Geledes 25.12.2013
Rolezinhos: O que estes jovens estão
“roubando” da classe média brasileira.
Os novos “vândalos” do Brasil.
Eliane Brum
O rolezinho, a novidade deste Natal, mostra que, quando a juventude pobre
e negra das periferias de São Paulo ocupa os shoppings anunciando que quer
fazer parte da festa do consumo, a resposta é a de sempre: criminalização. Mas
o que estes jovens estão, de fato, “roubando” da classe média brasileira?
O Natal de 2013
ficará marcado como aquele em que o Brasil tratou garotos pobres, a maioria
deles negros, como bandidos, por terem ousado se divertir nos shoppings onde a
classe média faz as compras de fim de ano. Pelas redes sociais, centenas, às
vezes milhares de jovens, combinavam o que chamam de “rolezinho”, em shopping
próximos de suas comunidades, para “zoar, dar uns beijos, rolar umas paqueras”
ou “tumultuar, pegar geral, se divertir, sem roubos”. No sábado, 14, dezenas
entraram no Shopping Internacional de Guarulhos, cantando refrões de funk da
ostentação. Não roubaram, não destruíram, não portavam drogas, mas, mesmo
assim, 23 deles foram levados até a delegacia, sem que nada justificasse a
detenção. Neste domingo, 22, no Shopping Interlagos, garotos foram revistados
na chegada por um forte esquema policial: segundo a imprensa, uma base móvel e
quatro camburões para a revista, outras quatro unidades da Polícia Militar, uma
do GOE (Grupo de Operações Especiais) e cinco carros de segurança particular
para montar guarda. Vários jovens foram “convidados” a se retirar do prédio,
por exibirem uma aparência de funkeiros, como dois irmãos que empurravam o pai,
amputado, numa cadeira de rodas. De novo, nenhum furto foi registrado. No
sábado, 21, a polícia, chamada pela administração do Shopping Campo Limpo, não
constatou nenhum “tumulto”, mas viaturas da Força Tática e motos da Rocam
(Ronda Ostensiva com Apoio de Motocicletas) permaneceram no estacionamento para
inibir o rolezinho e policiais entraram no shopping com armas de balas de
borracha e bombas de gás.
Se não há crime, por que a juventude pobre e negra das periferias da
Grande São Paulo está sendo criminalizada?
Primeiro, por causa
do passo para dentro. Os shoppings foram construídos para mantê-los do lado de
fora e, de repente, eles ousaram superar a margem e entrar. E reivindicando
algo transgressor para jovens negros e pobres, no imaginário nacional:
divertir-se fora dos limites do gueto. E desejar objetos de consumo. Não
geladeiras e TVs de tela plana, símbolos da chamada classe C ou “nova classe
média”, parcela da população que ascendeu com a ampliação de renda no governo
Lula, mas marcas de luxo, as grandes grifes internacionais, aqueles que se
pretendem exclusivas para uma elite, em geral branca.
Antes, em 7 de
dezembro, cerca de 6 mil jovens haviam ocupado o estacionamento do Shopping
Metrô Itaquera, e também foram reprimidos. Vários rolezinhos foram marcados
pelas redes sociais em diferentes shoppings da região metropolitana de São
Paulo até o final de janeiro, mas, com medo da repressão, muitos têm sido
cancelados. Seus organizadores, jovens que trabalham em serviços como o de
office-boy e ajudante geral, temem perder o emprego ao serem detidos pela
polícia por estarem onde supostamente não deveriam estar – numa lei não
escrita, mas sempre cumprida no Brasil. Seguranças dos shoppings foram
orientados a monitorar qualquer jovem “suspeito” que esteja diante de uma
vitrine, mesmo que sozinho, desejando óculos da Oakley ou tênis Mizuno, dois
dos ícones dos funkeiros da ostentação. Às vésperas do Natal, o Brasil mostra a
face deformada do seu racismo. E precisa encará-la, porque racismo, sim, é crime.
