes a torto e a direito – e o que é pior, sem condições mínimas para acompanhá-las em sua adesão.
As políticas de prevenção ao HIV/Aids aprenderam isso há décadas, tratando toda a diversidade de práticas sexuais – e inclusive as desprotegidas – como uma realidade a ser compreendida e trabalhada no que diz respeito ao cuidado em saúde, e não a ser “combatida”e “enfrentada”. Porque é que as políticas de prevenção aos problemas com drogas (comparando os usuários de crack ora a zumbis, ora aos mosquitos da dengue) não aprende com isso? Talvez porque aí demonstre a face mais crua do paradigma da guerra às drogas – que, vale lembrar, encontra-se como superado em sua eficácia pela própria legislação atual sobre drogas, a Lei nº13.343/06.
Esta imagem contraditória entre teoria e prática permaneceu clara no discurso do ministro, que após falar o que falou sobre os CAPS-AD, afirma que “os consultórios de rua, bem como agentes redutores de danos, não tem a função de encaminhar à internação compulsória”. A gafe se encontra no fato de que, em momento algum, o ministro mencionou (ou demonstrou saber) que funções, afinal, seriam estas dos consultórios de rua e dos Programas de Redução de Danos. Seria desconhecimento ou falta de coragem política? Não se diga que é um total desconhecimento, visto que o paradigma da promoção de saúde, com ações que se dão no território onde as pessoas vivem, e não em espaços de confinamento, é uma diretriz do SUS. O eixo orientador da Atenção (ou seja, do trabalho em Saúde) é na comunidade. O discurso do ministro deixou várias pistas sobre a importância deste ordenamento, ao citar, por exemplo, a grande diversidade de cenas de usos de crack – e, portanto, de relações problemáticas distintas entre si, que requerem obviamente a proposição de planos terapêuticos singulares. Ao defender a imposição de medidas compulsórias e unicamente espaços de isolamento, o Plano situa-se como se estivéssemos descoberto uma espécie de vacina contra a dita epidemia, que nunca será descoberta, pois estamos falando de práticas corporais diversas, não da infecção de um mesmo vírus (no caso o crack) em vários corpos. Enquanto isso, redutores e redutoras de danos de todo o país (com raríssimas exceções que eu desconheça), que tiveram grande sucesso promovendo saúde e prevenindo problemas em uma epidemia de fato – a do HIV – hoje sofrem um violento processo de precarização dos vínculos de trabalho, ausência de recursos mínimos e, novamente, falta de coragem política por parte de gestores.
Fazendo oposição à lógica do acompanhamento e compreensão do que está acontecendo nas diversas cenas de usos, o Plano mostra ações teoricamente inovadoras, mas que nada mais prometem fazer do que a reprodução do mesmo. Por isso mesmo, é preciso discordar do ministro quando este diz que estamos diante de um novo desafio. Estamos diante de um desafio já velho e que se torna cada vez mais dificultoso devido à imposição de moralidades antidrogas, esta também velha, e de uma epidemia noticiada e propagandeada pelos grandes anunciantes morais.
Perdoe-me dizê-lo, ministro, mas saiba de antemão que não será possível “vencer o crack”, pelo simples motivo de que não se trata de uma guerra. Se estas são vossas palavras de ordem, que você e seus companheiros, mais ou menos próximos, possam ter a dignidade de engolí-las a seco daqui a alguns anos. Ou neste exato momento, dá no mesmo. O plano não mudará em nada o Brasil, pois não está identificando as causas da desassistência das pessoas que usam crack ou outras drogas, e nem parece disposto à tão pouca auto-crítica necessária sobre os males advindos de nossa prepotência. Enquanto isso, querendo ou não, é fato que donos de clínicas e Comunidades Terapêuticas ganharão muito dinheiro com as recaídas. Juntamente, é claro, com a indústria farmacêutica e seus paliativos contra a “fissura”, geralmente prescritos de modo mecânico e irresponsável por “trabalhadores” da saúde que raramente chegaram a conhecer o que é uma cena de uso.
A que ponto estamos na dificuldade de falar “sobre drogas”
Outro tema levantado foi a capacitação de profissionais e graduandos em suas necessárias mudanças curriculares diante do tema das drogas através da SENAD. Resta saber se haverá o cumprimento daquilo que preconizou a atual legislação sobre drogas: a mudança de paradigmas antidrogas para o “sobre drogas”, que implica, pasmem, em reconhecer que as drogas existem, bem como pessoas que as usam.
Os materiais didáticos de cursos à distância promovidos pela SENAD desde 2006 (após a nova lei) apontam para o contrário: reproduzem mais da mesma cegueira quanto à história das drogas; e a mesma incoerência daqueles que se dizem preocupados com a sociedade e com o problema das drogas, mas que seguem silenciando sobre as práticas de extermínio legitimadas pela ideologia de “combate às drogas”. É preciso que a SENAD, caso pretenda atualizar o conteúdo de disciplinas nos espaços acadêmicos, atualize-se a si mesma, fazendo jus à mudança operada em sua sigla. Os materiais educativos da SENAD seguem silenciando sobre o papel das políticas de drogas na promoção de processos de tutela e estigmatização que fazem parte do problema, não da solução.
Por outro lado, não se pode entender como o ministério da Saúde propõe uma reforma curricular, bem como esforços de educação sobre tal temática nas escolas, sem partir dos pressupostos e diretrizes do Sistema Único de Saúde, mas sim de uma lógica do combate antidrogas (encontrada hoje na SENAD), que ao pregar o extermínio de pessoas que usam drogas, põe-se contra direitos constitucionais.
A saber: como podemos esperar que as pessoas com usos abusivos de crack sintam-se à vontade para falar sobre tais usos abertamente, se nem mesmo a Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas parece disposta a fazê-lo?
Promessas e expectativas colocada sobre os espaços de isolamento
O ministro apresenta, então, as parcerias com a rede de serviços “do terceiro setor” – em suas palavras, sempre aqueles com “abordagens terapêuticas as mais variadas possíveis” e “respeitando os direitos humanos”.
Claro, as Comunidades Terapêuticas grandes e instituídas não podem (e não querem) ser confundidas com as pequenas, ou até mesmo com as clandestinas. Mas a hegemonia das grandes, bem como o silenciamento político de entidades como a FEBRACT quanto às violências (físicas e verbais) que ocorrem não em fazendas, mas no cotidiano da guerra às drogas de um modo geral, legitima a ideologia antidrogas, permitindo inegavelmente o crescimento exponencial das pequenas, e das demandas pela exclusão social dos ditos drogados. Todas as CTs unem-se nestes sentidos: primeiramente, enquanto espaços de confinamento que, do ponto de vista da terapêutica nada oferecem de diversidade, visto todas pautarem-se em programas para pessoas que desejam não usar drogas.
Acontece que falar em diversidade, aqui não é falar no número de CTs à disposição, tampouco nas diferentes religiosidades que permeiam suas propostas terapêuticas. Estamos falando na diversidade de relações possíveis através das drogas, o que apontaria para as pessoas que também beneficiam-se de abordagens de promoção de saúde no território onde vivem (e aí sim, talvez pudéssemos falar em prevenção de fato). Já de antemão, perguntar-se-ia ao ministro porque o Plano não cita ou sequer concebe dentro desta diversidade, para manter sua coerência, entidades do terceiro setor que atuem nos territórios e cenas de usos no paradigma da promoção de saúde e articulação com a rede de contatos familiar e afetiva das pessoas que usam crack, para além do mero isolamento. Territórios, vale lembrar, para os quais os “graduados” em CTs voltarão após o período de isolamento.
Outro ponto em comum com todas as CTs, regularizadas pela ANVISA ou não, é que tais espaços, grandes ou pequenos, carecem de observar Direitos Humanos como o direito ao uso do próprio corpo (que não é sequer um direito, é uma realidade que independe de nossa aceitação). Mas não se exija que as CTs concebam algo que nem o ministério parece conceber, ainda que, diferente destas, têm a obrigação de fornecer serviços à todas as pessoas que usam drogas, e não somente àquelas que desejam ou conseguem padrões de abstinência. Sendo que, mesmo para aquelas que inclinam-se à abstinência, não terão seus direitos respeitados caso sejam obrigadas judicialmente a cumprirem tratamentos à revelia de sua vontade. O que implica em dizer que, muito provavelmente, terão uma adesão quase nula, a não ser que omitamos os dados das pessoas que cotidianamente fogem dos isolamentos, impostos ou não (pelo simples motivo de que tais tratamentos podem não fazer sentido às suas vidas – estávamos falando em diversidade, não é mesmo?).
Conclui-se que “respeitar os direitos humanos”, para o ministro Padilha, é o mesmo que não matar ou torturar pessoas. Está bem, ficamos ao menos tranquilizados em saber que as CTs não estão autorizadas a matar e torturar pessoas que usam drogas (como fazemos com as pessoas nos presídios). Talvez porque torturar e matar quem usa crack é algo que, como veremos a seguir, só pode acontecer na rua – na ausência do estado, ou melhor, na sua única presença, que são os efetivos policiais.
Não por acaso, neste momento a Saúde encerra sua fala para dar lugar à falado ministro da Justiça. Ainda incrédulo diante da ausência de soluções deixada pela exposição do ministro Padilha, fico pensando em uma frase vista num muro de Porto Alegre, demarcando que nossos remédios estão sendo mais perigosos que os venenos.
A frase: “chega de justiça!”.

Ministro da Justiça, José Eduardo Cardoso
O ministro da Justiça começa sua fala dizendo que a exposição do ministro da Saúde teve uma temática pautada no cuidado. À ele, agora, caberia falar de outros pilares do Plano, como o da prevenção e da autoridade – ou seja, a prevenção não se encontra mais como possibilidade na área da Saúde. Prevenção e autoridade, andando juntas, já dão o tom de uma dimensão pedagógica confusa em que verdades precisam ser impostas às pessoas que usam crack. É como se, mesmo distantes do trabalho em seus territórios de vida, ou sequer tomando conhecimento da importância deste trabalho, já soubéssemos de antemão tudo a respeito das pessoas que usam crack.
As gafes eventuais do ministro, confundindo-se no uso politicamente correto da palavra “enfrentamento”, como neologismo para “combate” (que, vale lembrar, foi apontado como equivocado pela legislação sobre drogas), antes dá mais respeitabilidade ao ministro, que ao menos demonstra, como veremos, alguma coerência entre teoria e prática.
O que o Plano está “enfrentando”?
O relato sobre “integração de informações para desenvolver atividades de repressão”, em “atuação em locais de concentração de uso do crack”, já põe em questão o discurso do ministro anterior. Certificamo-nos, então, de que é para isso mesmo que estamos fazendo políticas de enfrentamento: não para enfrentar problemas advindos de relações de abusos com crack, mas para, ingenuamente, enfrentar o fato inegável de que as drogas existem, bem como pessoas que as usam. E, o que é mais esclarecedor: Saúde e Assistência social, segundo o ministro da Justiça, terão unicamente a função de “orientar as pessoas para irem a serviços de saúde”.
Ou seja, o fato de os trabalhadores estarem lá, nas cenas de uso, não significa a presença de um trabalho em Saúde. É como se ignorássemos as diretrizes da própria Saúde, com todo seu enfoque sobre a promoção e a verdadeira prevenção (aquela construída e mato). Ignoramos também toda a potencialidade, igualmente comprovada, de promoção de saúde realizada não só por agentes comunitários de saúde, acompanhantes terapêuticos e redutores de danos, mas por quaisquer trabalhadores. A presença da Saúde só se constituiria então, de acordo com o Plano, quando a pessoa “entra num serviço de Saúde”.
A ideia de que só é possível trabalhar em saúde nos espaços que as pessoas vivem parece totalmente ignorada, desvelando a lógica claramente manicomial desta parceria intersetorial, que de respeitosa aos direitos humanos – e agora incluímos o direito de ir e vir – não há nada.
Também ignora-se que o trabalho em saúde realizado no âmbito da comunidade (e que a experiência da Redução de Danos, por exemplo, mostrou que inclui também as cenas de usos de drogas, lícitas ou ilícitas, como espaços potentes para a elaboração de vínculos), não teve seu sucesso por acaso.
Se a pretensão do Plano é gerar cada vez mais uma presença da Saúde ou da Assistência Social nestas cenas com o intuito de encaminhar pessoas que usam drogas para outros lugares, ao invés de tentar compreender a situação de cada uma delas, trabalhando a partir disso não só nas fáceis questões clínicas, mas nas composições de planos terapêuticos singulares, junto à sua rede de amigos e familiares, infelizmente todos os consultórios de rua, ou qualquer nome que queira se dar a isto, terão de se defrontar com um fracasso monumental.
Critérios de análise para a eficácia do “enfrentamento”
Através de uma fala identificada na Justiça, podemos perceber mais claramente que parâmetros estão sendo utilizados para balizar a eficácia do Plano. O espectro da internação compulsória, como já vimos, bem como a alegada necessidade desta, é mais consequência do que causa de uma moralidade que não concebe como real a existência de drogas na sociedade, e que deseja ingenuamente extirpá-las. Há uma grande diferença, porém, entre a ingenuidade sensacionalista dos jornais, ou os diversos dogmas religiosos, e a elaboração de políticas públicas. Com isso, estamos pretendendo situar ações de enfrentamento ao crack com as mesmas cegueiras apaixonadas que acometem aos familiares e às próprias pessoas que tem usos problemáticos de crack.
Repetindo erros seculares
A presença do Estado nas comunidades, para o ministro, deve se dar no policiamento ostensivo em proximidade, com policiais treinados previamente para desenvolver a polícia ostensiva. Fala-se em bases móveis e de monitoramento, com câmeras de vigilância, e imagino desde já que espaços os gestores municipais escolherão instalar as câmeras, por desejarem que fiquem mais “limpos”, fazendo nada além de varrer as pessoas que usam drogas para debaixo de seus tapetes, para os espaços da periferia. Não por acaso é que os traficantes, para o ministro, serão pessoas identificadas dentre as cenas abertas de uso (nas periferias), o que implica em dizer que vergonhosamente vamos seguir prendendo os mesmos jovens adultos pobres (em sua maioria negros) à guisa de “combate ao tráfico”.
Não estaremos, obviamente, procurando as linhas de entrada do dinheiro ilícito na conta de deputados, senadores, secretários ou comandantes de batalhão. Pelo contrário: ao falar sobre a necessidade de situarem-se novas formas de investigação, o ministro traz a imagem do que desejaria fazer diante do caminhão carregado de drogas na fronteira: acompanhá-lo em seu destino, não em sua origem (por acaso temeriam os agentes da PF que tais investigações os conduzissem a Brasília?)
O combate da realidade das drogas no mundo através da entrada de fronteiras (outro ponto de ação anunciado), se colocado mesmo em prática, promete ser bastante lucrativo, a exemplo do grande muro construído entre EUA e México, cuja única função, além de um paliativo para as massas que leem os jornais e votam, é tornar ainda mais alta a taxa usada para negociar a entrada das drogas no país. Em resumo, com maior controle de fronteiras, negocia-se com mais segurança a entrada do ilícito. Não se trata de um problema de corrupção.
Da dificuldade em falar abertamente sobre drogas (ainda)
Mais especificamente sobre o que chamaram de ações em prevenção: é vergonhoso que um ministro da Justiça tenha espaço para falar que a SENAD terá alguma eficácia com a execução de programas educativos antidrogas nas escolas – se é que podemos assim chamar programas que fazem a apologia da violência e da estigmatização das pessoas que usam drogas. Além de, em sua pedagogia do terror, tirar quaisquer possibilidades de criarem-se ambientes livres para o diálogo sobre as experiências que temos com as drogas, seja em âmbito escolar ou em âmbito intra-familiar.
O ministro usa a expressão “dimensão pedagógica” para falar de seu serviço telefônico para informações sobre drogas (em verdade, informações contra as drogas), bem como de campanhas publicitárias para a “prevenção ao uso”, expressão estaque é um neologismo para o combate, visto que não é possível conceber prevenção ao uso sem adotar a noção de que as pessoas que usam drogas deveriam, em uma sociedade ideal, deixar de existir.
Por fim, ficamos sabendo que este Plano, o “mais ousado na história brasileira no enfrentamento a este tipo de situações” (sic), segundo o ministro da Justiça, tem suas graças na pessoa à frente da Casa Civil, Gleisi Hoffmann.

Jacques Wagner, atual governador da Bahia
Talvez não fosse digno de nota o discurso do governador Jacques Wagner, que tentou falar sobre a banalização da vida, ou do quanto valorizamos hoje o ter sobre o ser; da tamanha exclusão gerada pelas violências, principalmente no Nordeste; e que valores de vida e de família, estão colocados nestas ações também. Além disso, falou em humildade, e na provável dificuldade que a questão das drogas nos coloca…
Basicamente um discurso vazio, estrategicamente situado para elogiar vagamente as boas intenções do governo, mas que sequer percebe a si mesmo -visto que, se percebesse, teria comentado minimamente as pretensões e os valores daqueles que o antecederam ao microfone.
DilmaRousseff
Dito isso, Dilma, dizendo-se comovida diante da exposição de Jacques Wagner, com suas tão coerentes leituras dos significados profundos da tragédia humana dos usos de drogas (ou algo assim), assina a papelada e estende elogios à base aliada que teria ajudado a compor o natimorto plano “Crack, é possível vencer”. É citada desde a Casa Civil (que teria articulado os esforços entre ministérios) até o ministério dos Direitos Humanos, que na pessoa de Maria do Rosário não só parece ter assistido à tudo como ajudado a construir esta verdadeira afronta aos Direitos Humanos e constitucionais básicos (como em seu recente pronunciamento no Rio de Janeiro, favorável às internações compulsórias). Elogia-se também uma Frente parlamentar das Comunidades Terapêuticas, que mantendo-se a coerência de uma lista deste porte, não poderia ficar de fora.
Desenganos e desgovernos
Dilma, cuja figura de ex-combatente fora associada em sua campanha à imagem de uma mulher guerreira contra os totalitarismos da ditadura militar, vai ao microfone para sintetizar que o plano pode ser resumido no slogan “vida sim, drogas não”.
É um slogan com consequências perversas, pois aqui se está falando da intolerância em relação às pessoas que usam drogas, e mais grave que isso, da ignorância sobre o fato de que todos nós usamos drogas lícitas, ilícitas e prescritas, cuja diferenciação só se dá do ponto de vista jurídico, legal, pois do ponto de vista dos desejos e expectativas diversos através das drogas, falamos de algo que, na música do Chico Buarque e do Milton, “não tem governo e nunca terá”. Isso é claro, se não tivermos a pretensão, como nos governos totalitários, de que ter governo é não ter problemas.
Se quisermos falar de um governo que realmente enfrente problemas sociais como os usos abusivos de crack, aí devemos falar na promoção de sujeitos de cuidado junto com as pessoas que usam drogas considerando, é claro, a diversidade de serviços à disposição, e não sua unicidade como o anunciado pelo Plano, e muito menos a imposição de serviços (que, neste caso, não mais poderão ser entendidos como espaços de acolhimento). Se a partir da promoção destes sujeitos de cuidado as pessoas que usam crack desejarão a abstinência, será como resultante das reflexões sobre seu bem-estar e saúde, já numa perspectiva de adesão, de sucesso. Senão desejarem abstinência, igualmente terão acolhimento e possibilidade de construções de planos de vida.
A necessidade de releituras históricas
Dilma sabe que nunca houve qualquer sucesso nas políticas de guerra as drogas; ao mesmo tempo em que faz questão de dizer que devemos aceitar “as mais diversas iniciativas da sociedade” (coisa que no Plano, definitivamente, optou por não fazer).
A eficácia é avaliada já em termos de um cuidado paliativo: Dilma fala que permanência deste programa enquanto um programa vitorioso é o de pensarmos a cada conquista (a cada abstinência?), uma conquista que iremos manter. “Tratar de modo diferenciado os diferentes processos de acolhimento” é uma espécie de palavra de ordem que serve mais de justificativa à entrada da lógica manicomial na rede pública do que a uma imagem de coerência, porque na prática e na teoria, em momento algum este Plano está trabalhando com aquilo que, segundo a OMS e o bom senso, constitui a grande maioria das pessoas que usam drogas: pessoas cujos usos não são problemáticos e que, mesmo quando nos demandam internações, não deixam de demandar um acompanhamento e acolhimento nos espaços onde vivem.
Dilma situa números dos programas sociais que efetivamente tiraram pessoas da miséria, “colocando-as na classe média”; e de uma suposta soberania de um país que agora governa a si mesmo, hoje em condição mais digna diante de dívidas históricas internacionais (vale lembrar, com os mesmos países que historicamente assaltaram as terras brasileiras). Esquece-se de que todo o Plano apresentado nada tem de inovador, e em termos geopolíticos, simboliza a reprodução da velha ideologia antidrogas, que sempre financiou politicamente a margem ilícita do capital financeiro, bem como todas as intervenções militares nas parcerias estadunidenses com países da América Latina, a título de “controle territorial de produções ilícitas”, para a desgraça de populações pobres em regiões rurais e urbanas.
Fim da cerimônia: os slogans e frases de efeito
Dizer “Vida sim, drogas não”, ao contrário do que pensa a presidenta Dilma, é abandonar a possibilidade de acolhimento de todos os problemas que associamos às drogas. A presidenta diz que não pretende ser dona da verdade, tampouco estar diante de um caso fácil de lidar – mas ela sequer precisa mencioná-lo.
Dirigindo-se a pais e mães de família, identificando-se com suas dores e angústias no discurso em que fecha a cerimônia, confirma-nos a impressão de que a própria família não será acompanhada em suas demandas. Ao invés disso, as políticas públicas voltadas à questão de drogas, como o crack, está seguindo à risca os mesmos anseios ingênuos e imediatistas (ainda que sinceros e verdadeiros) de familiares apaixonados pela cura, alegria e saúde definitiva “destes filhos e filhas”, no período mais curto de tempo e, se possível, com o mínimo de exposição e autocrítica sobre o contexto de vida em nossa sociedade.
Ao fim da cerimônia, que confirmou o seu caráter de legitimação de processos de estigmatização contra pessoas que usam drogas, dando lugar ainda a práticas de extermínio, Dilma convoca a todas as pessoas que ajudem o governo (a estigmatizar e combater).
“Ter fé e esperança na recuperação de cada um “é necessário, nesta complicada sociedade atual, segundo Dilma. E esta parece a parte mais coerente de sua fala – porque a depender deste Plano, as pessoas que usam drogas no Brasil seguirão desassistidas.

[1] Redutor de danos e educador social de rua. Graduado em Ciências Sociais, especializando em Educação em Saúde Mental Coletiva e mestrando em Psicologia Social e Institucional. Membro do coletivo anti-proibicionista Princípio Ativo, de Porto Alegre.
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 Anderson Porto 31.01.2012
História da Cannabis (Maconha) no Brasil
Sergio Vidal

Instrumentos usados para fumar maconha.

Falta alguma coisa na história da maconha no Brasil e no mundo?
Como cientistas brasileiros no início do séc. XX inventaram os perigos da maconha e importaram a proibição à planta com base em teses de racismo científico e eugenia.
Falta alguma coisa na história da maconha no Brasil? Será que ainda faltam pesquisas sobre a planta e seu uso? Será que faltam mais discussões e pareceres técnicos de instituições sérias e respeitadas sobre o tema? Será que faltam mais informações históricas sobre a proibição e os abusos cometidos em seu nome? Ou o que falta mesmo é atitude política para além de divulgar melhor esses fatos, buscar corrigir e admitir os erros das pessoas que usaram seus cargos públicos de forma indevida décadas atrás?
Origens controversas de uma planta trans-cultural
Durante muito tempo a historiografia brasileira sobre os usos da planta Cannabis sativaera unânime em afirmar que suas origens eram exclusivamente africanas, e que seu cultivo teria sido introduzido com a chegada dos primeiros escravos. De fato, muitos dos africanos trazidos como escravos para o país mantiveram seus costumes de utilização da planta, considerando-a um vegetal especial, uma planta-professora, dotada de características mágicas e propriedades curativas. Antes do descobrimento do Brasil, diversas etnias e nações do continente africano conheciam a planta e utilizavam-na para uma ampla variedade de fins. Os principais usos eram relacionados com o preparo de medicamentos, ou ligados ao seu consumo fumado em rituais religioso ou reuniões sociais mais informais. No entanto, a tese de que os negros seriam os únicos responsáveis pela introdução do cultivo e consumo de maconha no Brasil não se sustenta a uma observação mais cuidadosa.
Os senhores-de-engenho, proprietários dos escravos e toda estrutura produtiva das fazendas de cana-de-açúcar, principal agro-negócio da economia brasileira do séc. XVI até meados do séc. XVIII, toleravam a utilização do fumo de cannabis e tabaco. O sociólogo Gilberto Freyre chega a afirmar que “não parece simples coincidência que se surpreendam tantas manchas escuras de tabaco ou de maconha entre o verde-claro dos canaviais”, sugerindo que teria havido “evidente tolerância – quando não mais do que tolerância – para a cultura dessas plantas voluptuosas” (Freyre; 1985). As denominações usadas no Brasil para a planta liamba¸ diamba, riamba, cangonha, pango, fumo-de-angola, também confirmariam as origens da maconha brasileira, mas por outro lado, revelariam a heterogeneidade que representam essas raízes culturais no continente africano.
Certamente os colonizadores, agentes do Império Lusitano, já estavam habituados desde o período denominado como Expansão Marítima ao relacionamento com diferentes culturas cultivadoras da planta. Além de conhecerem os usos lúdicos e medicinais de sua resina, a partir do seu contato com populações de países asiáticos e africanos onde mantinham outras colônias, também reconheciam as utilidades de sua fibra. Denominada na Europa mais comumente de linho-cânhamo, ou somente cânhamo, as fibras da planta eram amplamente utilizadas na indústria têxtil, e reconhecidamente um dos produtos centrais à economia da época. (Herer, 1985; Booth, 2003).
De fato, os navios que compunham a esquadra que aportaram no continente em 1500 comandada por Pedro Alvarez Cabral, tinham fibras de cânhamo na composição de suas velas, cordas e até mesmo na vestimenta da tripulação. Em 1783, o Império Lusitano instalou no Brasil a Real Feitoria do Linho-cânhamo (RFLC), uma importante iniciativa oficial de cultivo da planta para fins comerciais. Nessa época, a demanda por produtos à base das fibras da Cannabis era alta em todos os países da Europa e muitos produtores não conseguiam atender essas demandas, enquanto muitos procuravam entrar no negócio na tentativa de aproveitar a oportunidade de lucro. Ao mesmo tempo, o Império Lusitano buscava alternativas de produção que pudessem fortalecer a economia, uma vez que as produções para exportação, como o açúcar, estavam cada vez mais enfraquecidas. Para isso a Coroa acentuou sua atenção para o estudo, importação e cultivo de espécies vegetais de importância econômica cultivadas nas colônias que ainda lhes restava na África e Ásia, para tentar tornar o Brasil sua nova fonte de especiarias e outros produtos de origem natural.
As primeiras fazendas e benfeitorias foram instaladas no sul do país, em regiões que atualmente ficam entre os municípios de Canguçu e Pelotas, no estado do Rio Grande do Sul. A partir daí, o Estado passou a importar sementes da Índia e Europa, traduzir manuais de cultivo e produção e investir na adaptação climática de variedades da planta. Os Hortos Botânicos Imperiais passaram a trabalhar selecionando as gerações das plantas mais adaptadas e enviando relatórios entusiasmados sobre o desempenho das plantas em solo nacional. Dessa forma, podemos afirmar que “o assunto era importante e, ao nível estratégico, interessava ao príncipe D. João, a dois vice-reis, a dois governadores do Continente. O linho-cânhamo era para a navegação o que hoje é o petróleo. E Portugal procurava ficar independente da Inglaterra, daí a importância que teve o empreendimento de 1783-89”. (Bento, 1992; 13).
Laura Carvalho, historiadora que atualmente coordena um levantamento bibliográfico, documental e audiovisual sobre a história da planta no país, completa afirmando que “ainda que os documentos encontrados até o momento precisem ser melhor analisados antes de qualquer conclusão, eles nos fazem pensar que Portugal tinha todo interesse que o empreendimento obtivesse sucesso, e investia alto para que isso ocorresse. Existem muitos indícios de que a Coroa financiou a introdução e adaptação climática da espécie em Hortos em estados como o Pará, Amazônia, Maranhão, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro e Bahia. No entanto, tudo leva a crer que muitos outros empreendimentos do tipo surgiram a exemplo da experiência da Real Feitoria, até mesmo de iniciativa privada, e esses teriam persistido até a proibição do cultivo da planta, na década de 1930, com maior ou menor êxito econômico”.
Apesar dos dados históricos apontarem que as contribuições dos descendentes de africanos para o patrimônio genético da cannabis brasileira sejam bem antigas, tudo indica que as contribuições dos colonizadores também o sejam. A introdução e manutenção das variedades de Cannabis de origem africana no país seguiram a mesma lógica de outros aspectos da vida das populações de escravos e ex-escravos, estando restritas às determinações das elites econômicas, sociais e políticas. O historiador Henrique Carneiro sugere que nada nos autoriza a afirmar que as primeiras plantas cultivadas sejam de sementes africanas, afirmando que talvez tenha sido algum marinheiro português o primeiro a carregar para o país as sementes. Até mesmo o uso de cachimbos d’água, principal técnica utilizada para fumar a erva até a primeira metade do séc. XX, teria sido introduzida pelos portugueses que teriam trazido o hábito das culturas canábicas com as quais tiveram contato na Índia, principalmente em Goa. (Booth, op. cit.: 157).
“Foram, portanto, os colonizadores quem tiveram condições materiais tanto para decidir de que maneira era possível às populações marginalizadas consumirem a planta, como para promover empreendimentos de cultivo e comércio, quando lhes foi de interesse. Além disso, foram os empreendimentos oficialmente apoiados pela Coroa, e iniciativas privadas de elites rurais, os grandes responsáveis pela introdução e adaptação em larga escala de diferentes variedades da planta a partir do séc. XVIII. Disso tudo, podemos apenas concluir que as características atuais das variedades de cannabis existentes no Brasil são fruto de um processo bastante complexo e multifacetado, envolvendo diversos atores sociais em períodos históricos diferentes.
A criminalização da Cannabis no Brasil
O primeiro documento proibindo o uso da maconha foi uma ‘postura’ da Câmara Municipal do Rio de Janeiro, de 1830, penalizando a venda e o uso do ‘pito do pango’, sem, no entanto obter quaisquer repercussões significativas. É somente no início do século XX, com a intensificação do processo de urbanização, que o hábito ganha adeptos entre os habitantes das zonas urbanas, passando a figurar entre as preocupações das autoridades governamentais.
Apesar de sua ampla utilização como matéria-prima para fibra têxtil, principalmente pelas populações ligadas às elites econômicas e sociais, a imagem da planta ficou marcada permanente por sua associação com o uso por parte das populações pobres, negras e indígenas. Até o final do séc. XIX e das primeiras décadas do séc. XX, a planta era amplamente difundida nas regiões norte e nordeste do país, sendo consumida por ex-escravos, mestiços, grupos indígenas, principalmente nas zonas rurais. Com o avanço do processo de urbanização, as populações imigrantes passam a ser vistas como fonte de problema sociais e sanitários. Os hábitos de consumo e higiene desses grupos passaram a ser objeto de estudo e controle das instituições e autoridades médicas e sanitárias. São criadas delegacias e outras instituições específicas para tratar do assunto, a exemplo da Inspetoria de Entorpecentes, Tóxicos e Mistificações, também responsável pela repressão às práticas religiosas de origem africana, afro-brasileira e afro-indígenas, em geral consideradas ‘feitiçaria’, ‘curandeirismo’ ou ‘magia-negra’.
Da Macumba à Maconha
Apesar de receber diversas denominações, atualmente a erva é designada apenas como maconha, nome que tem origem na palavra ma’kaña da etnia africana denominada quibundos. Essa associação ganhou força a partir da década de 1940, quando a imprensa marrom passou a propagandear a associação entre a maconha, a criminalidade e a feitiçaria. Nessa época também se consolidou a expressão ‘maconheiro’ para designar à pessoa que fumava a planta. Eram comuns notícias relatando as violências das “gangues de maconheiros, que ajudavam a reafirmar o conteúdo negativo da palavra, misto dos estigmas de criminoso, doente mental e macumbeiro (outra palavra do quibundo, utilizada para designar pejorativamente as pessoas que exerciam práticas religiosas de origens africanas, indígenas ou sincréticas, que também mesclavam elementos do catolicismo popular ibérico).
A partir de 1910, cientistas como Rodrigues Dória e Francisco Iglesias passam a divulgar e descrever em artigos e congressos científicos internacionais suas teorias relacionando o comportamento “natural” das populações de origem africana com os efeitos farmacológicos da Cannabis. Segundo essa teoria, a maconha causaria em seus consumidores “degeneração mental e moral”, “analgesia/entorpecimento”, “vício/compulsão”, “loucura, psicose e crime”. Esses efeitos seriam os responsáveis pelo comportamento atribuído por esses cientistas como natural à população negra, que seria caracterizado pela “ignorância”, “resistência física”, “intemperança”, “fetichismo” e “criminalidade”. Essas idéias floresceram e se difundiram facilmente no ambiente acadêmico da época, quando muitos dos conceitos ligados às teses eugênicas vigoravam o auge de sua influência nos meios científicos do país. A tese foi aceita com bastante sucesso entre o meio acadêmico, na sociedade em geral, em nível nacional e internacional. As posições do Dr. Dória e seus seguidores sobre o que ele chamou de ‘a vingança dos vencidos’ podem ser resumidas no trecho que encerra sua comunicação no Segundo Congresso Científico Pan-americano, realizado em Washington, 1915:
“A raça preta, selvagem e ignorante, resistente, mas intemperante, se em determinadas circunstâncias prestou grandes serviços aos brancos, seus irmãos mais adiantados em civilização, dando-lhes, pelo seu trabalho corporal, fortuna e comodidades, estragando o robusto organismo no vício de fumar a erva maravilhosa, que, nos estases fantásticos, lhe faria rever talvez as areais ardentes e os desertos sem fim de sua adorada e saudosa pátria, inoculou também o mal nos que o afastaram da terra querida, lhe roubaram a liberdade preciosa, e lhe sugaram a seiva reconstrutiva”. (Dória, 1915;37)

“Assembléia” - Nome dado às reuniões sociais onde se fumava e cantava boas cantigas de reverência à diamba (nome da planta nesses contextos) - 1940.
Esse processo da construção de um discurso científico impregnado de categorias racistas é análogo ao ocorrido nos EUA com as populações de origem mexicana. A partir daí, as práticas e representações sobre o uso, plantio e preparo de Cannabis, tradicionalmente transmitidas e socialmente validadas através das diversas gerações de brasileiros que a consumiram, passam então a ser oficialmente desqualificadas (Macrae e Simões, 2000). É como doença transmissível de população para população que o hábito de consumir Cannabis é introduzido nos meios científicos e por ele pensado. Interpretadas como sintomas de uma “psicose hetero-tóxica”, e compreendidas a partir das categorias “maconhismo” ou “canabismo”, essas práticas passam a ser objeto de estudos e pesquisas em grande parte fomentadas ou promovidas pelas autoridades oficialmente legitimadas sobre o assunto. (Adiala, 1986; 2006).
Em 1921, o Brasil se alinha às recomendações dos EUA, seu principal aliado comercial e político, aderindo aos acordos firmados na reunião da Liga das Nações Unidas. As autoridades legislativas brasileiras promulgam a Lei Federal nº 4.294, incorporando à norma interna o documento do acordo internacional, reafirmando suas intenções proibicionistas. Com essa lei o país estabelece os primeiros passos para a burocratização da repressão e do controle das substâncias proscritas. Essa norma previa encarceramento para os traficantes, mas interpretava os consumidores como doentes, vítimas das substâncias, prevendo para eles o tratamento compulsório. Apesar dos esforços das autoridades ligadas ao aparelho de repressão estatal, o ordenamento jurídico brasileiro em relação ao tema só voltaria a sofrer alterações significativas na década de 1930, período de promulgação de uma nova constituição.
Em 1924, mais de 100 países enviaram delegações para reafirmar as discussões sobre coca e ópio, que já vinham ocorrendo desde as reuniões de 1909, 1911, 1912 e 1921. Em todas elas, nenhuma menção a cannabis havia sido realizada até, que nessa reunião, El Guindy, o representante do Egito, trouxesse à tona suas inquietações sobre o que ele considerava os graves problemas e perigos do haxixe, exigindo a inclusão da planta na lista de substâncias proscritas. Após muita insistência de El Guindy, o Conselho decide formar uma subcomissão para discutir o tema, composta por especialistas da Grã-Bretanha, Índia, França, Grécia, Egito e Brasil, este último representado pelo Dr. Pedro Pernambuco, discípulo do Dr. Dória. Durante os trabalhos, os representantes da Grécia, Brasil e Egito pressionam fortemente para que o relatório exigisse controle equivalente ao do ópio e destacasse os perigos da planta. O Sr. Pernambuco aproveita para dar sua contribuição à história da proibição internacional da cannabis, apresentando suas teses brasileiras a respeito da associação entre a cannabis e a papoula, uma vez que, no Brasil, segundo ele, haveriam tantos problemas relacionados com a maconha entre os negros que a ‘planta da loucura’ seria mais perigosa e causaria mais danos do que o ópio no oriente. (Mills, 2003; 152-187)
Com essa vitória em nível internacional das autoridades proibicionistas brasileiras, o próximo passo seria a inclusão da planta como substância proscrita no país e a promoção de uma campanha para erradicação do seu cultivo e consumo. Em 1932, a planta é incluída na lista de substâncias proscritas sob a denominação de Cannabis indica. Em 1934, é promulgada a nova constituição em meio a muitas agitações políticas e sociais e, um ano depois, o Poder Executivo decreta a Lei de Segurança Nacional, através da qual passa a vigorar um Estado de Exceção, com restrições às liberdades individuais e direitos constitucionais. O país vive um clima de estado de sítio e em 1937, o então presidente Getúlio Vargas fecha o Congresso, prende parlamentares e decreta o estabelecimento de uma ditadura que vigoraria até 1945, e que ficou conhecida como Estado Novo.