“Eita porra, que
cheiro de maconha” foi o refrão cantado pelos jovens ao entrarem no Shopping
Internacional de Guarulhos. O funk é de MC Daleste, que afirma no nome
artístico a região onde nasceu e se criou, a zona leste, a mais pobre de São
Paulo, aquela que todo o verão naufraga com as chuvas, por obras que os
sucessivos governos sempre adiam, esmagando sonhos, soterrando casas, matando
adultos e crianças. Daleste morreu assassinado em julho com um tiro no peito
durante um show em Campinas – e assassinato é a primeira causa de morte dos
jovens negros e pobres no Brasil, como os que ocuparam o Shopping Internacional
de Guarulhos.
A polícia reprimiu,
os lojistas fecharam as lojas, a clientela correu. Uma das frequentadores do
shopping disse a frase-símbolo à repórter Laura Capriglione, na Folha de S.
Paulo: “Tem de proibir este tipo de maloqueiro de entrar num lugar como este”.
Nos dias que se seguiram, em diferentes sites de imprensa, leitores assim
definiram os “rolezeiros” (veja entrevista abaixo): “maloqueiros”, “bandidos”,
“prostitutas” e “negros”. Negros emerge aqui como palavra de ofensa.
As novelas já vendiam uma vida de luxo há muito tempo, só que nelas os
ricos eram os que pertenciam ao mundo de riqueza. Nos videoclipes de funk
ostentação, são os pobres que aparecem neste mundo.
O funk da ostentação,
surgido na Baixada Santista e Região Metropolitana de São Paulo nos últimos
anos, evoca o consumo, o luxo, o dinheiro e o prazer que tudo isso dá. Em seus
clipes, os MCs aparecem com correntes e anéis de ouro, vestidos com roupas de
grife, em carros caros, cercado por mulheres com muita bunda e pouca roupa. (Para conhecer o funk
da ostentação, assista ao documentárioaqui). Diferentemente do
núcleo duro do hip hop paulista dos ano 80 e 90, que negava o sistema, e também
do movimento de literatura periférica e marginal que, no início dos anos 2000,
defendia que, se é para consumir, que se compre as marcas produzidas pela
periferia, para a periferia, o funk da ostentação coloca os jovens, ainda que
para a maioria só pelo imaginário, em cenários até então reservados para a
juventude branca das classes média e alta. Esta, talvez, seja a sua
transgressão. Em seus clipes, os MCs têm vida de rico, com todos os signos dos
ricos. Graças ao sucesso de seu funk nas comunidades, muitos MCs enriqueceram
de fato e tiveram acesso ao mundo que celebravam.
Esta exaltação do
luxo e do consumo, interpretada como adesão ao sistema, tornou o funk da ostentação
desconfortável para uma parcela dos intelectuais brasileiros e mesmo para parte
das lideranças culturais das periferias de São Paulo. Agora, os rolezinhos – e
a repressão que se seguiu a eles – deram a esta vertente do funk uma marca de
insurgência, celebrada nos últimos dias por vozes da esquerda. Ao ocupar os
shoppings, a juventude pobre e negra das periferias não estava apenas se
apropriando dos valores simbólicos, como já fazia pelas letras do funk da
ostentação, mas também dos espaços físicos, o que marca uma diferença. E, para
alguns setores da sociedade, adiciona um conteúdo perigoso àquele que já foi
chamado de “funk do bem”.
A resposta violenta
da administração dos shoppings, das autoridades públicas, da clientela e de
parte da mídia demonstra que esses atores decodificaram a entrada da juventude
das periferias nos shoppings como uma violência. Mas a violência era justamente
o fato de não estarem lá para roubar, o único lugar em que se acostumaram a
enxergar jovens negros e pobres. Então, como encaixá-los, em que lugar
colocá-los? Preferiram concluir que havia a intenção de furtar e destruir, o
que era mais fácil de aceitar do que admitir que apenas queriam se divertir nos
mesmos lugares da classe média, desejando os mesmo objetos de consumo que ela.
Levaram uma parte dos rolezeiros para a delegacia. Ainda que tivessem de
soltá-los logo depois, porque nada de fato havia para mantê-los ali, o ato já
estigmatizou-os e assinalará suas vidas, como historicamente se fez com os
negros e pobres no Brasil.