Diambista fuma em “maricas” feita de cabaça - 1940
Em 1938, um ano após a criação do Estado Novo, o Poder Executivo publica o Decreto-lei n. 891, cujas principais contribuições ao aparelho repressor proibicionista eram:
1) regulamentação e definição das atribuições da Comissão Nacional de Fiscalização de Entorpecentes (CNFE), criada em 1936;
2) estabelecimento de penalidades de encarceramento para condenados por uso ou porte para consumo pessoal.
A lei que concebeu a CNFE passou a dar margem para que outras instituições fossem formadas especificamente para tratar das questões relacionadas ao consumo e comércio das substâncias, essas passaram a ser chamadas genericamente de “entorpecentes”. A partir daí, houve um crescimento do número de delegacias, departamentos de polícias, clínicas e outros órgãos e instituições que passaram a ter como principal atividade designar aos usuários das substâncias psicoativas tornadas ilícitas um tratamento burocrático-legal.
A CNFE surge para centralizar todos os esforços antidrogas em uma só agência Federal. A Cannabis e seus usuários entram nesse processo como o elo simbólico de caráter nacional que faltava para a unificação das iniciativas de combate às drogas. Como planta psicoativa de uso bastante difundido em todo território nacional, a maconha se transforma no estandarte unificador dessas iniciativas, e como mito explorável para promover e justificar as “medidas enérgicas de profilaxia” recomendadas pelos ‘especialistas’.
Em 1943, uma expedição científica é destaca para visitar comunidades onde se fazia uso nos estados da Bahia, Sergipe e Alagoas, principalmente nos povoados às margens do Rio São Francisco. Ao término da expedição um relatório é encaminhado à CNFE alertando que a planta era cultivada e consumida principalmente entre as “classes baixas”, mas que na Bahia, o uso também ocorria nas “classes altas”. A grande maioria dos cultivadores visitados desconhecia a proibição da planta, que era vendida livremente por mateiros e herboristas nas feiras livres sob a denominação de ‘fumo bravo’. O relatório então recomendava que a CNFE promovesse uma Intensa campanha mostrando os ‘malefícios do cultivo e do uso da maconha’ e que buscasse maior articulação entre os diversos Estados da Nação.
A CNFE então promoveu o Convênio Interestadual da Maconha, em 1946, reunindo representantes das Comissões de Fiscalização de Entorpecentes dos estados da Bahia, Sergipe, Alagoas e Pernambuco.
Após dezenas de palestras e outras exposições de especialistas agrônomos, médicos e autoridades policiais, os trabalhos são encerrados com a publicação do Relatório Final, redigido pelo Dr. Pernambuco, e o lançamento da Campanha Nacional de Repressão ao Uso e Comércio da Maconha. O Relatório estabelece as seguintes normas a serem seguidas em todo o Território Nacional:
Planejamento de ações e padronização de estudos visando à promoção de uma intensa campanha educativa contra o uso e plantio. 2. Organização de cursos práticos para as autoridades policiais e sanitárias visando ampliar os seus conhecimentos sobre a botânica e os ‘males’ da planta, facilitar o trabalho de identificação dos criminosos e viciados; 3. Estimular a classe médica a promover estudos sobre os ‘males’ da maconha e sobre as características dos usuários; 4. Promover a inclusão do tema nos congressos e reuniões de psiquiatria; 5. Incentivar a cooperação e articulação entre as Comissões de Fiscalização dos estados onde o uso e plantio seriam disseminados – Bahia, Sergipe, Alagoas, Pernambuco, Piauí, Maranhão, Pará e Amazonas – promovendo o estabelecimento de convênios e a obrigatoriedade do intercâmbio de todo tipo de informações (relatórios, dados estatísticos, fichas criminais, etc.); 6. Destruição de todas as plantações de maconha; 7. Criação nos Departamento de Segurança Pública, em nível federal e estadual, de um órgãos especializados na repressão e combate ao uso; 8. Registro dos cultos afro-brasileiros onde se faz uso da planta, a partir de fontes médicas e sociológicas, e encaminhamento dos dados às autoridades responsáveis; 9. Estabelecimento de gratificações aos membros das Comissões de Fiscalização de Entorpecentes do país, “em vista dos extraordinários serviços prestados por eles à sociedade”. (CNFE, 1951; 239). 
Em 1951, o Ministério da Educação e Saúde publica a primeira edição dos trabalhos apresentados no Convênio Interestadual da Maconha, incluindo o Relatório Final. Em 1958 é publicada uma segunda edição, ilustrada e revisada. Entre o Decreto-Lei de 1938 e o final da década de 1960, não é difícil imaginar os níveis de repressão atingidos pelo aparato estatal montado para essa função específica. Entre os trabalhos do Dr. Dória (1915), e a 2ª edição dos trabalhos do Convênio mais de quatro décadas foram dedicadas à erradicação das populações que faziam uso da planta, principalmente pobres, negros e nordestinos.
Em 1959 a Comissão Nacional de Fiscalização de Entorpecentes resolve preparar uma revisão bibliográfica de todas as pesquisas produzidas até o momento sobre a maconha no Brasil e encomenda um relatório ao Dr. Décio Parreiras. Este recebe pareceres e opiniões de técnicos das seguintes instituições: Secretaria da Agricultura de Sergipe; Sociedade Maranhense de Agricultura; Serviço Florestal do Brasil; Ministério da Agricultura; Instituto Vital Brasil; Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro; Faculdade de Medicina do Recife; Instituto de Pesquisas Agronômicas de Pernambuco; Hospital Juliano Moreira; Sociedade de Medicina Legal, Criminologia e Psiquiatria da Bahia; Faculdade de Medicina de São Paulo; Instituto Médico Legal de São Paulo; Serviço Nacional de Fiscalização da Medicina; Sanatório Botafogo do Rio de Janeiro; Serviço de Assistência a Psicopatas de Sergipe; Departamento Nacional de Saúde; Jardim Botânico do Rio de Janeiro e Academia Nacional de Medicina (Parreiras, 1959).
O relatório serviria para amparar a delegação brasileira na Convenção Única de Entorpecentes, que seria realizada em 1961 em Nova York, no qual seria decidido se as discussões sobre a maconha realizadas a partir da solicitação brasileira em 1924 iriam resultar na proibição da internacional da planta. O trabalho faz uma densa descrição das características botânicas, farmacológicas e históricas da planta, do seu uso e da produção cientifica sobre esses temas no Brasil. O relatório conclui afirmando que a produção cientifica do país não autorizava ninguém a falar em dependência ou toxicomania de maconha, termo utilizado na época, mas no máximo em hábito. Em outras palavras, os limites entre o que é um hábito condenado moralmente e uma dependência é muito tênue e por vezes é definido a partir de critérios não-científicos e sim políticos ou ideológicos. As autoridades brasileiras ignoram completamente o relatório e a delegação brasileira em 1961 reafirma os perigos alarmistas sobre a planta e exige restrições equivalentes às do ópio.
Em 1964 ignora mais uma vez esse relatório e publica o Decreto-lei nº 54.216 incorporando ao ordenamento interno do país os acordos firmados na Convenção Única de 1961. Em 1968, um novo Decreto passa a estabelecer equivalência penal entre condenados por tráfico e por uso. Mas a grande inovação seria trazida com a lei de 1976, conhecida como Lei de Tóxico, que passou reunir todos os ordenamentos jurídicos relacionados com o tema em apenas um documento. Os poderes de repressão do Estado em relação ao uso da maconha então ganham novas dimensões e, na prática, passam a marginalizar ainda mais os consumidores, submetendo-os a violência e arbitrariedades maiores que antes. Um exemplo de uma das principais aberrações dessa legislação é a tipificação do crime de ‘apologia ao uso de drogas’, que também tornaria possível a condenação de qualquer um que falasse dos aspectos positivos de uma substância ou da sua liberação, mesmo que não fosse traficante nem consumidor.
No entanto, a partir da segunda metade da década de 1960 a maconha deixa de ser apenas coisa de negros, pobres e marginalizados (se é que algum dia esteve restrito apenas a eles), para ser cada vez mais consumida nas classes médias e altas. Os ‘inimigos’ da saúde pública, da moral e dos bons costumes deixavam então de ser habitantes das favelas e dos estados do Norte e Nordeste, para serem os jovens adeptos da contracultura, do movimento hippie, das experimentações psicodélicas e de outras manifestações culturais alternativas.

A Maconha no Brasil da “Abertura”
Desde a década de 1980 que o uso da maconha passou a ser mais tolerado na sociedade brasileira e a partir de 1986, estudantes, artistas e intelectuais passaram a promover debates, passeatas e outras manifestações pela legalização da planta. Na década de 1990, as discussões sobre legalização se restringem a manifestações artísticas isoladas como as do grupo musical Planet Hemp, que ficaram uma semana presos por cantarem músicas pró-legalização. No início da década de 2000, os espaços de discussão que surgiram na Internet possibilitaram que os usuários tivessem acesso às informações e discussões sobre o tema que estava ocorrendo em outras partes do mundo. Em 2003, foram realizadas passeatas pela legalização no Rio de Janeiro e em São Paulo, organizadas e divulgadas totalmente pela Internet. Em 2004, o fenômeno se repete com maior participação, mas também com repressão policial. Em 2005, as discussões ganham o apoio de políticos, acadêmicos, artistas e outras personalidades, engrossando o debate em torno das urgentes necessidades por reformas na lei. Surgem movimentos como o Plante Legal, o Movimento Nacional pela Legalização das Drogas, a Rede Verde, o Movimento Nacional pela Legalização do Cânhamo, o Princípio Ativo, a Ananda, o Growroom, o Coletivo Marcha da Maconha Brasil e outros.
Também em 2004, no mesmo ano em que a Passeata Verde foi violentamente reprimida na Av. Paulista, ocorreu o Seminário Cannabis sativa L. e Substâncias Canabinóides em Medicina, organizado pela Secretaria Nacional Antidrogas – SENAD e pelo Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas – CEBRID, onde estavam presentes os maiores especialistas e autoridades políticas e científicas do país e alguns convidados de países como Holanda, E.U.A e Canadá. Apesar de não ter como foco os aspectos históricos e políticos da criminalização da maconha no Brasil ou no mundo, já que a maioria das exposições se referia a pesquisas e experiências atuais sobre as potencialidades da Cannabis e dos seus princípios ativos enquanto medicamentos e as experiências existentes atualmente de prescrição e distribuição dos derivados da planta para uso médico em diferentes países, foram debatidos três assuntos muito importantes para entender o cenário atual a respeito das políticas e da produção científica sobre a maconha:
1) Foram discutidos alguns aspectos dos erros históricos cometidos pela delegação brasileira na reunião da Liga das Nações em 1924, quando o representante brasileiro Dr. Pedro Pernambuco Filho, contrariando a maioria das pesquisas científicas sobre o tema, inclusive as suas próprias, defendeu que a maconha no Brasil causava mais danos que o ópio no oriente e que por isso deveria ter o mesmo rigor no controle. Foi exposto que esses erros histórico da delegação brasileira possivelmente foi a causa da interpretação incorreta dos reais perigos da maconha tanto por parte das autoridades brasileiras que intensificaram a repressão amparadas nos acordos internacionais, quanto por parte das autoridades dos outros países que entenderam que uma informação desse tipo vindo de um país onde muitas pessoas usavam maconha não poderia ter sido manipulada e acreditaram que a maconha era muito perigosa e aprovaram a realização de discussões sobre sua equiparação ao ópio;
2) Foi denunciado que essa “demonização” histórica da planta Cannabis sativaatrapalhou e ainda atrapalha muito a realização de pesquisas científicas, a utilização médica e terapêutica e os usos industriais dos derivados da planta, e que possivelmente ajudou no processo de inclusão da planta Cannabis sativa na categoria de drogas com alto risco e sem nenhum potencial médico, Lista IV da Convenção de 1961;
3) Foram convidados para participar do Seminário e para expor pareceres a respeito da questão: “Deve ou não a Cannabis sativa permanecer na Lista IV da Convenção da ONU” as seguintes instituições: Associação Brasileira de Antropologia (ABA), Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), do Ministério da Saúde, Secretaria Nacional Antidrogas, da Associação Brasileira de Estudos do Álcool e Outras Drogas (ABEAD), da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC).
Diante da gravidade dos fatos expostos, excluindo a ABA que não respondeu ao convite nem foi ao Seminário, a ABEAD que votou contra e a OAB-SP que se absteve, todas as instituições redigiram pareceres favoráveis ao encaminhamento de uma petição à ONU pela retirada da Cannabis da Lista IV e denúncia dos erros cometidos pelo Brasil em 1924 e em 1961. A SENAD expôs quais os caminhos precisariam ser percorridos dentro da burocracia legal do país e da ONU para a realização da tarefa e um parecer foi encomendado à Câmara de Assessoramento Técnico Científico – CATC, que o redigiu e encaminhou ao Conselho Nacional Antidrogas – CONAD. O processo estava em andamento até o início da reestruturação do CONAD, realizada através do Decreto 5.912 que entrou em vigor em outubro de 2006 junto com a Lei 11.343.
Em outubro do ano passado entrou em vigor a nova lei, ainda antidrogas, nº 11.343, estabelecendo uma série de avanços para a situação dos consumidores de drogas. A principal melhoria é a retirada da pena de encarceramento para quem portar ou cultivar uma pequena quantidade destinada ao consumo próprio. O encarceramento é substituído por uma medida alternativa que pode ser: 1) advertência sobre os efeitos das drogas; 2) prestação de serviços à comunidade; medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo. No entanto, as ambigüidades da nova lei vão revelam que suas intenções não são de admitir aos cidadãos o direito de consumir drogas e sim de dar uma aparência um pouco mais moderna ao ordenamento jurídico. Um exemplo é a pena prevista de 1 ano de encarceramento para o crime de “Oferecer droga, eventualmente e sem objetivo de lucro, a pessoa de seu relacionamento, para juntos a consumirem”. As contradições internas da legislação são tantas que além de manterem todo e qualquer uso na criminalidade, ainda cria distorções como penas de restrição da liberdade para o consumo em contextos sociais e penas não-restritivas para o consumo solitário, indo de encontro às atuais recomendações de especialistas em Redução de Danos que afirmam que o uso social é uma das formas de criar regras e normas de conduta que protejam a saúde do indivíduo (Macrae, 2006).
Com esse artigo procuramos esclarecer alguns pontos a respeito da história do uso e da proibição da cannabis no Brasil. Contudo, sabemos que muitos aspectos ficaram de fora e principalmente que os detalhes sobre cada um dos períodos históricos citados nesse texto ainda precisa ser mais pesquisado, descritos e analisados. No entanto, acreditamos ser essa uma contribuição importante para enriquecer a compreensão de alguns pontos a respeito dessa História e do papel do Brasil no processo de criminalização internacional da maconha. É importante lembrar que, ainda que a perseguição grupos minoritários e a utilização política da proibição como mecanismo de controles sobre esses grupos guardem analogias com o ocorrido em outros países, a exemplo dos EUA, cada processo guarda suas especificidades e precisa ser compreendido dentro dos seus próprios contextos. Como vimos, o Brasil empreendeu sua própria campanha anti-maconha e até mesmo contou com versões tupiniquins do czar antidrogas estadunidenses Harry Anslinger (Dr. Pedro Pernambuco, Dr. Décio Parreiras e outros).
Mas e aí, falta ou não falta alguma coisa nessa história?
Ora, apesar de ter sido reconhecido publicamente que houve um erro histórico nas motivações que levaram à construção do primeiro Decreto-lei, de 1932, proibindo a planta e por conseqüência todos os outros, não houve qualquer alteração no cenário das discussões sobre o tema. Apesar de haver pareceres de algumas das mais sérias instituições do país recomendando a retirada da Cannabis sativa da Lista IV da Convenção da ONU e sugerindo que o governo brasileiro denuncie os erros cometidos por suas delegações no passado e adote uma postura coerente com esses novos (velhos) fatos, nada mudou.
Será que ainda faltam pesquisas sobre a planta e seu uso? Será que faltam mais discussões e pareceres técnicos de instituições sérias e respeitadas sobre o tema? Será que faltam mais informações históricas sobre a proibição e os abusos cometidos em seu nome? Ou o que falta mesmo é atitude política para além de divulgar melhor esses fatos, buscar corrigir e admitir os erros das pessoas que usaram seus cargos públicos de forma indevida décadas atrás?
Seja lá o que for, a única certeza é a de que falta alguma coisa importante nessa história e que muitas pessoas têm sofrido as conseqüências disso. Se você é um cidadão ou cidadã brasileiro(a), que faça ou não uso de maconha, mas que acredita que nesta história está faltando alguma coisa que compromete a honra da Democracia Brasileira, junte-se à luta da Anada, do Coletivo Marcha da Maconha Brasil e de outras instituições brasileiras antiproibicionistas e venha exigir que as leis e políticas possam ser construídas e aplicadas de forma mais transparente, justa, eficaz e pragmática, respeitando a cidadania e os Direitos Humanos.
REFERÊNCIAS:
¨      ADIALA, Júlio César. O Problema da Maconha no Brasil: ensaio sobre racismo e drogas. Rio de Janeiro: Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, 1986. (Estudos, n.52).
¨      A Criminalização dos Entorpecentes. Edição Independente, 2006.
¨      BENTO, Cel. Claudio Moreira. Real Feitoria do Linho Cânhamo do Rincão do Canguçu (1783-89 Localização). Canguçu – RS: Academia Canguçuense de História, 1992.
¨      BOOTH, Martin. Cannabis: a history. New York – US: St. Martin´s Press, 2003.
¨      CARLINI, E. Et. Al. Cannabis sativa L. e Substâncias Canabinóides em Medicina. Brasília – DF: Secretaria Nacional Antidrogas – SENAD, 2004. Disponível no endereço: http://www.encod.org/info/IMG/pdf/CannabisFinal.pdf
¨      CAVALVANTI, B. C. Dançadas e Bandeiras: um estudo do maconhismo popular no nordeste do Brasil. Recife. Dissertação Mestrado defendida no Programa de Pós-graduação em Antropologia da Universidade Federal de Pernambuco, 1998.
¨      DÓRIA, Rodrigues. Os Fumadores de Maconha: Efeitos e Males do Vício. In: HENMAN, Anthony, PESSOA JR., Osvaldo. (Orgs.). Diamba sarabamba: coletânea de textos brasileiros sobre a maconha. São Paulo: Ground, 1986. p. 19-38
¨      FREYRE, Gilberto. Nordeste. Rio de Janeiro: Editora José Olympio, 1985. 5ª ed.
¨      HERER, Jack. The Emperor Wears no Clothes. Califórnia – US: Hemp Publishing, 1993.
¨      MACRAE, Edward & SIMÕES, Júlio Assis. Rodas de Fumo – O Uso da Maconha Entre Camadas Médias Urbanas. Coleção Drogas: Clínica e Cultura. EDUFBA, 2000. Disponível no endereço: http://www.giesp.ffch.ufba.br/Textos%20Edward%20Digitalizados/24.pd
¨      MACRAE, Edward. Redução de Danos para o Uso da Cannabis. In; SILVEIRA, D. & MOREIRA, F. Panorama Atual de Drogas e Dependências. São Paulo – SP: Editora Atheneu, 2006. pp. 361-370.
¨      MILLS, James H. Cannabis Britannica – Empire, Trade, and Prohibition. UK: Oxford Universy Press, 2003.
¨      Ministério da Educação e Saúde. A Maconha – Coletânea de Trabalhos Brasileiros. Dep. de Imprensa Nacional, 1951.
¨      PARREIRAS, D. Cânabis Brasileira. Rio de Janeiro – RJ: Comissão Nacional de Fiscalização de Entorpecentes – CNFE, 1959.
 Nota
A maioria das imagens que ilustram esse artigo pertencem ao acervo pessoal do antrópologo Bruno Cavalcanti, e foram publicadas em sua dissertação de mestrado “Dançadas & Bandeiras: um estudo do maconhismo popular do nordeste do Brasil”, defendida no Programa de Pós-Graudação em Antropologia da Universidade Federal de Pernambuco, em 1998 (páginas 89, 90 e 183). A única foto que não foi retirada deste trabalho é a do ‘ribeirinho do São Francisco’, que foi publicada na obra do folclorista Alceu Mayanard de Araújo “Potengi – Escorço do Folclore de uma Comunidade”, 1962, página 56, e pertence ao acervo pessoal do autor. Agradeço especialmente ao amigo Paulo Sergio Santos da Silva, por ter gentilmente digitalizado essas imagens.
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Carta Capital 14.01.2012
O terror higienista
Wálter Maierovitch
São Paulo insiste na repressão e usa o crack como desculpa para segregar pobres. Foto: Agência Brasil
O fenômeno representado pelas drogas ilícitas é complexo. Desde o fracasso do proibicionismo, convencionado na sede nova-iorquina das Nações Unidas em 1961, vários países, preocupados com os direitos humanos e com a possibilidade de colocar a segurança pública na rota da civilidade, buscaram políticas próprias a fim de:
(1) contrastar a oferta pelo combate à economia das organizações criminais,
(2) reduzir danos e riscos causados pelo consumo,
(3) tratar sem crueldade os dependentes químicos,
(4) eliminar os confinamentos territoriais, a exemplo das cracolândias,
(5) promover a reinserção social.
A dimensão desse fenômeno foi mostrada na sexta-feira 6 pelos pesquisadores da University of New South Wales, na Austrália. Em um mundo com 7 bilhões de habitantes, uma pessoa em cada 20 consome habitualmente alguma droga proibida pela ONU. Temos um mínimo de 149 milhões de usuários e um máximo de 271 milhões. Por ano, as drogas ilícitas matam 250 mil pessoas.
A maconha é a droga proibida mais usada no mundo, consumida entre 125 milhões e 203 milhões de habitantes. A propósito de escolhas políticas, a Holanda admitiu, em 1968, para cortar o vínculo entre o traficante e o usuário, a venda de maconha em coffee shops. No primeiro dia de 2012, e com a volta dos conservadores ao poder, proibiu-se a venda ao turista estrangeiro. Segundo os economistas, haverá perda anual de 10 bilhões de euros, afetando o produto interno bruto holandês.
Na Suíça, não deram certo os espaços abertos para livre consumo. Dado o grande número de extracomunitários, que fizeram dos parques residências permanentes, com aumento de roubos, furtos e violência física, ocorreu uma correção de rota: desde 1995 o país fornece aos usuários drogas em locais fechados, com assistência médica.
Sobre extinção de áreas de confinamento, em Frankfurt foram implantadas as narcossalas em 1994, ou melhor, salas secretas para uso com apoio sociossanitário. Conforme apontei neste espaço em artigo intitulado “Cracolândia, a hora das narcossalas”, houve em Frankfurt e em outras oito cidades alemãs recuperações, reduções de uso e volta ao trabalho e às famílias. O sucesso levou, na Alemanha, as federações da Indústria e do Comércio a investirem 1 milhão de euros no projeto de narcossalas.
A política exitosa de Frankfurt foi copiada na Espanha. Nas grandes cidades dos EUA, aumentou o número de postos de saúde que ofertam metadona, droga substitutiva, para dependentes de heroína controlarem as crises de abstinência. Sobre as narcossalas, a Nobel de Medicina Françoise Barre Sinoussi luta pela implantação, em Paris, do modelo de Frankfurt.
As narcossalas foram fundamentais para o resgate social dos dependentes, antes empurrados para áreas urbanas degradadas, depois transformadas em confinamentos. Na capital paulista, a região central da Luz foi, por duas vezes, território de confinamento de prostitutas, ou seja, área onde os governos fizeram vista grossa para a exploração e o desfrutamento sexual de seres humanos.
Nos anos 1950, as prostitutas foram obrigadas a migrar da Luz para o bairro do Bom Retiro. Passados alguns anos, a prostituição e o rufianismo voltaram à Luz, em um confinamento chamado de Boca do Lixo. Nos anos 90, a Boca do Lixo cedeu lugar à Cracolândia. Um quadrilátero onde habitam ao menos 400 dependentes químicos e, diariamente, 1.664 usuários compram crack de pessoas a serviço de uma rede de abastecimento que as polícias estaduais nunca incomodaram.
Na Itália, conforme atestado pela ONU, a comunidade terapêutica denominada San Patrignano (Rimini), que acolhe 1,6 mil jovens, consegue recuperar 7 entre 10 que passam voluntariamente (não se aceita internação compulsória) pelos seus programas. San Patrignano é um centro de acolhimento sem discriminações ideológica, social e religiosa. É gratuito e não são aceitas verbas governamentais. Como empresa produtiva, banca as despesas.
Para acabar com uma Cracolândia, e sem um único posto de apoio médico-assistencial no local, a dupla Alckmin-Kassab, governador e prefeito, partiram para ações policialescas. Mais uma vez, assistiu-se à Polícia Militar atuando violentamente, sem conseguir expulsar os visíveis e expostos vendedores de crack.
A dupla busca a tortura físico-psicológica. Inventaram um novo tipo de pau de arara. Procuram, com o fim da oferta, provocar um quadro torturante e dramático de abstinência nos dependentes químicos. E, pelo sofrimento e desespero, os dependentes, na visão de Alckmin e Kassab, iriam buscar tratamento oficial. Esse torturante plano só é integrado no rótulo. A meta é “limpar o território” com ações militarizadas e empurrar para a periferia distante os “indesejados”.
Pano rápido. Nesse cenário desumano, que já dura mais de uma semana, percebe-se o sepulcral silêncio do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que buscou no tema das drogas um palanque para se mostrar vivo politicamente. O silêncio de FHC é a prova provada da atuação farsante, própria de oportunistas.
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rev Época 06.01.2012
Cracolândia: maquiagem?
Walcyr Carrasco
Estou acompanhando a ação policial na Cracolândia, em São Paulo. A rua Helvetia foi ocupada. Traficantes presos. Sempre fico com um pé atrás com essas operações. Sinto que é uma tentativa de maquiar a cidade. Acaba-se com a Cracolândia em si. O povo aplaude. Ganham-se votos. Mas de fato, o que é feito pelos viciados  miseráveis que vivem lá?
Eu estive recentemente na Cracolândia, como escrevi na minha coluna da revista Época. Foi uma noite muito forte, porque talvez eu nunca tivesse convivido com a miséria humana nessa proporção. Jamais esquecerei os rostos magérrimos, encovados, sujos. Os olhares perdidos. O cheiro.
Mas também não vou esquecer da frase de um viciado com quem conversei:
– Os missionários vêm aqui e nos levam para tratamento, para a igreja. Mostram o que estão fazendo pela gente. E as verbas entram. Mas depois, a gente acaba aqui de novo.
Foi um depoimento amargo. Não concordo inteiramente com ele, pois os missionários tentam de fato retirar as pessoas do vício e de sua condição miserável. Muito mais que o poder público. Mas que a Cracolândia virou um símbolo, virou. Destruí-la tem uma ação simbólica. Pouco mais do que isso, porque o problema continua.
Segundo um ex policial com quem conversei, o que  a polícia está fazendo, de fato, é espalhar os viciados e traficantes pela cidade. Disse que já estão indo para a Praça da República e outros lugares do centro.
Daqui a pouco mostram a cidade bonitinha, em fotos, com as casas da Cracolândia recuperadas. Mas o problema continua o mesmo. Se estão enviando assistentes sociais e o pessoal da saúde, como o prometido, por que não fizeram isso antes da ação policial? Para de fato levantar o número de viciados, retirá-los, levar a tratamento?
E tem mais: soube que tem uma Cracolândia no Glicério. Outra próxima do Largo 13 em Santo Amaro.
Isso só em São Paulo. Cracolândias existem em todas as cidades do país, pelo que sei. E nas regiões agrícolas onde lavradores fumam crack para trabalhar.
Até quando vai continuar a maquiagem? Quando a questão vai ser encarada de frente, com um projeto sério e profundo para eliminar o crack e os traficantes? Ou alguém acha que o crack era produzido na própria Cracolândia?
Por falar nisso, a polícia que parece tão disposta a arrancar os miseráveis das ruas sabe onde o crack é fabricado, em São Paulo? Não seria por aí que devia começar?
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Época  04/11/2011
Uma noite na Cracolândia
WALCYR CARRASCO
São 11 horas da noite de uma sexta-feira. Estou em frente à Estação Júlio Prestes, no centro de São Paulo. O desembargador Antônio Carlos Malheiros chega acompanhado de sua mulher, Cristina. Junta-se a nós o pastor evangélico Daniel Checchio, acompanhado de dois jovens missionários. Vamos percorrer a Cracolândia sozinhos, sem escolta policial. São poucas ruas no bairro dos Campos Elíseos, onde os cachimbeiros, noias, zumbis, como se chamam os viciados em crack, instalaram-se. Quem manda é o crime organizado, cuja lei não escrita determina que lá só se pode comercializar crack, mesclado (com maconha) ou óxi (uma droga próxima ao crack, em cuja composição entra querosene – mais barata e mais letal). Os preços: R$ 5 a pedra de crack, R$ 3 a de óxi. Sem escolta, vamos sentir a realidade da Cracolândia na pele.
Andamos poucas quadras. Paro espantado na esquina da Rua Helvétia. Vejo uma montanha de lixo. Cerca de 700 pessoas esquálidas, sujas, em farrapos, estão encostadas às paredes, nas sarjetas ou andando na rua. Dois grupos tocam pagode. O cheiro de urina e de metal queimado – vindo dos cachimbos aquecidos pelo crack – invade minhas narinas, gruda-se em minha pele. Um carro vermelho para. O motorista faz um sinal. Um homem entrega um pacotinho com algumas pedras. O motorista paga e parte.
Alguém bate em meu ombro, me cutuca as costas. Não me viro. Há casarões invadidos. As janelas e portas foram fechadas por tijolos. Mas nas paredes foram cavadas imensas aberturas. Em um casarão, fico sabendo, moram de 200 a 300 pessoas.
Descubro que estou numa feira miserável. No chão, acumulam-se sapatos velhos, latas de sardinha abertas, pilhas, eletrônicos, pães de queijo murchos, tomates quase podres. Ironicamente, entre a miscelânea, uma revista de alta gastronomia.
Ergo os olhos e vejo a pichação: “WELCOME TO CRACKO CITY”
Sinto um arrepio.
Neste mundo com leis próprias, um olhar mal interpretado pode resultar em golpes de estilete. Mas é impossível não observar. No meio de um grupo de adolescentes acampado entre cobertores rasgados, vejo uma menina de uns 15 anos, o olhar perdido.
– Deveria estar na escola, constato.
Um casal de negros vende roupas expostas no chão, surpreendentemente limpas. Senta-se num sofá na calçada.
– É onde moram, diz Daniel. Aqui a casa das pessoas é o espaço que conseguem na rua.
Neste mundo com leis próprias, um olhar mal interpretado pode resultar em golpes de estilete 
Na outra calçada, uma jovem de costas me chama a atenção. Mechas loiras. Veste um bustiê preto e jeans. Olho para seus pés. Botas de camurça. Novas. Provavelmente, de shopping. Ela se volta em minha direção. A pele de seu rosto é dourada, adorna as orelhas com argolas de prata. É linda e muito jovem. Certamente, há pouco tempo ainda morava com a família, tinha a cama arrumada, almoço e jantar, passava temporadas na praia. Agora está ali: os cabelos já sujos, a aparência decaí­da. Encaminha-se para um grupo de homens cadavéricos, imundos. Eles acenam. Ela fará tudo por algumas pedras.
Um homem com uma facada na testa surge na esquina. Pede socorro. Sangra. Um dos missionários o leva a um posto médico a algumas quadras.
Aproxima-se de nós um rapaz de uns 30 anos. Conta que chegou a ficar um tempo livre das drogas. Recaiu, não pela primeira vez, há 28 dias.
– Não vou sair dessa – afirma.
Vem de uma família de classe média. Fala corretamente, é bem articulado. Foi corretor de seguros. Há seis anos está nas ruas. Vive de pedir dinheiro na rua. Vende coisas que cata no lixo.
– Sou soropositivo há nove anos.
– Se você quiser ficar limpo, a gente pode ajudar, diz Malheiros.
– Já tentei, não dá. Eu tenho todos os documentos. Mas perdi a identidade.
Nossa noite na Cracolândia só reafirma a decisão do desembargador Malheiros. Vai implantar tribunais de rua. Usar a autoridade do Judiciário para conseguir reconduzir crianças para suas famílias ou encaminhar para abrigos. Doentes para vagas no sistema de saúde público. Quer entender esse mundo antes de iniciar o projeto. O pastor Daniel aplaude:
– Toda noite morrem pelo menos três pessoas aqui. Mas não adianta algum político mandar a polícia expulsar as pessoas, simplesmente. É preciso um trabalho social.
Volto para casa. Ficamos quase três horas na Cracolândia. Sinto meu corpo pesado. Passo o resto da noite olhando as estrelas do meu terraço. Tenho vontade de chorar. É doloroso conviver com a miséria humana.
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Nossas autoridades passeiam na cracolândia como se estivessem no Zoológico.
Fábio Assumpção FaceBook
O que leio diariamente sobre a ação da polícia, visita das autoridades e discussões dos representantes da sociedade sobre a cracolândia, deixa evidente a dificuldade do homem em assumir e ser honesto frente a questão da dependência química no mundo ou aqui no Brasil, problemática grave e perigosa, vivida por 14% da população mundial, ou, 700 milhões de pessoas. 
Delegada pelo estado aos homens discriminados pela sua pobreza e raça, os administradores da produção e distribuição de entorpecentes. 
Quem realmente anda batendo cabeça não me parece serem apenas os dependentes de álcool e drogas, os drogados como os seres fúteis e ignorantes costumam chamar, e sim a sociedade, que se torna indecente com tanta hipocrisia e demagogia. 
Enquanto não nos libertarmos do nosso sentimento equivocado de superioridade aos que vivem num labirinto de desespero e solidão e enquanto não formos honestos com nossas vidas, essa tristeza vai continuar. 
Mas tudo bem, para quem prefere se declarar estrangeiro à essa questão. Um dia seus filhos o farão pensar sobre isso de forma humanitária. 
Nada como um dia após o outro. 
Crime é fechar os olhos àquilo que precisa de inteligência e verdade, além, claro, de amor. 
Nossas autoridades passeiam pela cracolândia como se estivessem no Simba Safari, olhando os animais do carro, rezando para não serem atacados. O frágil não são os senhores, são as almas em busca do nada, sem a capacidade de desenhar um caminho verdadeiro. Aliás, minto, os frágeis são sim, os senhores, por que é preciso ser forte para vencer uma tempestade e os senhores não vivem sem seus guarda chuvas de papel.”
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rev Época 13/01/2012
Sexo, crack e gravidez
Um olhar sobre o grupo mais vulnerável da Cracolândia.
Cristiane Segatto
Repórter especial faz parte da equipe de ÉPOCA desde o lançamento da revista, em 1998. Escreve sobre medicina há 15 anos e ganhou mais de 10 prêmios nacionais de jornalismo.
O “faxinão” da Cracolândia, a tentativa de dispersar os viciados do centro de São Paulo sem oferecer a eles nenhuma forma adequada de tratamento, obriga a sociedade a discutir o que deu errado ali nos últimos 20 anos. Proponho um olhar construtivo. Uma reflexão sobre quem mais sofre onde o Estado fracassa.
Entre os diversos grupos que usam crack, nenhum parece ser tão vulnerável quanto o das jovens grávidas. Em junho do ano passado, ÉPOCA publicou uma reportagem sobre o aumento dos casos de dependentes da droga que tinham seus bebês na principal maternidade pública da Zona Leste da capital.
O uso da droga durante a gravidez pode provocar diversos problemas: descolamento da placenta falta de oxigenação, retardo do crescimento, baixo peso no nascimento e morte da criança. Naquela reportagem, ouvi dos profissionais da Maternidade Leonor Mendes de Barros as dificuldades cotidianas que enfrentavam na tentativa de aliviar o sofrimento desses bebês. Muitos são prematuros e acabam abandonados no hospital pelas mães.
A situação piora a cada dia. Em 2007, apenas uma criança nascida na maternidade havia sido encaminhada para adoção. Em 2008, foram quinze casos. Em 2010, mais 43. Apenas nos três primeiros meses de 2011, outros 14 recém-nascidos foram enviados para abrigos e ficaram à espera de adoção.  
Esses bebês costumam nascer hiperexcitados, irritados, chorosos. É sinal de que a droga chegou ao cérebro e pode ter provocado alterações de desenvolvimento. Mas o resultado desse contato precoce só pode ser observado anos depois, quando a criança começar sua vida escolar.
Poucos pesquisadores no mundo se dedicaram a acompanhar essas crianças a longo prazo. “As evidências disponíveis sobre prejuízos no desenvolvimento neuropsicomotor ainda são inconsistentes e controversas”, diz Marcelo Ribeiro, diretor de ensino da Unidade de Pesquisas em Álcool e Drogas (Uniad), da Unifesp. “Alguns estudos mostram que os bebês expostos ao crack durante a gestação crescem mais lentamente. Outros trabalhos não detectaram nenhuma diferença em relação aos filhos de mulheres que não usam qualquer droga”, afirma.
Marcelo Ribeiro e Ronaldo Laranjeira são os organizadores do livro O tratamento do usuário de crack, (664 páginas e R$ 88), um lançamento da Editora Artmed. A obra é completíssima. São 47 capítulos escritos por especialistas que abordam os mais diversos aspectos que envolvem a discussão em torno do crack (história, epidemiologia, diagnóstico, tratamento, neurobiologia etc). Quem pretende discutir o assunto sem dizer bobagem demais precisa ler esse livro.
Graças a ele, pude entender um pouco melhor a situação em que essas jovens se encontram. Muitas trocam sexo por pedras de crack. A falta de planejamento e de organização, típica da adolescência, é potencializada pelo vício. Muitas engravidam e não sabem quem é o pai da criança. Não têm o menor suporte emocional e social nem estabelecem vínculo afetivo com o bebê. É uma tragédia coletiva que São Paulo e o Brasil precisam enfrentar com as armas certas.
Num capítulo específico sobre troca de sexo por crack, o grupo da pesquisadora Solange A. Nappo relata que, quase sempre, o traficante é o primeiro “cliente” das moças. É uma condição imposta a elas para a aquisição da droga.
Assim como ocorreu nos Estados Unidos nos anos 80, as jovens que se prostituem para conseguir a droga se expõem a riscos que as profissionais do sexo aprenderam a evitar.
Prostitutas insistem no uso de camisinha. As meninas do crack, por sua vez, não têm poder de negociação para exigir o uso de preservativo. Nem capacidade de julgamento para pensar nisso quando estão sob efeito da droga. Fazem sexo na rua e estão expostas a todas as formas de violência e de humilhações.
“Mulheres que se submetem à prática de sexo por droga realizam uma prostituição ‘solitária’, isoladas de qualquer grupo que possa protegê-las. Têm maior número de parceiros e relatam inconsistência no uso de preservativo”, descreve Solange.
Muitas acreditam que o sexo oral seja uma alternativa menos arriscada do ponto de vista da transmissão de doenças sexualmente transmissíveis. Não é bem assim. O cachimbo para uso da droga pode causar ferimentos nos lábios, na garganta e na mucosa bucal. Isso aumenta a vulnerabilidade a infecções.
Para muitas garotas, o sexo é a única forma de conseguir a droga. O artigo traz o relato de uma delas:
“É só se prostituindo. É o jeito que mulher consegue crack. A gente sai na rua prá isso. Acaba de fumar, já pensa no programa prá conseguir mais grana. Faz programa e pensa em fumar e é assim a nossa vida.
Sob o efeito da droga, de fissura ou paranoia, não há a menor possibilidade de coerência em relação ao uso da camisinha. Esquecem dela ou aceitam passivamente a recusa do parceiro em usá-la. Há urgência em terminar o ato sexual para comprar a “pedra” e reiniciar o ciclo.
Em geral, mulheres que usam crack sofrem um significativo isolamento social quando comparadas às que usam outras drogas ilegais. Isso cria barreiras para lutarem por si mesmas e reforça a subserviência diante das agressões.
A primeira reação de quem ouve essas histórias é reagir com preconceito e intolerância. Ou até mesmo com raiva. Nada disso contribui para a busca de soluções. Discriminar essas mulheres não aumenta a probabilidade de que elas consigam acolhimento, tratamento e a chance de recomeçar a vida.
Nos últimos dias, muita gente tem perguntado se a Cracolândia tem jeito. O psiquiatra Marcelo Ribeiro acredita que sim. Segundo ele, a velocidade e as prioridades nesse processo é que estão equivocadas e fora de lugar.
“Seria mais tranqüilo se todos os usuários topassem sair de lá direto para uma clínica, de onde sairiam abstinentes e prontos para a vida. Mas isso é o cúmulo da utopia”, diz ele.
Mais realista seria considerar a Cracolândia como uma tremenda dívida social, cuja solução não passa por soluções mágicas e espalhafatosas.
“As estratégias sociais, de saúde e de manutenção da ordem devem caminhar juntas, mas o usuário que lá habita deve ser o centro das preocupações e aquele que determina a velocidade das transformações”, afirma Ribeiro.
O “faxinão” é uma tentativa desastrada de varrer o problema para debaixo do tapete. Ele continuará explícito como toda ferida mal curada.
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Os nomes da criança
Cristóvam Buarque

Para um habitante de cidade brasileira, todas as árvores de uma floresta são apenas mato, sem distinção entre elas. Os habitantes do deserto, ao contrário, têm nomes diferentes para se referir à areia. Da mesma forma, os esquimós têm diversos nomes para indicar aquilo que, para nós, é apenas neve.

Cada povo desenvolve sua cultura, com palavras distintas, para diferenciar as sutilezas do seu ao-redor, como forma de sobreviver mais facilmente e usufruir esteticamente. A riqueza de uma cultura se mede pelo número de palavras usadas para definir o meio ao redor. Quanto mais palavras distinguindo as coisas, em detalhes imperceptíveis para os demais, mais rica é a cultura.

Os brasileiros urbanos também desenvolveram, em sua cultura, nomes diferentes para dizer o que entre outros povos teria um nome apenas : criança.

Em suas cidades os brasileiros do começo do século XXI têm muitas maneiras para dizer criança com sutis diferenças manifestadas em cada palavra. É a riqueza cultural, manifesta num rico vocabulário, que mostra a degradação moral de uma sociedade que trata suas crianças como se não fossem apenas crianças. O português falado no Brasil é certamente o mais rico e o mais imoral dos idiomas do mundo atual, no que se refere à definição de criança.

Menino-na-rua significa aquele que fica na rua em lugar de estar na escola, em casa, brincando ou estudando, mas que, à noite, em geral, tem uma casa para onde ir. Ao vê-lo, um habitante de uma das nossas cidades grandes faz logo a diferença com as demais crianças que ali estão apenas passeando. Diferencia até, sutilmente, dos meninos-de-rua - aqueles que não apenas estão na rua, moram nela, sem uma casa para onde voltar.

Flanelinha é aquele que, nos estacionamentos ou nas esquinas, dribla os carros dos ricos com um frasco de água numa mão e um pedaço de pano noutra, na tarefa de convencer o motorista a dar-lhe uma esmola em troca de uma rápida limpeza no parabrisa do veículo. É diferente do esquineiro que, no lugar de oferecer o serviço de limpeza, pede esmolas apenas. Ou do menino-de-água-na-boca, pobre criança que carrega pequenas caixas de chocolates, tentando vendê-los, sem direito a sentir o gosto do que carrega para os outros e existe aos milhares no Brasil.

Prostituta-infantil já seria um genérico maldito para uma cultura que sentisse vergonha da realidade que retrata. Como se não bastasse, ela tem suas sutis diferenças. Pode ser bezerrinha, ninfeta-de-praia, menina-da-noite, menino ou menina-de-programa ou michê, conforme o local onde faz ponto e o gosto sexual do freguês que atende. E existe - vergonha das vergonhas - a expressão menina-paraguai para indicar criança que se prostitui por apenas R$ 1,99, o mesmo preço das bugigangas que a globalização trouxe em contrabandos, quase sempre, daquele país. Ou menina-boneca, de tão jovem quando começa a se prostituir, ou porque seu primeiro pagamento sirva para comprar a boneca que nunca ganhou de presente.

Delinquente, infrator, avião, pivete, trombadinha, menor, pixote. Sete nomes para o conjunto das relações de nossas crianças com o crime. Cada qual com sua maldita sutileza, de acordo com o artigo do Código Penal em que é enquadrado, com a maneira de abordar suas vítimas ou com o crime ao qual se dedica.

Pode também, no lugar de criança, ser boy, engraxate, menino-do-lixo, reciclador-infantil, conforme o trabalho que faz.

Ainda tem filho-da-safra, para indicar criança deixada para trás por pais que emigram todos os anos em busca do trabalho, nos lugares onde há emprego para boias-frias. Nome que indica, também, a riqueza cultural do sutil vocabulário da maldita realidade social brasileira. Ainda o pagão-civil, que vive sem o registro que lhe indique a cidadania de sua curta passagem pelo mundo. Em um país que lhe nega, não só o nome de criança, mas também a existência legal.