Jefferson Luís, 20
anos, organizador do rolezinho do Shopping Internacional de Guarulhos, foi
detido, é alvo de inquérito policial, sua mãe chorou e ele acabou cancelando
outro rolezinho já marcado por medo de ser ainda mais massacrado. Ajudante
geral de uma empresa, economizou um mês de salário para comprar a corrente
dourada que ostenta no pescoço. Jefferson disse ao jornal O Globo: “Não seria
um protesto, seria uma resposta à opressão. Não dá para ficar em casa
trancado”.
Por esta subversão,
ele não será perdoado. Os jovens negros e pobres das periferias de São Paulo,
em vez de se contentarem em trabalhar na construção civil e em serviços
subalternos das empresas de segunda a sexta, e ficar trancados em casas sem
saneamento no fim de semana, querem também se divertir. Zoar, como dizem. A
classe média até aceita que queiram pão, que queiram geladeira, sente-se mais
incomodada quando lotam os aeroportos, mas se divertir – e nos shoppings? Mais
uma frase de Jefferson Luiz: “Se eu tivesse um quarto só pra mim hoje já seria
uma ostentação”. Ele divide um cômodo na periferia de Guarulhos com oito
pessoas.
Neste Natal, os
funkeiros da ostentação parecem ter virado os novos “vândalos”, como são
chamados todos os manifestantes que, nos protestos, não se comportam dentro da
etiqueta estabelecida pelas autoridades instituídas e por parte da mídia. Nas
primeiras notícias da imprensa, o rolezinho do Shopping Internacional de
Guarulhos foi tachado de “arrastão”. Mas não havia arrastão nenhum. O
antropólogo Alexandre Barbosa Pereira faz uma provocação precisa: “Se fosse um
grupo numeroso de jovens brancos de classe média, como aconteceu várias vezes, seria
interpretado como um flash mob?”.
A ideia da imaginação como uma força criativa apresenta-se fortemente no
funk ostentação.
Por que os
administradores dos shoppings, polícia, parte da mídia e clientela só conseguem
enquadrar um grupo de jovens negros e pobres dentro de um shopping como
“arrastão”? Há várias respostas possíveis. Pereira propõe uma bastante aguda:
“Será que a classe média entende que os jovens estão ‘roubando’ o direito
exclusivo de eles consumirem?”. Seria este o “roubo” imperdoável, que colocou
as forças de repressão na porta dos shoppings, para impedir a entrada de
garotos desarmados que queriam zoar, dar uns beijos e cobiçar seus objetos de
desejo nas vitrines?
Para nos ajudar a
pensar sobre os significados do rolezinho e do funk da ostentação, entrevisto
Alexandre Barbosa Pereira nesta coluna. Professor da Universidade Federal de
São Paulo (Unifesp), ele dedica-se a pesquisar as manifestações culturais das
periferias paulistas. Em seu mestrado, percorreu o mundo da pichação. No
doutorado, mergulhou nas escolas públicas para compreender o que é “zoar”.
Desde 2012, pesquisa o funk da ostentação. Mesmo que os rolezinhos, pela força
da repressão, se encerrem neste Natal, há muito que precisamos compreender
sobre o que dizem seus protagonistas – e sobre o que a reação violenta contra
eles diz da sociedade brasileira
- O rolezinho aparece ligado ao funk da ostentação. Em que medida
há, de fato, essa ligação?