Como resumo de todos estes tristes verbetes, há também criança-triste, como um verbete adicional. Não pela tristeza de um brinquedo quebrado, de uma palmada ou reprimenda recebida, nem da perda de um ente querido. No Brasil há um tipo de criança que não apenas fica ou está triste; criança que nasce e vive triste. Cujo primeiro choro mais parece um lamento do futuro que ainda não prevê do que a inspiração do ar em que vai viver, que por primeira vez recebe em seus diminutos pulmões.

Criança-triste como substantivo e não adjetivo, como estado permanente de vida - esta talvez seja a maior das vergonhas no vocabulário da realidade social brasileira. Tal e qual a maior vergonha da realidade política está na falta de tristeza nos corações de nossas autoridades diante da tristeza das crianças brasileiras, com as sutis diversidades de suas posições sociais, refletidas no vocabulário que indica os nomes da criança.

A sociedade brasileira, em sua maldita apartação, foi obrigada a criar palavras que distinguem cada criança conforme sua classe, sua função e sua casta. A cultura brasileira, medida pela riqueza de seu vocabulário, enriqueceu perversamente ao aumentar a quantidade de palavras que indicam criança. Um dia, esta cultura vai se enriquecer, criando nomes para os presidentes, governadores, prefeitos, políticos em geral que não sofrem, não ficam tristes, não percebem a vergonhosa tragédia de nosso vocabulário, nem ao menos se lembram das crianças-tristes do Brasil.

Quem sabe será preciso que um dia chegue ao Governo uma das crianças-tristes de hoje, para que o Brasil faça arcaicas as palavras que hoje enriquecem o triste vocabulário brasileiro, construindo um dicionário onde criança seja apenas criança, sem nomes diferentes como para o poeta, uma rosa é uma rosa.
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Blog da Cidadania 15.01.2012
Churrascão no Vestíbulo do Inferno
Eduardo Guimarães
O “Vestíbulo do Inferno” aparece na primeira parte da Divina Comédia, obra monumental do escritor, poeta e político italiano Dante Aligheri (Florença, 1265 — Ravenna, 1321). As outras duas partes são “Purgatório” e “Paraíso”.
Divina Comédia versa sobre odisséia do Poeta no inferno conceitual da Idade Média. O périplo de Dante Aligheri pelos nove círculos infernais é guiado pelo poeta romano Virgílio, que vivera quase dois mil anos antes.
Tive uma edição italiana do Inferno de Dante de capa dura (revestida de couro entalhado a mão), primorosamente ilustrada por Gustave Doré. Presente da mãe. Durante anos, vez após outra, degustava cada sílaba do verso do Poeta e cada traço da imaginação do artista.
Lembrei-me da obra medieval ao participar do “churrascão” que ONGs e movimentos sociais promoveram ontem na esquina da rua Helvétia com a alameda Dino Bueno, no olho do furacão, na Cracolândia de São Paulo.
O “Vestíbulo” é para onde vão as almas dos que não são aceitos no céu, mas que não merecem ir para o inferno. Exatamente como aqueles farrapos humanos prisioneiros de seus infernos particulares aos quais se pretendeu mostrar que nem todos os esqueceram.
Mas não foi só aos condenados que a iniciativa se deveu. Pretendeu-se mostrar ao governo do Estado (policial) de São Paulo e às suas forças de repressão que há quem não aceite os métodos que estão empregando contra aqueles que continuam sendo seres humanos.
Quem esteve lá sabe o que viu e ouviu. E eu sei. Os raros relatos de prisioneiros do crack desconfiados de que aquilo que ali acontecia não poderia ser em seu benefício – pois nada jamais é – tratam de supostos crimes cometidos por seus algozes.
Relatam que apanham até quando estão dormindo. Um deles disse que a polícia espancou alguém de seu grupo, jogou a pessoa no meio da rua e atropelou. E quando perguntados sobre o que gostariam de dizer à sociedade, dizem que apenas gostariam de parar de apanhar.
A presença da polícia, pois, era ameaçadoramente ostensiva. Entendo que até deveria estar lá para proteger os manifestantes, pessoas de classe média, a grande maioria jovem. Mas se o objetivo fosse proteger não deveria ter ficado tão longe – a uns cem metros de distância.
Então percebo que do teto de uma das bases móveis da polícia estão filmando tudo. Decido ir até lá perguntar a razão.
– Boa tarde, policial.
– O que você quer?
– O senhor poderia me informar a razão da filmagem?
– Não posso. Só o capitão (…).
– Onde ele está?
– Atrás do furgão.
Contorno a base móvel da PM.
– O sr. é o Capitão (…)?
– Eu mesmo.
– Gostaria de saber por que os senhores estão filmando o ato público.
– Em primeiro lugar, quem é você?
– Sou do Blog da Cidadania. Vim cobrir a manifestação.
– Não podemos falar.
– Por que não?
– Ordens.
– De quem?
– Não posso dar informações.
Distancio-me alguns metros do furgão e, naquele momento, sucede uma cena no mínimo curiosa: enquanto fotografo o equipamento de filmagem e o aparato policial em seu entorno, sou fotografado. Travei uma guerra de câmeras com a PM.
A atitude pouco amistosa dos policiais, o interesse inexistente ou proibido de dar satisfações à sociedade sobre seus métodos de atuação, tudo isso deixa ver uma paranóia contra não se sabe o que. Era como se temessem um atentado terrorista.
A quem filmavam? Será que alguém iria traficar drogas em um local que tinha tantas câmeras e tanta polícia? Para que filmariam aqueles farrapos humanos que tão bem conhecem, pois de lá não saem?
Quem foi filmado, portanto, foram aqueles que levaram alento e comida a esfaimados. Mas por que? Que crime poderíamos cometer ao levar um sopro de humanidade ao inferno?
Refleti, naquele momento, que o Estado está completamente divorciado da sociedade, em São Paulo. O cidadão que diverge das autoridades locais é visto como inimigo. Por isso a polícia paulista é tão grosseira, autoritária e violenta.
As constatações deprimentes que aquela descida ao inferno causou, porém, não parariam por ali. Os zumbis do crack e os visitantes solidários pouco se misturavam. Os receptivos eram moradores de rua, mas não necessariamente usuários daquele veneno.
Alguns usuários de fato atravessavam a multidão dando encontrões de raspão, aparentemente contrariados. Fiquei imaginando se não temiam que tudo aquilo lhes fosse cobrado pelos opressores quando fôssemos embora.
Aqueles filhos de Deus rescendendo a morte, a excrementos, a álcool, com bocas desdentadas, feridas espalhadas e olhares mortiços… Como ir embora e deixá-los lá? Como sair dali sem ter feito nada? E o que é mais: como purgar a culpa por fazê-lo?
Moças e rapazes tentavam puxar canções, instilar alguma alegria no entorno – como se fosse possível –, mas não repercutia. Não havia espaço para outro sentimento além da perplexidade. E a separação tácita entre visitantes e anfitriões, mesmo estando misturados, tornava tudo pior.
Após resistir por cerca de uma hora, não suportei mais. Despedi-me de amigos que lá encontrei e saí em fuga daquele inferno. E sem olhar para trás.
Perdi a noção de tempo e espaço. Caminhei debaixo de chuva por quilômetros. Só então parei um táxi. Chegando em casa, tomei uma dose de cachaça. E mais outra. Lá pela terceira percebi o que estivera fazendo: tentara, sem sucesso, redimir-me da culpa.
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Carta Potiguar 04/11/2011
Os novos “loucos” da sociedade contemporânea
O consumo de álcool e outras drogas ilícitas tem aumentado cada vez mais a urgência por leitos psiquiátricos e a associação desse fenômeno com a execução da reforma psiquiátrica tem caracterizado um momento muito particular da saúde pública: a substituição progressiva dos leitos de internação psiquiátrica de portadores de transtornos mentais não induzido por álcool e outras substancias por leitos de desintoxicação para dependentes de drogas ilícitas.
Somando a essa situação o processo histórico cultural de criminalização e marginalização aos quais os usuários de drogas vivem atualmente na sociedade com a entrada deles no antigo modelo hospitalocêntrico das instituições psiquiátricas, dominados pela medicalização e segregação dos usuários, têm-se então os usuários de drogas assumindo a condição de “loucos” da sociedade contemporânea.
Porém, muito mais do que herdar o triste legado da história da loucura, os usuários de drogas também herdam um antigo modelo de práticas de “cuidados” ultrapassados e arcaicos impostos pela sociedade nos hospitais psiquiátricos ou nas comunidades terapêuticas — manicômios modernos, que não fazem parte dos dispositivos de saúde pública, reintroduzem o isolamento social a partir de internações involuntárias e centram suas práticas nas temáticas religiosas, costumeiramente desrespeitando a liberdade de crença do usuário.
Vejamos algumas implicações desse modelo:
1º Falta do compromisso moral com o outro
Precisamos superar a idéia posta pelo sistema da loucura de que o usuário de drogas é um monstro, irrecuperável, perigoso ou vagabundo. Os usuários sãos pais, mães, irmãos, irmãs, filhos, amigos, parentes de alguém, meu ou seu. O uso perverso dessa linguagem discriminatória e estigmatizante destitui o indivíduo de sua própria identidade enquanto pessoa e cidadão e em decorrência disso, legitima e autoriza a perseguição e a violência por parte daqueles que deveriam ser solidários e altruístas para com os que estão imersos nas drogas.
Exclusão social imposta pela internação
O isolamento e a segregação social ao qual estão destinados os usuários de drogas nos hospitais psiquiátricos e nas comunidades terapêuticas não apenas afastam os indivíduos de uma relação dialética com sua comunidade, mas também promove a falta da produção de cuidado de âmbito coletivo que deveria ser promovido pelas redes de apoio social, bem como a garantia do direito do usuário de ser esclarecido sobre a sua saúde, de intervir no proprio tratamento e de ser o considerado em suas necessidade, em função de sua subjetividade, crenças, valores,  contexto e preferenciais.
Retrocesso da continuidade e avanço da reforma psiquiátrica
Utilizando-se dos (de)serviço dos hospitais psiquiátricos e das comunidades terapêuticas para depositar a “escória” de nossa sociedade, o Estado vai de encontro com a proposta da reforma psiquiátrica que estabelece os Centros de Atenção Psicossocial e residências terapêuticas como serviços substitutivos do modelo asilar que favorecem um modelo de cuidados em que o enfoque é a população (portadores de transtornos mentais e usuários de drogas, bem como suas respectivas famílias e comunidades) e a reinserção social dos usuários através da preservação de sua  identidade e cidadania.
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Editorial - Folha de São Paulo 02.01.2012
Resolver a cracolândia
Ação na área central da cidade de SP pode representar um passo inédito na tentativa de reverter a degradação do local, acentuada pela droga
Nenhuma solução é simples quando se trata de saber o que deve ser feito com a chamada cracolândia -região do centro de São Paulo ocupada por usuários de uma das drogas mais destrutivas (e baratas) já inventadas pelo ser humano.
Mesmo com o apoio financeiro e emocional da família, tratamentos para dependentes de tóxicos podem fracassar seguidas vezes. Que dizer então de todo um contingente de pessoas miseráveis, que criou nas proximidades da estação da Luz formas próprias de socialização e convivência?
O problema tem, como se sabe, um aspecto policial -exigindo a repressão ao tráfico- e uma dimensão social e sanitária, que pressupõe, no mínimo, o estabelecimento de laços de confiança entre equipes de assistentes e usuários da droga.
É muito raro que se consiga conjugar esses dois focos de atuação. A notícia de que será inaugurado, dentro de 30 dias, um centro de atendimento na cracolândia pode indicar o começo de uma presença efetiva do poder público naquela região -um pouco aos moldes do que foi feito em algumas comunidades do Rio, com as UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora).
Todavia os acontecimentos dos últimos dias indicam que a desejada coordenação entre ação repressiva e assistência social ainda não se verificou.
Repetiu-se, com mais intensidade talvez, uma daquelas operações vistosas que, como se tem visto nos últimos anos, tendem a deixar tudo como estava tão logo os policiais se afastam do local.
Como não poderia deixar de ser, dependentes de crack espalharam-se pelas regiões vizinhas. Consequência mais grave, segundo especialistas ouvidos pela Folha, é que operações desse tipo podem destruir um trabalho paciente de contato entre assistentes sociais e dependentes, com vistas a um futuro tratamento. 
É recorrente, e por vezes beira a demagogia, o emprego do rótulo "higienista" como forma pejorativa de qualificar as tentativas de tornar minimamente habitável a região da cracolândia.
Todavia, seja qual for o rótulo utilizado, uma alternativa clara se impõe. Trata-se de revalorizar uma área urbana específica, ou importa mais concentrar a atuação do poder público sobre a população que a deteriorou?
O bom-senso indica que, com todas as dificuldades que isso impõe, o principal é cuidar dos usuários de crack. De nada adianta apenas expulsá-los do local. Pulverizam-se pelas adjacências e logo reagregam-se em outra áreas.
Ao contrário, a oferta de um local para moradia, alimentação, tratamento e assistência ao usuário, de modo a, na medida do possível, convencê-lo a revalorizar a vida, é o caminho mais correto a seguir. Governo e prefeitura têm falhado seguidamente nesse propósito. Resta saber se agora será diferente.
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DAR 05.01.2012

O PAU DE ARARA DA DUPLA KASSAB-ALCKMIN NA CRACOLÂNDIA

Wálter Fanganiello Maierovitch
Tortura da Roda, na Idade Média
É inacreditável. Em tempos de Tribunal Penal Internacional e de luta sem fronteiras por respeito aos direitos humanos e contra a tortura, o prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab, e o governador do estado paulista, Geraldo Alckmin, adotam, na conhecida Cracolândia, violência contra dependentes de crack. A dupla de governantes acaba de oficializar a tortura.
Na quarta-feira (4), por determinação do prefeito da cidade de São Paulo e do governador do Estado, iniciou-se o denominado “Plano de Ação Integrada Centro Legal”. Esse plano, consoante anunciado, terá duração indeterminada.
O plano, como explicou o coordenador de políticas de drogas da Secretaria Estadual de Justiça e Cidadania, Luiz Alberto Chaves de Oliveira, consiste em obrigar os dependentes que vivem na Cracolândia a buscar ajuda, “pela dor e sofrimento” decorrentes da abstinência, junto às autoridades sanitárias ou redes de saúde.
Ao tempo do DOI-CODI, a tortura, como regra mestra, foi largamente empregada. A regra era torturar, física ou psicologicamente, para obter o resultado esperado.
Nos campos nazistas, a fome e o abandono levavam à morte. Auxiliavam na vazão, pois, eram insuficientes em número os fornos crematórios.
A tortura indireta posta em prática pela dupla Kassab-Alckmin tem o mesmo fundamento dos campos de concentração nazista. E a tortura imperava no DOI-CODI, de triste memória.
Em nenhum país civilizado emprega-se essa estratégia desumana a dependentes. Ao contrário, investe-se no convencimento ao tratamento e até nas salas seguras para uso de drogas.
As federações do comércio e da indústria da Alemanha apoiam os programas de narcossalas com 1 milhão de euros. E ninguém esquece a lição do professor Uwe Kemmesies, da Universidade de Frankfurt: “Podemos reconhecer que a oferta de salas seguras para o consumo de drogas melhorou a expectativa e a qualidade de vida de muitos toxicodependentes que não desejam ou não conseguem abandonar as substâncias”:
http://maierovitch.blog.terra.com.br/2011/12/12/novo-perfil-no-ministerio-publico-do-tribunal-penal-internacional-nao-agrada-defensores-de-direitos-humanos/
Desde os anos 90, a cidade convive com a Cracolândia e os governos são incapazes de adotar políticas adequadas. Nem as delegacias especializadas, tipo Denarc (delegacia de narcóticos), nem a polícia militar identificaram, até hoje, a origem do crack que é ofertado. Agora, numa ação policialesca, busca-se o cerco ao usuário para se chegar ao vendedor da droga. Vendedor que, evidentemente, não é o operador da rede de abastecimento de crack para as cracolândias brasileiras.
Uma questão sócio-sanitária, de saúde pública, não pode mais ser enfrentada com soluções torturantes, como pretendem Alckmin-Kassab.
Pano Rápido. Aguarda-se que a ministra responsável pela Secretaria Nacional de Direitos Humanos, Maria do Rosário,  tome medidas adequadas para suspender as torturas em São Paulo e o procurador-geral da República, Roberto Gurgel,  inicie apurações criminais. E espera-se que a nova procuradora junto ao Tribunal Penal Internacional, Fatou Bensouda, natural de Gâmbia (África Ocidental), levante o que acontece na Cracolândia e enquadre as irresponsabilidades e desumanidades.

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Escreva Lola Escreva 08.12.2012
ISOLAR PACIENTE PSIQUIÁTRICO É VIOLÊNCIA
Faz tempo que pedi a Lauren Archilla, uma leitora/comentarista das mais antigas e inteligentes, que escrevesse um guest post relacionado a sua profissão de psicóloga. O legal de ter um blog há quase quatro anos é que a gente acompanha a pessoa se formar e começar sua vida profissional.
Bom, esta semana a Lau voltou com tudo. Primeiro ela me enviou um caso escabroso em que a pesquisa acadêmica está sofrendo censura. Eu já assinei a nota de apoio. Lá embaixo a Lau explica. Antes, ela faz um retrato desolador do que ainda são os hospitais psiquiátricos no Brasil, apesar de uma lei que abole os manicômios já ter sido aprovada há dez anos!
O trabalho da Lau e de outras pessoas neste tema é tão importante que elas ganharam o Prêmio Nacional de Direitos Humanos na categoria Enfrentamento à Tortura, a mais alta condecoração da República. Irão receber o prêmio amanhã, das mãos da Dilma. Muito orgulho de você, Lau!
Há décadas já se questionava a efetividade da promoção de saúde nos hospitais psiquiátricos. Baseados em estudos de Franco Basaglia, Michel Foucault e inúmeros pesquisadores que vieram depois, constatou-se que isolar uma pessoa doente da sua comunidade e colocá-la em contato somente com mais pessoas doentes (às vezes em estado pior que o dela) não poderia gerar resultados positivos.
Foi então que começaram a ser pensados novos espaços de tratamento, como os CAPS (Centros de Atenção Psicossocial), os quais se dividem em I, II, III, AD e Infanto-juvenil, Centros de Convivência e Cultura, Residências Terapêuticas, Oficinas de geração de renda e redes de economia solidária. Os Caps seriam a principal estrutura de cuidado ao usuário. Lá, deve haver uma equipe composta não só de médicos, mas psicólogos, terapeutas ocupacionais, assistentes sociais, etc, que promoveriam a saúde e o bem estar do paciente, fazendo com que ele passasse o dia em tratamento e, à noite, pudesse regressar à sua casa, convivendo com seus familiares, vizinhos, amigos, namorad@; enfim, pudesse manter e criar vínculos que fazem parte da vida do ser humano.
No caso de pacientes agudos, que têm surtos, existiriam os CAPS III, que permitem uma internação que duraria até sete dias, tempo suficiente para o surto ser contido, tratado e para o sujeito regressar à sua casa. Estes CAPS devem funcionar 24h/dia, afinal, surto não marca hora.
O CAPSad é voltado aos usuários de álcool e outras drogas, que receberiam um tratamento laico e que respeite suas limitações e sua individualidade. Os centros de convivência são espaços onde o usuário convive, conforme o nome indica, com outros usuários, não-usuários e profissionais, que realizam atividades ocupacionais e de geração de renda. Por fim, no caso de pessoas que estão longe do seio familiar há muitos anos, cuja reintegração seria penosa ou impossível, existiriam as residências terapêuticas, casas mantidas pelo Estado, onde residiriam grupos de ex-internos que poderiam viver suas vidas normalmente.
Ainda assim, se apesar de toda essa estrutura ainda houvesse necessidade de internação maior que a de sete dias, defendemos que esta seja feita em hospital geral, em leitos destinados à ala psiquiátrica. Veja bem: um paciente renal não precisa morar num “hospital renal” para receber tratamento. No máximo, ele comparece algumas vezes por semana para hemodiálise e em seguida retorna ao lar. Em último caso, fica internado no hospital geral.
Por que, então, um psicótico precisa de um hospital específico? E o depressivo? O usuário de drogas? Seria o cérebro (ou a mente) um corpo avulso, separado do resto da pessoa? E se o esquizofrênico tiver câncer, ele fica sem tratamento porque não tem centro de oncologia no manicômio? Ou vai para o hospital geral depois de passar a vida inteira isolado, onde perdeu até mesmo a noção de humanidade? Infelizmente isso não é exagero. Estagiei num manicômio onde muitas pacientes não sabiam mais comer com garfo e faca nem formar um círculo para realizarmos atividades.
São muitas as desvantagens dos hospitais psiquiátricos. É por isso que, em 2001, após uma década de debates com acadêmicos, legisladores, usuários do sistema de saúde mental e seus familiares, foi aprovada a lei 10216, que exige que a rede substitutiva seja implantada nacionalmente, para então abolirmos os manicômios.
Em quase todo o País houve mudanças. Claro que não há uma região onde o cuidado esteja ocorrendo perfeitamente, sem nenhuma crítica possível; afinal, transformações são trabalhadas e geram novos problemas. Porém, na região de Sorocaba (quarta cidade mais populosa do interior de SP), o número de internações psiquiátricas ainda é altíssimo, configurando um pólo manicomial. A prefeitura alega que foram construídos muitos Caps, mas, como a região historicamente tem um número elevado de manicômios, ainda estamos disparados no ranking de internações. De todos os Caps que dizem ter construído, a maioria apresenta irregularidades grotescas, impedindo o Ministério da Saúde de reconhecê-los como Caps e mandar a verba necessária para a manutenção.
Há “Caps”, por exemplo, que funcionam dentro de manicômios. Quase todos eles são administrados pelos próprios hospitais. Perguntamos, então: que raio de reforma psiquiátrica é essa?
Foi assim que, no ano passado, iniciamos uma série de mobilizações cobrando da prefeitura de Sorocaba e de cidades vizinhas (como Piedade e Salto de Pirapora) que a reforma seja implantada corretamente e de uma vez por todas. A este grupo deu-se o nome de FLAMAS (Fórum da Luta Antimanicomial de Sorocaba).
Procuramos o Prof. Dr. Marcos Garcia, psicólogo social docente da UFSCar, que conduziu uma pesquisa sobre as mortes nos leitos psiquiátricos de Sorocaba.
Não nos surpreendemos ao constatar que não só éramos vice-recordistas em leitos psiquiátricos (só perdendo para o Rio de Janeiro), como que a taxa de mortes nestes mesmos hospitais era altíssima se comparada ao resto do Estado. Que o número de funcionários nestes mesmos estabelecimentos era ridiculamente pequeno se comparado ao mínimo exigido pela legislação. 
Levamos tudo à mídia, o que causou, naturalmente, comoção pública. Criou-se uma cultura de denúncia. Famílias que tinham membros internados (e consideravam isto natural, uma vez que pouco se fala na reforma psiquiátrica aqui), passaram a ver a situação com olhos críticos e a denunciar maus-tratos.
Após um ano de trabalho intenso, reuniões com membros da prefeitura e até com o próprio prefeito, NENHUM LEITO FOI EXTINTO. NENHUM PACIENTE REINTEGRADO. O poder público demonstra total negligência para com as vidas que estão sendo ceifadas dentro desses verdadeiros campos de concentração.
Agora, numa tentativa patética de nos calar, os donos dos hospitais entraram com uma ação na justiça contra o Prof. Dr. Marcos Garcia e o psicólogo Lúcio Costa, alegando que causamos “pânico” na população com a divulgação dos dados da pesquisa (todos eles tirados do Datasus, banco de dados oficial do governo, visível para qualquer um que queira acessar).
Diante desta conjuntura, peço que os indignados entrem no blog Liberdade de Pesquisa e assinem a nota de apoio ao professor Marcos, exigindo assim que pesquisadores possam divulgar seus resultados doa a quem doer -- ainda que o prejudicado seja uma indústria bilionária -- sem temer retaliações.
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A força da tutela

Paulo Delgado

O sofrimento virou doença.
Qualquer mal-estar diante do mundo, um distúrbio.
A ambição grandiosa da psiquiatria está cada vez mais parecida com o sem limite do mercado financeiro. Querem que todos vivam suas leis de ferro, amedrontados e submissos. Nada melhor para a criação de crises do que um poder sem sociedade, com regras próprias, exercido sobre todas as pessoas, sem que elas tenham direito de reagir ou ficarem indiferentes.

 Basta dar o nome de diagnóstico para relacionar sintomas e definir como transtorno qualquer manifestação da personalidade. 
Quando a prática da medicina, subjugada à indústria de medicamentos, se oferece como cárcere, ficamos diante de uma verdadeira bomba embrulhada como se fosse terapia.
Pior quando uma especialidade médica transforma em missão sanitária esconder hábitos e tarefas de uma sociedade indiferente a vida dos outros e que só vê as pessoas de forma binária: como sucesso ou fracassadas. 
A Organização Mundial da Saúde (OMS) anda preocupada com a definição de doença mental que a quinta edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Doença Mental — universalmente conhecido como DSM-V — anda preparando.
A ser lançada em 2013, mas já objeto de tensa polêmica no meio psiquiátrico, especialmente norte-americano, a nova edição da DSM, transforma o cérebro num disco rígido. Um computador sem alma, intoxicado, num mundo cada vez mais doente e que somente poderá ser salvo por remédios.
A OMS alerta que não aceita a desenvoltura da classificação, porque não é doença o que não pode ser caracterizado patologicamente, tem etiologia desconhecida, não possui padrão uniforme, não pode ser confirmado. 
Quem não viveu, alguma vez na vida, alguma destas graves “doenças” psiquiátricas: abuso ou abstinência de substâncias, ansiedade, autismo, déficit de atenção, transtorno bipolar, confusão, desatenção, tendência à psicose, transtorno de personalidade, comportamento antissocial, apego reativo, amnésia, esquizofrenia, distúrbios diversos, etc. São tantos os nomes das “doenças do nervo” que agora viraram sinônimos de remédios e comportamentos, que começa a ficar preocupante o convívio humano.
A menos que a sociedade perceba a gravidade dessa verdadeira epidemia que é querer tratar pela psiquiatria as dificuldades e problemas que fazem parte da vida. Junte os ritmos cada vez mais velozes e insanos da vida diária a esta forte tradição que tem a medicina de “encaixar um sintoma”, prescrever um remédio e mandar para o hospital que vamos todos viver dopados.
Qual é a definição precisa de transtorno mental?
Quem pagará pela tragédia que o diagnóstico errado causa na vida das pessoas? 
Qualquer coisa malfeita afeta a todos.
Mas quando é feita na rua aos olhos de todos como se fosse uma acusação, seja pelos despossuídos que usam crack, seja pelas autoridades que usam o arbítrio para fazer a cidade limpa, há aí outra vertente impiedosa dessa epidemia da tutela. Aqui o erro vem na sua forma prática como serviço, depósito de exilados.
No mesmo embrulho mistura arbítrio e falsa legalidade e dá o nome de tratamento para o que é abandono.
Chama de falha moral a ousadia de esses jovens se desintegrarem nas ruas e praças. O usuário de crack compartilha a única localização no espaço urbano onde o efeito do que ele faz não é insignificante para os outros.
Gerador de atenção e afeição momentânea não consegue transformar em sonhos o que está vivendo. Se o judiciário diz que é legal passeata para defender o que é considerado ilegal, de onde sai a ousadia da autoridade para recolher das ruas e retirar direitos de jovens pobres e abandonados?
Onde pretende devolvê-los?
Dar o nome de terapia à indiferença social e ao fracasso da política pública — que não tem força para destinar recursos para serviços abertos 24h, descentralizados e multiprofissionais de acolhimento — só confirma a força que a indústria médica da tutela continua a ter sobre a população. 
O que só aumenta a tragédia que é ver o sofrimento não gerar mais afeição.
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PAULO DELGADO é sociólogo, foi deputado federal pelo PT de Minas e autor da Lei da Reforma Psiquiátrica.
E-mail: contato@paulodelgado.com.br. 
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ESTAMOS USANDO O CRACK
Edmar Oliveira*
Estamos assistindo ao desmonte de um conjunto de políticas modernas e revolucionárias na área da Saúde Mental e a reimplantação de um modelo cruel e historicamente falido. Vamos olhar a questão por uma lente grande angular: setores hipócritas da sociedade, uma mídia alarmista e políticas públicas equivocadas (quando não intencionais) estão usando o crack para criminalizar a pobreza e atacar os bolsões de populações em situação de vulnerabilidade com o eufemismo do “acolhimento involuntário”. Construção inconciliável, que nós, os que trabalhamos no campo da Saúde Mental, sabemos ser falsa: ou bem o acolhimento é voluntário ou, se involuntário, aí não é mais acolhimento, e sim recolhimento. Primeiro veio o ataque às “cracolândias” de São Paulo, depois adotado na Cidade Maravilhosa que precisa ser “higienizada” para os eventos do calendário esportivo mundial. E por imitação, começa a acontecer em outras metrópoles.
A situação complexa dos bolsões de pobreza, com pessoas em situação de vulnerabilidade, não pode ser entendida de forma simplificada e menos ainda ser resolvida por atitudes apressadas. Para enfrentar a disseminação do uso de crack e outras drogas (o álcool, droga lícita permitida, e os solventes, vendidos para outros fins, estão associados ao crack, que quase nunca é consumido isoladamente), o Ministério da Saúde, através da sua Área Técnica em Saúde Mental, vinha adotando uma Política Nacional de Enfrentamento ao Álcool e outras drogas (PEAD) que previa uma complexidade de equipamentos comunitários, móveis e hospitalares. São os Centros de Atenção Psicossocial para Álcool e outras drogas (CAPS ad como centro de acolhimento diurno ou com leitos funcionando 24 horas); aproximação aos Programas de Saúde da Família através dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (os NASFs); Casas de Acolhimento Transitório (as CATs) para pessoas em situação de vulnerabilidade territorial; Consultórios de Rua, móveis, para o acolhimento e atenção dessas pessoas; Leitos Hospitalares de Referência nos Hospitais Gerais (sim, porque só neles podem ser tratados os agravos clínicos consequentes ao uso de drogas lícitas e ilícitas); além dos hospitais especializados. 
Ou seja: a situação complexa do usuário deve ser atendida de forma também complexa, com um conjunto de dispositivos adequados a cada momento às necessidades do usuário. O leito comunitário do CAPS ad e o da Casa de Acolhimento Transitório não é o mesmo do Hospital Geral ou o do Hospital Especializado. Eles não competem entre si, mas são complementares, segundo a necessidade real psicológica e física do usuário a cada momento. A política do recolhimento involuntário oferece apenas um dispositivo, a antiga e inadequada internação psiquiátrica, que a mesma política de Saúde Mental vinha combatendo por seu caráter repressivo e violador dos direitos humanos. Esta forma não pode ser encarada como um tratamento adequado e resolutivo na nossa modernidade, mas apenas um retorno ao “tratamento moral” do começo da psiquiatria no século XVIII. 
Assistir ao desmantelamento das políticas complexas, que ainda estavam em ritmo de implantação, para a recuperação de um modelo já condenado no século passado é um martírio que os militantes da construção da Reforma Psiquiátrica estão vivendo. A Reforma Psiquiátrica é um movimento que implantou dispositivos comunitários de Saúde Mental, reduzindo consideravelmente o uso do hospital psiquiátrico especializado. E pior é saber que o modelo da internação (na contramão da Reforma), proposto atualmente, condena à exclusão intencional, em nome do tratamento, populações vulneráveis que sofrem da epidemia de abandono social. E para as quais haveriam de ser implantadas políticas públicas sociais, educacionais, habitacionais e de emprego propondo a inclusão dessas pessoas que ficaram para trás no apressamento competitivo dessa sociedade.
Pois não é o crack a epidemia a ser enfrentada, mas o abandono de populações marginalizadas que não encontram lugar nessa sociedade do individualismo. Talvez por isso eles se juntam nos guetos, onde ainda encontram a solidariedade dos iguais, já que a sociedade não tem lugar para esta gente que não soube encontrar seu lugar. É a partir dos guetos, lugares que geralmente são depósitos de lixo, que os abandonados gritam à sociedade que são o lixo humano sobrante dessa sociedade egoísta. Um observador estrangeiro chamou esses lugares de “manicômios a céu aberto”. Correta observação. Eles estão presos à impossibilidade de pertencimento à sociedade moderna.
Voltando a olhar pela lente grande angular: não é pelo uso do crack que eles se encontram nestes lugares marginalizados a que chamam de “cracolândia”, mas por estarem nestes lugares em situação de vulnerabilidade e abandono é que – também - fazem uso do crack. Todos nós estamos “usando” o crack para esconder nossa sujeira debaixo do tapete.
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*O psiquiatra Edmar Oliveira foi diretor do Instituto Nise da Silveira (RJ). É autor dos livros “Ouvindo Vozes” Vieira; Lent, 2009, RJ; e “von Meduna”, Oficina da Palavra, 2011, Pi, ambos sobre práticas em Saúde Mental.
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http://bit.ly/vmp7tz 28/09/2011

Contra o arbítrio, regras claras

Julita Lemgruber

No dia 24 de agosto último, a Suprema Corte da Colômbia decidiu que portar pequenas doses de drogas não é crime. E mais, que punir a posse delas viola “o livre desenvolvimento da personalidade”, esclarecendo que “proibir o uso de drogas implica na anulação de direitos fundamentais, reprimindo e sancionando com as mais severas punições uma decisão pessoal”. Ficou claro nessa sentença que uma escolha pessoal que só traz prejuízos para a própria saúde dos usuários e não fere os direitos de outras pessoas não pode ser penalizada. Ficaram também definidas as quantidades de drogas para consumo próprio: 20 gramas de maconha e um grama de cocaína.


É muito urgente rever a legislação brasileira, frágil e pouco nítida no tratamento da matéria, para que se defina qual a quantidade de drogas que alguém pode portar para ser considerado usuário. O passo seguinte deve ser, a exemplo do que outros países vêm fazendo, a descriminalização do uso de drogas.


Com a Lei 11.343 (23/08/2006) o Brasil despenalizou o uso de drogas, livrando da prisão aquele que for considerado consumidor. No entanto, diz o Art. 28: “Para determinar se a droga destina-se a consumo pessoal o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais…”. Quem acompanha o funcionamento do sistema de justiça criminal no Brasil sabe que o exame das “circunstâncias sociais e pessoais” é uma brecha para a rotulagem segundo atributos econômicos e sociorraciais, que têm levado jovens pobres, sobretudo negros e sem recursos para pagar advogados, ao encarceramento por tráfico, enquanto outros jovens, com a mesma quantidade de drogas, mas com melhores “circunstâncias sociais e pessoais”, são enquadrados como usuários e não submetidos à prisão. O Brasil tem hoje a quarta maior população prisional do mundo e o número de presos triplicou em quinze anos. Esse crescimento vertiginoso se deve, sobretudo, ao aumento do número de condenados por tráfico de drogas, que mais do que triplicou em cinco anos. Pesquisas demonstraram, no Rio de Janeiro e em Brasília, que a maior parte desse contingente é de primários, presos em flagrante sem portar arma e sem vinculação com organizações criminosas. Ou seja, estamos enchendo as cadeias com usuários ou pequenos traficantes de drogas cuja prisão não contribui em nada para a diminuição dos níveis de violência e criminalidade.


Se, num primeiro momento, importa definir claramente a questão da quantidade de drogas para consumo próprio, limitando a discricionariedade de policiais e juízes, avançar no caminho de uma legislação moderna é descriminalizar o uso de toda e qualquer droga, deixando claro que quem provocar danos a terceiros sob influência de drogas (como acontece em relação ao álcool) vai, sim, ser punido criminalmente, mas esse deve ser o limite da ação do Estado.


Drogas que alteram o comportamento dos indivíduos sempre foram consumidas e apenas no início do século XX, por razões de ordem puramente econômica, algumas dessas substâncias foram proibidas. Nos anos 1970, os Estados Unidos deflagraram uma Guerra às Drogas que tem consumido, em média, 40 bilhões de dólares anuais, política cujo fracasso é admitido por muitos operadores do próprio sistema de segurança e justiça norte-americano (ver site http://www.leap.cc).


As drogas devem ser encaradas como problema de saúde pública e de regulação social, não de justiça criminal. Em vez de continuar encarcerando milhares de pequenos traficantes a um custo altíssimo, o papel do Estado deveria ser desenvolver uma política racional de redução de danos do uso das drogas e empreender campanhas esclarecedoras inteligentes sobre os riscos do consumo abusivo de drogas, inclusive as atualmente legais, como o tabaco e o álcool.

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Carta Capital 08.08.2011

O inaceitável retrocesso

Fábio Mesquita*

Com consternação acompanho de longe o retrocesso que espero passageiro nas políticas públicas de tratamento de drogas no Brasil. A luta é constante entre o setor conservador, baseado no modelo psiquiátrico e o setor que representa a reforma psiquiátrica e as Conferências Nacionais de Saúde Mental com posições mais contemporâneas.

De um lado a presidenta Dilma parece desconhecer o papel histórico de baluartes de seu partido, como a prefeita Telma de Souza e o ex-prefeito David Capistrano Filho, que na sequência de mandatos do PT em Santos – dos quais tive o privilégio de participar – demonstraram que a violência dos nosocômios e tratamentos enclausurados poderiam e deveriam ser substituídos por modelos baseados em tratamento ambulatorial, voluntário, público e gratuito, de base comunitária, com intervenções psicossociais e sob o controle do setor saúde em seu amplo aspecto e claro amparados na ciência.

Ninguém é dono da verdade quando se fala de tratamento de dependência de estimulantes – cocaína, meta anfetaminas e outros – mas o Brasil com os CAPS AD (Centro de Apoio Psicossocial de Álcool e Drogas) vinha se tornando um modelo público de recuperação da dependência e de reinserção social, observado e aplaudido por todo o mundo. OS CAPS AD implantados no Governo de FHC foram amplamente espalhados pelo país nos dois mandatos do presidente Lula.

A decisão de apoio aberto as chamadas comunidades terapêuticas, é um sinal de retrocesso que pode levar o Brasil a Argentinização da resposta ao problema da dependência química. Um modelo privado, ineficiente, caro e sem sucesso.

Mais grave ainda é o movimento da prefeitura do Rio de Janeiro sob a liderança do prefeito Eduardo Paes, do PMDB e do debate que se segue na Cidade de São Paulo na administração Kassab que vai pela mesma linha de tratamento compulsório para usuários de crack. O tratamento compulsório da dependência química não funciona. A OMS preconiza que o tratamento compulsório só pode ser empregado em situações excepcionais, e por tempo muito limitado, sempre sob decisão judicial, e não do psiquiatra ou da Assistente Social como tem sido o caso. Jamais em massa! Não há uma epidemia de casos excepcionais em que o usuário em questão esteja em risco de vida ou coloque a comunidade em sério risco, como preconiza para aceitar a exceção a OMS. Aliás com vem sendo conduzido no Rio de Janeiro não tem muita diferença com modelos espalhados pela Àsia como aqui no Vietnam ou na China, onde o tratamento compulsório tem sido combatido com veemência por nós das Nações Unidas ou por entidades da sociedade civil como o Human Rights Watch, pela violação de direitos humanos fundamentais.

A política publica de drogas e a esteria causada pelo crack são desproporcionais. O Relatório da ONU sobre Drogas de 2010 mostra que a droga que mais cresceu no mundo e no Brasil foram as meta-anfetaminas, outro estimulante mais fácil de produzir, comercializar e disseminar e dependendo do uso tão ou mais danoso que o crack. A falta de uma Política Pública sobre Drogas adequada, pragmática, humanitária, pautada na realidade e nos direitos humanos é o problema de fundo do Brasil. Neste ponto a voz mais lúcida do país tem sido a do ex-presidente Fernando Henrique. A epidemia de crack é só um sintoma e a reação a ela um desespero de quem não tem proposta de médio e longo prazo para enfrentar um fenômeno que sempre esteve presente na humanidade. Enquanto isto para usar o jargão do futebol, invista nos CAPS AD e não mexa em time que ta ganhando.

*Fábio Mesquita é médico pela UEL, doutor em Saúde Pública pela USP, atualmente Chefe da Equipe de Controle de HIV/AIDS da Organização Mundial de Saúde no Vietnam, um país onde a epidemia de AIDS é totalmente associada ao uso de drogas.

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Por que defendo a legalização das drogas

Siro Darlan

Desembargador do Tribunal de Justiça do Rio e membro da Associação Juízes para a Democracia

Rio - Por 14 anos fui juiz da Infância e da Juventude do Rio. Também fui juiz da Vara de Execuções Penais. Filiava-me dentre aqueles que demonizavam drogas e traficantes. Testemunhei que nada se fazia em matéria de saúde pública para ajudar as vítimas das drogas. Ouvi de autoridades a afirmação de que, além de ser muito caro o tratamento, não havia formas de proteger as crianças das influências e consequências. Experimentei atitudes radicais como a de mandar prender médicos dos hospitais públicos que se recusavam a atender crianças vítimas do uso da cola de sapateiro.

Toda essa luta desaguava na falta de interesse em olhar para essa questão como problema de saúde pública. Pior que isso, o ‘combate armado’ aos traficantes interessava sob o ponto de vista econômico, pois alimentava a corrupção policial e, como bem mostrou o cinema, passava pelos interesses políticos. A última incursão no Alemão com os policiais portando mochilas mostrou a cumplicidade com o tráfico. Mochilas com ouro, dinheiro e cocaína, segundo informam alguns policiais e moradores destemidos que testemunharam os fatos.