Alexandre Barbosa
Pereira – O funk ostentação é uma releitura paulista do funk carioca,
feita a partir da Baixada Santista e da Região Metropolitana de São Paulo, na
qual as letras passam a ter a seguinte temática: dinheiro, grifes, carros,
bebidas e mulheres. Não se fala mais diretamente de crime, drogas ou sexo. Os
funkeiros dessa vertente começaram a produzir videoclipes inspirados na
estética dos videocliples do gangsta rap estadunidense. Mas o mais curioso desse
movimento é a virada que os jovens fazem ao mudar a pauta que, até então, era
principalmente a criminalidade para o consumo. As músicas deixam de falar de
crime para falar de produtos que eles querem consumir. Assim, ao invés de
cantarem: “Rouba moto, rouba carro, bandido não anda à pé” (Bonde Sinistro), os
funkeiros da vertente ostentação cantam: “Vida é ter um Hyundai e um hornet,
dez mil para gastar, rolex, juliet. Melhores kits, vários investimentos. Ah
como é bom ser o top do momento” (MC Danado). Deste modo, os MCs começaram a
ter mais espaços para cantar em casas noturnas e passaram a produzir
videoclipes cada vez mais elaborados, com mais de 20 milhões de acessos no
YouTube, o que levou a um sucesso às margens da mídia tradicional. Alguns MCs
chegaram a alcançar grande repercussão entre um segmento do público jovem, sem
nunca ter aparecido na televisão. Vi meninas chorando por MCs em bailes, mesmo
antes de o funk ostentação alcançar o destaque que conseguiu na grande mídia.
Surgiram empresas especializadas na produção de clipes no estilo ostentação,
como a Kondzilla e a Funk TV, claramente inspirados no gangsta rap, em que os
jovens aparecem em carrões e motos, exibindo-se com roupas, dinheiro e
mulheres. Uma reflexão interessante a se fazer é como a mídia tradicional, que
antes execrava o chamado funk proibidão, que falava de crime, drogas e sexo
abertamente, agora começa a elogiar o funk ostentação, denominando-o até como
“funk do bem” e ressaltando a trajetória econômica e social ascendente dos MCs.
Pergunta. Fazendo
um parêntese aqui, antes de chegar ao rolezinho, qual é o caminho para um jovem
pobre ter acesso ao consumo de luxo, segundo o olhar do funk da ostentação?
Esta virada que você mencionou...
Resposta. Primeiro
que esse bem de luxo não é tão de luxo assim, afinal uma garrafa de uísque a 60
ou 80 Reais não é nenhum absurdo. É sempre possível comprar uma réplica
daqueles óculos escuros que custam mais de mil reais. Nas casas noturnas de
funk que observei, este era o preço. Pensemos num grupo de pelo menos quatro
amigos dividindo o valor da compra. Não sai tão caro brincar de ostentar.
Agora, tem os carros. Estes sim estão fora do alcance da maioria desses jovens.
Mas aí há uma explicação interessante, que Montanha, um produtor e diretor de videoclipes
da Funk TV, em Cidade Tiradentes, sabiamente me deu. Ele me disse que as
novelas já vendiam uma vida de luxo há muito tempo, só que nelas os ricos eram
os que pertenciam ao mundo de luxo. Nos videoclipes de funk ostentação, são os
pobres que aparecem como um mundo de “riqueza” ou de “luxo”, com carros,
mansões, roupas de marcas mais caras. Os jovens agora poderiam, segundo afirmou
Montanha, ver-se como parte de um mundo de prestígio, daí a grande
identificação. O crime pode ser um caminho para acessar esse mundo de luxo ou o
que esses jovens entendem por um mundo de luxo, mas não é único. Esta é a lição
que muitos MCs de funk têm tentando passar em suas falas na grande mídia. Eles
de certa forma mostram um outro caminho, que, aliás, sempre esteve presente
para esses jovens da periferia: tornar-se famoso pela música ou pelo futebol.
Aliás, esses são caminhos que aparecem como os mais possíveis para os jovens
negros e pobres das periferias do país imaginarem um futuro de sucesso. Num
mundo em que há uma forte divisão entre trabalho intelectual e manual, com a
extrema valorização do primeiro, o uso do corpo em formas lúdicas como meio de
ganhar dinheiro mostra-se como opção para uma transformação da vida. “Crime,
futebol, música, caralho, eu também não consegui fugir disso aí”, esse é o
Negro Drama cantado pelos Racionais MC’s. Os MCs de funk ostentação estão
tentando dizer que é possível construir uma vida de sucesso pela música. E o
que era ficção, os videoclipes com carros importados emprestados ou alugados,
com dinheiro cenográfico jogado para o ar, começa a tornar-se realidade. Muitos
deles começam a ganhar uma quantidade razoável de dinheiro com os shows. Acho
que a ideia da imaginação como uma força criativa apresenta-se fortemente no
funk ostentação.