Vi então que combatia o mau combate e estava iludido como a grande maioria das pessoas que estudam na cartilha dos grandes veículos de comunicação, principais interessados na manutenção do status quo. Dessa forma passei a me filiar dentre aqueles que preferem a verdade dos fatos a viver numa ilusória hipocrisia. E a proibição pura e simples só interessa àqueles que fingem combatê-la. Concluí que o caminho da educação é o melhor e mais responsável. Daí porque me filiei à Leap Brasil para defender a legalização da venda das drogas com alta tributação carimbada para o processo de educação e esclarecimentos aos usuários como uma forma responsável e eficiente de impedir que a corrupção política e policial continue se alimentando dessa guerra suja e hipócrita e que a falta de orientação e apoio continue matando tantos inocentes.

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blog luisnassif, 16/07/2011

O combate ao crack

Comentário ao post Combate ao crack, por Dráuzio Varella

Por Alexandre Vasilenskas Gil

 Sou psicólogo, mestre e doutor em saúde coletiva e trabalho na rede de saúde mental de Macaé/RJ, mais especificamente na unidade de emergência psiquiátrica do município. Além de ter sido membro do conselho municipal de políticas sobre drogas.  O que acho que me habilita para falar do assunto com um pouco mais de propriedade que o festival de senso comum que o Dr. Draúzio Varela explicita (parece entender do assunto tanto quanto eu entendo de câncer).

As pessoas precisam ser informadas de alguns dados básicos para uma discussão mais qualificada desse tema:

Hospitais psiquiátricos eram e são cenários de filmes de terror onde pacientes vagavam como zumbis, sendo periodicamente torturados por práticas como eletrochoques (usando na sua esmagadora maioria nesses lugares como técnica de tortura e não tratamento) e toda série de maus tratos que se pode imaginar, tudo fartamente financiado com dinheiro público. É preciso que se lembre a classe média (se funcionar) o que eram esses lugares que eles querem reativar para ver longe de seus olhos esse problema:

- Internação compulsória já foi tentada nesses casos no mundo inteiro com resultados insuficientes. Aliás apenas 30% dos casos parecem ter como resultado a abstinência completa. A suíça "não acabou" com as experiências de redução de danos, como diz o texto, apenas as aprimorou, utilizando agora as "narcosalas" onde tolera-se o uso de drogas desde que os usuários sejam acompanhados por uma equipe interdisciplinar de saúde;

- O crack é a pasta base de cocaína misturada com bicarbonato de sódio, o que possibilitou pela primeira vez termos uma droga pesada acessível aos pobres. Antes era cachaça... Tal foi o fruto da política de repressão aos insumos do refino da cocaína, principalmente o éter. E quem diz isso é a direção da polícia federal e não nenhum militante pela legalização das drogas. Não teríamos o crack sem a política proibicionista;

-Recebo a todo momento pedidos de internação para usuários compulsivos de drogas ilegais, de fato as mães chegam desesperadas. Mas na primeira conversa, descobre-se que muitas vezes o paciente já foi internado inúmeras vezes, inclusive por períodos longos. Não é liberalismo político acreditar que sem o componente da vontade esses tratamentos não costumam funcionar, é fato.

- Existe atualmente um movimento corporativo de cunho conservador que tenta voltar atrás nas políticas de reforma psiquiátrica usando o crack como pretexto. Aliás curiosamente costumam se aliar aos defensores de clínicas de cunho religioso (que querem ter financiamento do SUS para fazer seu proselitismo, usuários de drogas são ótimos "alvos" tendo em vista sua fragilidade emocional). Tal movimento é liderado hoje pela ABP (Associação Brasileira de Psiquiatria). É preciso esclarecer que eles estão muito longe de representar hoje consenso técnico com relação ao assunto, vide a posição contrária da ABRASME (associação brasileira de saúde mental), também dirigida por um psiquiatra e defensora da reforma psiquiátrica e das políticas de redução de danos.

- Boa parte dos problemas decorrentes da "epidemia de crack" estão relacionados não tanto com a droga em si, mas com a miséria urbana associada ao uso da substância. Existem usuários de crack por ex. no Canadá, sem que se veja as cenas lamentáveis de metrópoles como São Paulo ou Rio. Atualmente a facudade de Medicina da UFRJ faz parte de uma pesquisa nacional sobre usuários de crack, a Dra. Erotildes Legal faz parte da equipe e seria uma boa fonte para desfazer os mitos sobre o assunto;

-Por último é díficil não ver na defesa desse tipo de política repressiva um sintoma da facistização avançada da classe média tradicional que vem se dando já faz alguns anos. "Crackeiros" incomodam? que  os prendam e coloquem em algum depósito longe das vistas das "pessoas de bem". Se esses lugares se mostrarem pouco tempo depois sucursais do inferno aí não é mais problema nosso.... No artigo de Draúzio Varela não faltou nem mesmo aquele tradicional apelo emocional usado normalmente na defesa da pena de morte ou redução da maioridade penal (queria ver se fosse seu filho!). Não é "hipocrisia" que usuários de drogas devam ser alvos de repressão policial apenas se cometerem crimes... é simplesmente um principal básico do Estado de Direito, que para o sr. Draúzio Varela e parte de nossa classe média não deve se aplicar a pobres, negros, homossexuais e afins... apenas para "gente diferenciada".

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A construção social do problema drogas.

Gilberta Acselrad*

Entre a glamourização e a demonização do uso de drogas, e em que pese a produção de conhecimento que procura dar conta da complexidade da experiência, a população consumidora continua sendo vista como a grande culpada. De um lado, a população consumidora que carrega algum estigma social – racial, ocupacional, habitacional, nacional, entre outros –, que consome drogas de baixa qualidade e, principalmente, que encontra no comércio da droga sua fonte de sobrevivência e de inserção social, ainda que na ilegalidade. De outro, aquela que, por sua posição social e econômica, não é estigmatizada e que se ampara na ideologia liberal que justifica que se limite para alguns – cidadão ou cidadã de “primeira classe” – o poder do Estado de interferir na vida privada. Reiteram-se as afirmações “o uso de drogas desagrega as famílias”, “o uso de drogas leva à violência”, “enquanto houver usuários, haverá tráfico”, “quem usa drogas participa da violência que cerca sua produção”, “vamos seguir os usuários e chegaremos aos traficantes”. Afirma-se que “enquanto houver demanda, haverá oferta”. Mas não há razões suficientes para crermos que o “problema” da droga esteja apenas no consumo, como insistem alguns governos, instituições e parte da mídia. O consumo parece ser a ponta de um iceberg, expressão do mal-estar do sujeito no mundo moderno. Pois a demanda não brota espontaneamente, ela é produzida social e historicamente. 

Contexto obscuro

Culpabiliza-se a população como forma de justificar a manutenção da lei que proíbe o uso de certas drogas, mesmo quando não há danos a terceiros, justificando igualmente toda a repressão que dela decorre. A violência que hoje envolve consumo e, principalmente, o tráfico parece ser única, não sendo relacionada como uma entre outras formas de violência, a caracterizar as relações humanas. Obscurece-se o contexto de uso. Não vem à tona o fato de que, em se tratando de drogas como maconha e cocaína, nos países subdesenvolvidos, grupos sociais que estão fora do controle da economia institucionalizada dominam o cultivo, a produção e parte do transporte de drogas. Minimiza-se a responsabilidade dos setores financeiros dos países desenvolvidos, no comércio de insumos necessários à produção, sua responsabilidade na lavagem e apropriação dos fundos provenientes do comércio ilegal. Dissimulam-se tanto a dificuldade dos poderes públicos em elaborar políticas públicas de integração social plena que garantam a redução dos eventuais danos decorrentes do uso, como as ambigüidades ideológicas, filosóficas e das políticas proibicionistas¹.

A incapacidade de controlar os hábitos de consumo se manifesta não só nas políticas que tentam erradicar o consumo de drogas ilícitas, como também nos espaços educacionais, familiares e de trabalho. Há, na realidade, um grande confronto entre uma lógica econômica que, ao mesmo tempo em que combate uma mercadoria de consumo ilegal, estimula sua necessidade pela produção de uma vida social competitiva, permeada pela iminência de exclusão.

Predomina a tendência a buscar um culpado: o inimigo externo, o “vírus” que ataca o corpo social sadio, provocando a doença que é preciso erradicar. As políticas de drogas, mesmo quando têm um discurso que se aproxima do politicamente correto – combate limitado ao uso indevido, abusivo, ações que levem em conta o contexto local, noção de que no “problema” interferem o produto, a personalidade do usuário e o contexto de uso, na prática –, como foi o discurso oficial do governo FHC, de alguma forma ainda contribuem para fortalecer a noção de que a população consumidora é a responsável pelo descontrole, confirmando a necessidade indiscutível da erradicação do uso. 

Na prática da política de drogas, no Brasil tem predominado a preocupação essencial com os produtos ilícitos – quando, de fato, no país, as pesquisas indicam o uso preponderante de substâncias (uso na vidA² e uso dependente) de venda legal – álcool, tabaco, solventes, tranqüilizantes, remédios para emagrecer, só depois seguidos pela maconha e cocaína – nos levantamentos realizados com estudantes³. No que se refere a sondagens domiciliares recentes, em São Paulo, o álcool e o tabaco são as drogas de uso na vida mais citadas (seguidas pela maconha, solventes, cocaína, estimulantes, tranqüilizantes, remédios para emagrecer e xaropes), mantida, portanto, a importância do consumo de substâncias de uso legalizado4. Ainda que as pesquisas realizadas sobre consumo de bebidas alcoólicas evidenciem a associação do uso indevido e comportamentos de risco e ainda que seja clara a associação entre o hábito de fumar (tabaco) e doenças respiratórias, as políticas oficiais são perigosamente condescendentes com esses hábitos, na medida, talvez, da legalidade dessas drogas. Os produtos são referidos como se eles todos tivessem a mesma ação no organismo e como se fossem determinantes dos danos, estes considerados sempre como inevitáveis e fatais. Muito timidamente são citados os diferentes tipos de uso – a primeira experiência, os usos circunstanciais e habituais que se mostram serem passíveis de controles. De maneira recorrente, confundem-se usos controlados com a dependência. 

Por outro lado, não é considerado o uso involuntário de drogas, aquele que resulta do contato com substâncias psicoativas, altamente tóxicas, presentes no processo de trabalho agrícola5 e industria6. Desqualifica-se a pessoa como sujeito de sua história, de suas escolhas. Afinal, a droga é apresentada quase como um vírus contra o qual a “vacina” da proibição e da repressão surge como a única solução.

Resgatar a memória sobre o consumo de drogas, ontem e hoje, aqui e em outros países, ajuda a pensar formas democráticas de lidar com o que hoje se tornou um “problema”. Cada sociedade, em cada momento de sua história, encontrou uma forma de lidar com as drogas, seja sua produção ou seu consumo. Em alguns momentos, controles individuais e coletivos foram suficientes para reduzir danos. O hábito de beber vinho puro já foi considerado um ato pouco cidadão – cada dose de vinho era misturada a duas de água –, evitava-se beber vinho durante as refeições ou mesmo durante o dia, bebia-se apenas depois do jantar, o consumo era proibido entre as crianças, que, no entanto, tinham acesso a algumas gotas de ópio para melhor dormir7. O absinto, bebida popular na França de 1830 até o início do século XX, teve sua toxicidade comprovada oficialmente como se a substância tivesse em si mesma a explicação da violência manifestada pelos usuários, contra todas as evidências, quando a sua popularidade ameaçou os interesses econômicos dos tradicionais produtores franceses de vinho8.

Usos restritos a alguns grupos, usos diferenciados de acordo com a idade, usos restritos a determinados momentos, cercados por rituais coletivamente elaborados e aceitos por toda a sociedade, essas são práticas registradas pela história, na intenção de minimizar danos eventuais. Hoje, o ritual coletivo perde-se no projeto de satisfação individualista. Sugere-se que o sonho do consumo “cria identidade”. E, se as decepções de um mundo que escapa aos nossos desejos, as angústias próprias da vida nos afligem, o caminho de busca solitária de compensações está aberto, e, nessa busca, as drogas são uma opção de fácil acesso e resultado imediato. O uso de drogas generalizou-se, tornou-se prática banalizada. Qualquer um – em quase qualquer espaço, jovens, adultos, idosos, ricos e pobres – pode experimentar, habituar-se, correndo o risco de tornar-se dependente. 

O usuário dependente realiza, inconscientemente, o ideal de “homo economicus”, que, no modelo liberal, coloca como valor máximo a satisfação dos desejos individuais, sem nenhuma imposição de valores críticos. “O prazer autônomo tanto quanto possível, independentemente de todas as relações, é reduzido à ativação de uma substância com outra. Do prazer percebido como subproduto de alguma combinação de atividades que estavam em harmonia com o bem-estar do indivíduo e da espécie, hoje, passamos a seu acesso direto pela via elétrica ou química que nos exime de lidar com decepções. Mas o enfoque autônomo do prazer individual subjetivo é literalmente mortal.9”

Melhor educar 

Diante do “problema” das drogas, é necessário agir, fazer alguma coisa. Mas o que fazer? Prevenir significa evitar que alguma coisa aconteça. Buscamos prevenir doenças, obesidade, acidentes, velhice. É melhor prevenir do que remediar, diz o ditado popular. A prevenção das drogas é fundamental já que, segundo estimativas, 30% apenas dos dependentes de drogas conseguem superar o uso indevido, abusivo, e isso significa dizer não retomar o uso nos cinco anos seguintes ao fim do tratamento. 

O consumo de drogas entre jovens do ensino fundamental e do ensino médio, no Brasil, ainda é inferior ao registrado nos EUA e em países da Europa. Mas os índices de consumo crescem se comparados a levantamentos anteriores10. Cresce o envolvimento de jovens com o tráfico de drogas, segundo esclarecem pesquisas recentes11 que falam da exposição de crianças ao tráfico desde muito cedo, começando a andar com traficantes a partir dos 10 anos de idade. Fala-se de um verdadeiro extermínio da população pobre, entre 15 e 17 anos, de índices assustadores de morte, por arma de fogo, no caso do Rio de Janeiro, de crianças envolvidas com violência armada organizada, índices superiores aos registrados em países onde há uma situação de guerra declarada. Prevenir a violência do tráfico, vivida de forma generalizada pela população do Rio de Janeiro, em episódios como os de setembro de 2002 e fevereiro de 2003, coloca a urgência de uma ação por parte do governo e das instituições democráticas.

Ao “problema” do uso indevido se soma o grave quadro de envolvimento de crianças no tráfico, com sua expressão de violência crescente. Mas a prevenção, até agora realizada, seja amedrontando os usuários quanto aos danos, dados como certos e inexoráveis, seja na sua forma repressiva, não tem conseguido resultados positivos.

No que se refere ao uso indevido, predomina a prevenção – forma de evitar a própria experiência da droga –, mas na sua expressão autoritária. Como na história da Bela Adormecida, o rei e a rainha não quiseram receber no palácio as “bruxas” consideradas feias, desagradáveis – referindo-se a conflitos que, de fato, fazem parte da realidade. Estas, irritadas, rogam uma praga: a princesinha, mais tarde, irá ferir-se com um fuso. Em vez de ensinar a princesinha a lidar com o fuso, seus pais preferem bani-los do reino. Com a razão entorpecida pelo medo, a descuidada princesa acaba encontrando um fuso esquecido no sótão e se fere, caindo num torpor, após cometer a transgressão de mexer no que era proibido. Não teria sido melhor prepará-la para lidar com o fuso, de forma clara, sem mitificações e mistificações12? Não teria sido mais pedagógico educar, em vez de tentar evitar o problema erradicando os fusos do reino? Educar para a autonomia – “ajudar o outro, esse feixe de pulsões e imaginação, a tornar-se um ser humano, capaz de governar e ser governado”?13 

A educação para a autonomia é um processo que começa na idade zero e que ninguém sabe quando termina. É um projeto pedagógico que procura desenvolver a capacidade de aprender do sujeito – aprender a aprender, aprender a descobrir, aprender a inventar. Nele, sem dúvida, as matérias ensinadas – a geografia, por exemplo, pode tratar da importância cultural do plantio de coca nos países andinos, do uso medicinal da maconha no interior do Brasil14 – serão degraus que permitirão desenvolver a capacidade de aprender, descobrir, inventar. No projeto de educação para a autonomia, dois princípios são firmemente defendidos: todo processo de educação que não visa desenvolver ao máximo a atividade própria dos alunos é ruim; todo sistema educativo incapaz de fornecer uma resposta razoável à questão eventual dos alunos – “Por que deveremos aprender isto?” – não terá sucesso.15 

No que se refere à prevenção do ingresso no tráfico, é grave a indigência das ações correntes. A política de drogas tem se limitado a reprimir a transgressão, com uma inovação recente: o Programa de Justiça Terapêutica, proposta de tratamento compulsório – mais uma vez identificando uso e dependência – como alternativa à perda da liberdade. As instituições que acolhem crianças em conflito com a lei estão muito longe de proporcionar alternativas reais de inserção social digna e cidadã. Por isso, a falência dessa prevenção, que é esvaziada de sentido real. Tentar erradicar algo que faz parte da nossa história, de maneira meramente repressiva, exagerar riscos, dar informações genéricas, confusas ou mesmo errôneas como se fossem “verdades” desde sempre comprovadas, propor “alternativas” de uma falsa profissionalização, para quem teria de ter sua infância resgatada, são algumas das tentativas da prevenção que tendem a se frustrar. 

Mais do que nunca, a possibilidade de conhecer e dispor de informações sempre atualizadas e amplas é o melhor caminho para educar para a possibilidade de refletir e agir no interesse próprio e da coletividade. Até que ponto o consumidor de drogas ilícitas, na sua transgressão individual, não está correspondendo ao ideal liberal de consumidor acrítico? Até que ponto as crianças em situação de violência armada organizada, com o seu envolvimento crescente no “trabalho” do tráfico, não estão reforçando o fracasso do poder público, que não conseguiu honrar o contrato social a que os cidadãos têm direito? 

O papel da mídia

Na mídia, podemos identificar o predomínio de divulgação sensacionalista de ações espetaculares de repressão ao tráfico de drogas ilícitas. A riqueza de detalhes no que se refere à violência das ações, os níveis de modernização dos tipos de armas que circulam em ambos os lados, a conexão com a corrupção policial e as imagens cinematográficas dos embates e de policiais do Bope que escondem o rosto revezam-se com o tratamento aparentemente piedoso, ao mesmo tempo, considerando quase uma fatalidade o que ocorre com as pessoas inocentes feridas ou mortas nos violentos conflitos armados.

Em segundo plano, com bem menos destaque, vem a divulgação de resultados de pesquisas, estudos sobre consumo, tráfico de drogas, violência. Apresenta-se uma discussão que, mesmo não sendo unânime, sem suas conclusões, caracteriza-se pela seriedade do enfoque. Embora com reduzido ou raro destaque, essas pesquisas, quando veiculadas, contribuem, sem dúvida, para uma reflexão diferenciada em relação ao sensacionalismo habitual, ainda que sempre focalizada nas pessoas jovens, como se estas fossem as únicas consumidoras de drogas, sempre ilícitas, sendo a reflexão completada com conselhos aos familiares, via de regra perplexos diante dos fatos. Paralelamente, tornam-se cada vez mais freqüentes os artigos de opinião, editoriais, entrevistas com personalidades, imediatamente após um momento em que o “problema” droga irrompe com maior violência e/ou gravidade.

Episodicamente, temos as campanhas da chamada “prevenção”. É curioso observar aqui, de novo, a tendência de provocar impacto no público-leitor, por meio de imagens e linguagem sensacionalistas, sugerindo um estado de guerra individual e coletiva. Em algumas campanhas veiculadas pela mídia, a imagem do dependente, na deterioração física apresentada com um fato indiscutível, pode ser confundida com o aspecto de uma pessoa com dengue hemorrágico. Em outdoors, frases aparentemente ingênuas reforçam a irracionalidade, a discriminação. Dizer “Drogas, tô fora” motivou, pela sua inconsistência, o complemento jocoso, pichado num muro de Porto Alegre: “Claro, saí para comprar”. Afirmar “Drogas, nem morto” também não tem sentido algum: uma vez morto, o sujeito não tem escolhas. Dizer que “Quem se droga é triiiiiste” é generalizar a experiência negativa, ainda que os riscos sejam reais. É fazer de conta que uma festa não perde a graça quando a bebida acaba, é nunca ter observado o prazer que dá tragar um cigarro, ou ainda ignorar a tranqüilidade experimentada logo após a ingestão de um medicamento contra a dor ou para dormir. Dizer que “Droga é brega” expressa, sem que se perceba, um preconceito em relação às pessoas chamadas de “bregas”, que o são apenas aos olhos de quem assim as consideram – afinal, cada pessoa tem seu estilo e dele se orgulha. E o que significa dizer que “Droga é uma merda”? O que informa essa frase para quem já experimentou e sentiu prazer, calma, alívio? Campanhas dessa natureza não educam, são desconsideradas pelos usuários ou, o que é tanto mais grave, confundem. 

Algumas dessas frases são, de alguma maneira, perversas porque informam pela metade, não atingem quem não inclui sua experiência na forma estereotipada co-mo a reação é apresentada, mas que, nem por isso, estão imunes aos riscos e precisam estar alertas. São frases que não preparam, de fato, o sujeito para refletir e agir de forma consciente, diante dos riscos que sem dúvida existem. São palavras de ordem que continuam sendo difundidas, carregadas de uma intenção de prescrever vacinas que ilusoriamente nos protegeriam. Mas nessas campanhas, recentemente, surgem também novos enfoques em que a relação pais/mães e filhos(as) é valorizada. Novos motes apontam a necessidade da autonomia: “Quem escolhe meu caminho sou eu, não a droga”, frase mais identificada com a noção de que somos sujeitos de nossa história. 

A mídia tem reiteradamente divulgado entrevistas com artistas e intelectuais sobre suas experiências de uso de drogas. Se, no texto interno, o debate se amplia, assim como a busca de encaminhamentos democráticos da questão, o sensacionalismo das chamadas de capa mais uma vez evidencia a manipulação das experiências, o que tem até redundado em prejuízos posteriores às declarações dadas.16 

Pedra no caminho

A criminalização do usuário é um absurdo jurídico: o Estado exacerba no seu direito de legislar quando legisla no espaço privado, quando não há prejuízo de terceiros.17 

Por mais contraditório que possa parecer, descriminalizar o uso de drogas, quaisquer que elas sejam, com definição no texto da lei sobre quantidade que evidencie uso pessoal, abre caminho para uma educação democrática que reduza os danos decorrentes do consumo. Essa possibilidade já é real em alguns países da Europa, como na Holanda – e, mais recentemente, Espanha e Portugal. Na Bélgica, descriminalizou-se o uso de maconha. Sob outra perspectiva, no Canadá, o uso terapêutico da maconha é autorizado no caso de doenças terminais.

Argumenta-se que a criminalização é, de alguma forma, um freio ao uso. Entretanto, nos países que optaram pela descriminalização, os índices de consumo não trário, a descriminalização permitiu a opção por novas diretrizes: prioridade dada à educação sobre os danos decorrentes de usos indevidos, não cidadãos – aqui considerados como aqueles que estão em desacordo com os hábitos culturais reconhecidos e aceitos coletivamente –, prioridade para as pesquisas e tratamento do uso dependente e repressão direcionada, limitada ao controle do tráfico.18 

Argumenta-se que, em sociedades onde predomina uma forte desigualdade social, os privilégios de alguns grupos sociais já garantem a descriminalização, de fato, do uso para esses mesmos grupos. Sem alteração desse contexto, a descriminalização legal não garantiria, automaticamente, tratamento democrático para grupos já marginalizados. Para estes, o “problema” droga continuaria existindo, com a manutenção da desigualdade estrutural. 

Cada sociedade, em cada momento de sua história, teve e tem drogas permitidas e outras proibidas. Dá para imaginar que o fumo de tabaco já foi motivo de prisão na Europa? E que o álcool é ainda hoje proibido em países muçulmanos? E que a cocaína, por volta de 1920, era vendida nos EUA pelo reembolso postal como tônico fortificante? E que a maconha já foi vendida em feiras livres no Brasil? 

No nosso país, a lei que regulamenta o consumo de drogas data de 1976, Lei 6.368, elaborada durante a ditadura militar, que vigorou no Brasil a partir de 1964, o que significa dizer que carrega as características da política de exceção e controle social daquela época. No texto dessa lei, embora se reconheça a dependência de drogas como uma doença, o tratamento previsto é a perda da liberdade. Incentiva-se a delação como método, diretores de escola estão sujeitos à perda de eventuais subvenções, caso não denunciem e afastem alunos usuários de drogas ilícitas. 

Mais recentemente, o usuário que é flagrado com uma pequena quantidade de uma droga ilícita se beneficia da Lei 9.099/95, que, tratando dos juizados especiais criminais, permite penas alternativas à prisão, em casos comprovados de pequeno potencial ofensivo, seguindo o exemplo da experiência norte-americana de cortes especiais para tratar o “problema” da droga em si, descontextualizado.

A lei interdita o uso, criminaliza o usuário. A prevenção, na sua busca de erradicar o uso, reforça a responsabilidade restrita ao sujeito da experiência. Ao consumo indevido se somam a violência e a criminalidade, decorrentes da ilegalidade da prática e não específicas ao efeito da droga no sujeito. A orientação sobre os eventuais danos decorrentes do uso não acontece, e a demanda por tratamento se esquiva. O empenho na “prevenção” não resultou em diminuição do consumo, que aumenta e se diversifica; afinal, são tantas e novas as substâncias psicoativas que surgem no mercado... 

Em muitos países, o consumo de drogas vendidas legalmente é maior que o consumo das drogas ilícitas – a França é um país com forte consumo de tranqüilizantes; na Bélgica, predomina o consumo de produtos de uso doméstico, em cuja composição estão presentes substâncias psicoativas. O “problema” da droga está, assim, organizado conforme a especificidade dos contextos.

A frustração dos educadores é real, e o objetivo proposto de erradicar o consumo jamais é alcançado, o que parece sugerir que o esforço em evitar o consumo não seja necessário já que a grande questão parece ser a relação que estabelecemos com as drogas. 

A reflexão que permita um agir consciente, organizado em torno a controles individuais e coletivos de uso, poderia limitar os eventuais danos? Experiências passadas indicam que sim; afinal, o uso indevido de forma generalizada é uma característica da nossa época. A experiência recente do controle do uso do tabaco também indica que sim. Seria impensável, há dez anos, imaginar a realidade atual de controle desse consumo em espaços públicos. 

Percebe-se a construção de uma cultura de resistência. Iniciativas locais, comandadas por mulheres/mães, organizam redes alternativas de educação para jovens das comunidades, tentando romper a “atração” pelo tráfico. Outros projetos reúnem homens que questionam o modelo masculino do beberrão agressivo e investem na construção de uma consciência masculina solidária. Associações reúnem usuários de drogas na luta pela defesa dos seus direitos, em âmbito continental, nacional, com algumas representações estaduais. Profissionais de saúde e da área social se associam preocupados em garantir uma prática comprometida com a ética, com os direitos de cidadania. 

Política democrática

Em 2000, a Rede de Direitos Humanos Drogas e Aids, com sede de referência na Uerj, divulgou uma Declaração de Direitos dos Usuários de Drogas, durante o Fórum Social Mundial, em Porto Alegre (RS). Essa declaração foi assinada por instituições e organizações não-governamentais e parlamentares. Com base nesse texto, foi elaborado, na Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro, o Projeto de Lei 2.251/2001, que dispõe sobre a prevenção, o tratamento e os direitos fundamentais dos usuários de drogas19 e que passou por discussões entre os deputados estaduais, no período de 2001–2002. O projeto apresentado foi aprovado na íntegra pela Comissão de Justiça, numa explicitação de que não seriam necessárias novas leis para sua aprovação, todos os itens propostos já sendo garantidos pela Constituição Federal de 1988. O projeto também foi aprovado pela Comissão de Saúde e pela Comissão de Direitos Humanos. 

Durante sua tramitação, em 2001–2002, foram realizadas audiências públicas do Fórum Permanente por uma Política Democrática de Drogas. Nesse espaço democrático, discutiram-se alguns temas: a lei proibicionista que regulamenta consumo de drogas e que causa mais danos que proteção; a necessidade de se ampliarem os esclarecimentos veiculados pela mídia; a importância vital da educação como forma de reduzir eventuais danos; a violência do Programa de Justiça Terapêutica – proposta de tratamento compulsório em situação de constrangimento –, viabilizado pelos juizados da infância e adolescência; as possibilidades e limites da repressão, sua organização e marcos éticos.

Em 2002, o Projeto de Lei 2.251/2001 foi aprovado no plenário da Alerj, suprimindo-se itens significativos, como o que declarava o usuário de drogas como um cidadão de direitos e deveres. Foi retirada também a proposta de redução de danos, que, em vários estados do Brasil (Rio Grande do Sul, Bahia, São Paulo e Minas Gerais), já é lei regulamentada e que se justificava, tendo em vista o sucesso de muitos programas já reconhecidos e mesmo financiados pelo Ministério da Saúde que têm obtido redução dos danos decorrentes de um uso indevido de drogas, reduzindo também os índices de infecção pelo HIV/Aids. 

* Mestra em Educação, coordenadora do curso de extensão universitária “Drogas e Aids: questões de direitos humanos”, no Programa Cidadania e Direitos Humanos, Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) 

Notas:
1 GUIZADO, A. C. Cinco tesis sobre narcotráfico y violencia en Colombia. Revista Foro, Bogotá, n. 15, p. 65-73, 1991. 

2 O termo uso na vida diz respeito a quem já experimentou pelo menos uma vez. 

3 GALDUROZ, J.C.F. et al. IV levantamento sobre uso de drogas entre estudantes de 1o e 2o graus em dez capitais brasileiras, 1997. São Paulo: UFSP/EPM/Dep. de Psicobiologia, Cebrid, 1997. 

4 GALDUROZ, J.C.F. et al. I levantamento domiciliar nacional sobre o uso de drogas psicotrópicas, Parte A: envolvendo 24 maiores cidades do estado de São Paulo. São Paulo: Faperp, 1999. 

5 Casos constatados de suicídio, precedidos de episódios de depressão nervosa, entre agricultores em Venâncio Ayres (RS), associados ao consumo involuntário de substâncias psicoativas presentes na composição de agrotóxicos.

6 PACHECO-FERREIRA, H. Os trabalhadores e o uso do mercúrio. In: ACSELRAD, G. (Org.). Avessos do prazer: drogas, Aids e direitos humanos. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz, 2000. 

7 VILLARD, P. Ivresses dans l´antiquité classique. Revue Histoire, Economie et Société, Paris, p.453-459, 1989. 

8 DELAHAYE, M.C. Grandeur et décadence de la fée verte. Revue Histoire, Economie et Société, Paris, p. 475-489, 1989.

9 DALY, H. E.; COBB Jr., J.B. Para el bien común, reorientando la economia hacia la comunidad, el ambiente y un futro sotenible. México: Ed. Fondo de Cultura Económica, 1993, p. 93. 

10 Vide nota 4. O uso na vida do álcool: 53,2%; uso dependente de álcool: 6% (valores próximos aos observados em estudos de outros países); uso na vida do tabaco: 39,0%; uso dependente: 9,3%; índice de 11,6% de uso na vida de outras drogas, porcentagem próxima do Chile, superior à Colômbia e muito inferior aos EUA (34,8%). A maconha foi, dentre as drogas ilícitas, a que teve maior uso na vida – 5,6%, índice muito inferior ao observado no Chile, EUA, Dinamarca, Espanha e Reino Unido.

11 DOWDNEY, L. Crianças do tráfico: um estudo de caso de crianças em violência armada organizada no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Sette Letras, 2003. 

12 ARANTEGUY, L. Doces venenos. São Paulo: Olho d´Água, 1990.

13 CASTORIADIS, C. Psychanalyse et politique. Revue Lettres Internationales, Paris, n. 21, p. 54-57, 1989. 

14 HENNAN, A.; PESSOA Jr., O. Diamba, sarabamba: coletânea de estudos sobre a maconha. São Paulo: Ground, 1986. 

15 CASTORIADIS, C. op. cit., p. 54-57. 

16 A apresentadora de programas para jovens – Soninha –, após entrevista publicada na revista Época, em 2002, em que reconhecia já ter fumado maconha, foi demitida pela TV Cultura/SP, onde trabalhava. 

17 KARAM, M. L. Legislação brasileira sobre drogas: história recente – a criminalização da diferença. In: ACSELRAD, G. (Org.). Avessos do prazer: drogas, Aids e direitos humanos. Rio de Janeiro: Imago, 2000, p. 151-160. 

18 CATTACIN, S. et al. Modeles de politique em matière de drogue: une comparaison de six réalités européennes. Paris: L´Harmattan, 1996. 

19 De autoria do deputado estadual Carlos Minc (PT-RJ).

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Pivô de demissão, pena alternativa para pequeno traficante foi liberada pelo STF.

William Maia 

Apesar de ser apontada como a razão da primeira baixa no governo Dilma, com a saída de Pedro Abramovay da Senad (Secertaria Nacional de Políticas sobre Drogas), a possibilidade de aplicação de penas alternativas para pequenos traficantes, desde que sejam réus primários, já foi autorizada pelo STF (Supremo Tribunal Federal).

Em setembro do ano passado, os ministros declararam, por seis votos a quatro, a inconstitucionalidade da parte da Lei de Drogas (Lei 11.343/06) que proibia penas substitutivas, obrigando o juiz a condenar o acusado à prisão mesmo quando ele não possuia antecedentes, nem ligação com o crime organizado.

Abramovay defendeu que o governo apoiasse um projeto de lei que padronize a atuação do Judiciário, incentivando o uso de penas alternativas. Hoje, com a decisão do Supremo, fica a critério de cada juiz decidir quando é o caso de aplicar ou não a pena privativa de liberdade.

“Do ponto de vista jurídico, a questão está resolvida. O que falta agora é uma alteração na política criminal do Poder Executivo e da legislação pelo Congresso Nacional”, afirma a professora Luciana Boiteaux, da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro).

Ela coordenou uma pesquisa que apontou que mais de 60% dos presos por tráfico no Rio eram pequenos traficantes, e que essa é uma das principais causas do encarceramento no país.

“Essa é uma realidade muito comum nas penitenciárias femininas, por exemplo. Muitas mulheres estão presas por transportar drogas na vagina para ajudar o marido traficante ou viciado. Isso não resolve”, afirma Sérgio Salomão Schecaira, professor de Direito Penal da USP e ex-presidente do CNPCP (Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária).

Depois de uma entrevista em que Abramovay defendeu o fim da prisão do pequeno traficante, o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, afirmou que aquela era a opinião pessoal do secretário e que o governo defendia o oposto, citando um projeto de lei enviado no Governo Lula que aumenta as penas para pessoas envolvidas com o crime organizado.

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 Carta aberta à sociedade brasileira

Ponderações sobre a política de drogas no Brasil.

Há muito ainda a fazer até que a questão das drogas seja encarada como problema de saúde pública e não de justiça criminal, mas podemos estar iniciando uma caminhada que poderá desaguar nessa transformação.

Julita Lemgruber

O tema das drogas é articulador de diferentes olhares e formas de pensar. Este documento expressa a visão de um grupo formado por estudantes, professores e pesquisadores de diferentes campos do conhecimento; trabalhadores de Saúde, Assistência Social, Educação; operadores do Direito; gestores públicos e ativistas unidos pelo interesse no tema das políticas públicas sobre drogas, a partir de compromissos claros com os Direitos Humanos e a promoção da cidadania ativa para pessoas que usam drogas. Além disto, defendemos os princípios e diretrizes do Sistema Único de Saúde, da Reforma Psiquiátrica e do Sistema Único da Assistência Social. É a partir destes múltiplos lugares e, principalmente dos compromissos que nos unem, que gostaríamos de nos manifestar sobre as recentes mudanças na Secretaria Nacional de Políticas Sobre Drogas (SENAD).

Historicamente, as políticas públicas sobre drogas têm se constituído em importantes dispositivos de criminalização e medicalização (criminoso-prisão na segurança, dependente-internação na saúde), cujos efeitos têm recaído sobre distintos grupos sociais vulneráveis e estigmatizados, frequentemente associados a qualquer uma das etapas dos processos de produção, circulação, comércio e consumo de substâncias qualificadas como ilícitas. As diretrizes que embasaram as políticas de drogas no país, desde a Lei Nº 6368/76, até a Lei Nº 11.343/06, foram demonstrativas de um tensionamento entre duas arenas distintas: de um lado, a preocupação diante de um problema visto como pertinente à “Saúde Pública”; de outro, a compreensão de que este problema social, tendo como única origem comportamentos desviantes e criminosos, deveria ser de responsabilidade única dos agentes executores das políticas de Segurança Pública. Deste modo, embora a proibição às drogas tenha até hoje como justificativa a proteção à Saúde Pública como bem comum, na prática as ações educativas e preventivas com relação às pessoas que usam drogas sofreram pressões alheias ao campo político-reflexivo da Saúde.

Nascida sob o impacto da adesão brasileira ao documento da UNGASS 98, na égide da “war on drugs”, a SENAD constituiu o tema das drogas como assunto de Segurança Nacional, e organizou-se a partir de uma estrutura militar. Nos últimos anos, algumas mudanças começaram a ocorrer. A começar pelo nome: a secretaria deixou de ser “Antidrogas”, tornando-se um secretaria “de Políticas sobre Drogas”. Além disto, a SENAD teve papel importante na condução do processo de reformulação do Plano Nacional sobre Drogas, no incentivo ao fortalecimento e qualificação dos Conselhos Estaduais e Municipais sobre Drogas; no âmbito da produção de conhecimento, a SENAD apoiou e organizou diretamente a realização de seminários com experiências internacionais, e teve papel fundamental para a criação da Rede de Pesquisa sobre Drogas. Não obstante, subsistia esta estrutura militar, a submissão estrutural ao Gabinete de Segurança Institucional, antiga Casa Militar da Presidência da República.

Neste sentido, a mudança da SENAD para junto do Ministério da Justiça é coerente com a história recente desta instituição. O contrário disto – sua manutenção em uma estrutura militar – seria uma explícita profissão de fé na “guerra às drogas”; já o seu deslocamento para a Casa Civil como uma das primeiras medidas do governo Dilma, constitui-se um indicativo de novos olhares para os múltiplos temas relacionados às drogas.

Diante do pronunciamento de Alexandre Padilha, podemos projetar parte desta nova mirada. Em seu discurso de posse, o novo ministro da saúde, infectologista, falou de seu aprendizado político em meio à construção da resposta brasileira à epidemia de HIV/Aids, junto às pessoas mais diretamente envolvidas o tema da Aids em suas vidas, em seus cotidianos. Pois afirmamos: assim como o protagonismo das pessoas vivendo com HIV/Aids foi essencial para tornar a política brasileira de controle da Aids um exemplo exitoso, também as políticas de drogas devem ser construídas com a participação de pessoas que usam drogas, ampliando olhares e permitindo avançar. Em uma perspectiva coerente com tais ideias, o novo ministro da saúde manifestou-se especificamente sobre o problema do crack com as seguintes palavras: Os serviços de atenção não podem fazer com que as pessoas percam sua autonomia, percam o contato com a família, percam o contato com o espaço social onde se constrói sua identidade. Porque nós não queremos pessoas permanentemente internadas, nós queremos evitar esse mal e fazer com que as pessoas sejam ativas e protagonistas na vida e que continuem a viver.

Acreditamos que só é possível enfrentar a questão das drogas, naquilo que afeta a sociedade como um problema social, com o incentivo e a garantia de que as pessoas que usam drogas sejam protagonistas das políticas de drogas. Para além de um posicionamento ético, trata-se de projetarmos modos de vida em conjunto com sujeitos que hoje, diante da complexidade do tema, são ora responsabilizados e criminalizados, ora defrontados com políticas públicas pautadas na tutela, na internação, nos dispositivos de manejo, nas contenções químicas e físicas.

Os esforços no enfrentamento aos usos problemáticos de crack, ao ressaltarem sua parcela “combativa” diante de contextos considerados perigosos e, principalmente, ao ressaltarem os efeitos das drogas sobre o organismo, correm o risco de não olhar para as potencialidades da promoção de sujeitos de cuidado, autores de seus próprios projetos de vida. Devemos observar mais de perto experiências de descriminalização como a de Portugal, que completou 9 anos e é tido como exemplo mundial em redução do uso de drogas entre jovens, nas taxas de criminalidade e nas mortes por overdose, e pelo aumento no acesso a tratamento público de qualidade, no investimento em pesquisa e no acesso à informação. Em tais contextos, torna-se possível aprender o que as pessoas que usam drogas têm a nos ensinar. Torna-se possível a construção de uma política com a participação efetiva das pessoas que usam drogas, incluindo aí o direito de livre organização e a participação destas pessoas nos conselhos sobre drogas nos âmbitos municipal, estadual e federal.

Avaliamos positivamente a recente transferência da SENAD para o Ministério da Justiça, e a indicação de Pedro Abramovay para a coordenação geral do órgão, ele que no governo anterior teve participação importante, sendo inclusive o mais jovem Ministro da Justiça brasileiro, em substituição a Tarso Genro. Ao deslocar para a SENAD um quadro político com experiência tão sólida, com forte compromisso com os Direitos Humanos, o governo brasileiro oferece uma demonstração inequívoca de que é possível sonhar com uma política de drogas mais humana, democrática e cidadã.

Acreditamos que um dos principais desafios desta nova gestão e nova estrutura institucional da SENAD será, partindo do âmbito do Ministério da Justiça, consolidar as Políticas Públicas sobre Drogas a partir de perspectivas essencialmente intersetoriais. Com relação a isso, também depositamos esperanças de maior abertura para o diálogo entre governo e sociedade civil organizada, e também entre as estruturas de governo responsáveis por articular políticas tão complexas quanto os problemas que buscamos enfrentar.