Será que a classe média entende que os jovens estão ‘roubando’ o direito
exclusivo de eles consumirem? Direito que, por sua vez, vinha sendo roubado
desses jovens pobres há muito tempo.
Por outro lado, é
preciso destacar que masculinidades pautadas pelo desejo de possuir um
automóvel ou uma motocicleta não foram construídas pelo funk ostentação. Já
existia há um tempo. Para os meninos da periferia, possuir um bom carro, bonito
e potente, é uma das metas principais de vida. A posse do carro é, no imaginário
desses jovens, mas também da população em geral, um indicativo de sucesso
econômico e social, garantindo, consequentemente, sucesso com as mulheres.
Neste caldo cultural,
o consumo é cada vez mais exaltado como espaço de afirmação e de reconhecimento
para os jovens. É, inclusive, bastante complexa a forma como se dá a relação
entre criminalidade e consumo no funk. Na virada que produziram, parece que há
o recado de que essas duas ações sociais podem constituir dois lados de uma
mesma moeda. Eles não deixam de falar do crime. Acabam citando-o indiretamente,
como nas músicas do MC Rodofilho, nas quais ele celebra: “Ai meu deus, como é
bom ser vida loka!”. O importante é entender como o crime e o consumo são
pautas constantes nas relações de sociabilidade dos jovens da periferia. Os
mais pobres também querem que ipads, iphones e automóveis potentes façam parte
de seu mundo social. Ainda preciso observar e refletir mais sobre isso, mas
acho que tanto no caso do crime, como no do consumo temos que atentar mais para
o modo como se dão as relações entre pessoas e coisas. Fico pensando que a
busca de realização apenas pelo consumo envolve sentimentos e posturas extremas
de um egoísmo hedonista e de um profundo desprezo pelos outros humanos. As
mercadorias, ou as coisas almejadas, de certa forma têm conformado as
subjetividades contemporâneas. E nessas novas subjetividades, pautadas pelo
instantâneo e o instável, parece não haver muito espaço para a solidariedade.
Há uma nova tendência na discussão antropológica afirmando que não podemos
entender as coisas apenas como representação ou resultado do social. Precisamos
pensar também em como as coisas fazem as pessoas e mesmo o social, como as
coisas, ou as mercadorias mais desejadas hoje, motivam tanto um consumismo desenfreado,
irracional e egoísta, quanto o ingresso de jovens na criminalidade. Sempre fico
espantado quando vejo as imagens, em outros países, das pessoas correndo
desesperadas para comprar um novo lançamento de smartphone, videogame ou
tablet... Mas não só isso, tais coisas também motivam e determinam formas de
estar, pensar, relacionar-se e sentir no mundo contemporâneo.
Penso muito nisso
quando parte da classe média critica o consumo desses jovens, dizendo que
apenas eles – da classe média que, supostamente, pagaria os impostos – têm
direito a consumir, ou se relacionar com certos produtos. Será que, desse modo,
a classe média entende que os jovens estão roubando o direito exclusivo de eles
consumirem ou de se relacionarem com esses objetos de prestígio? Direito que,
por sua vez, vinha sendo roubado desses jovens pobres há muito tempo?
Essa crítica pode vir
inclusive de certa classe média mais intelectualizada e mesmo com ideias
políticas progressistas, mas que acha que sabe o que é melhor para os pobres. Aí
fazem a crítica, a partir dos seus ipads e iphones, ao que entendem como um
consumo irracional dos mais pobres, que deveriam poupar ao invés de gastar com
produtos que não seriam para o nível econômico deles. Enfim, tem aí um jogo de
perde e ganha e também de busca de satisfações individuais que envolve o roubo
do direito de alguns ao consumo, que é preciso aprofundar para entendermos
melhor essas dinâmicas contemporâneas. Todos têm o direito a consumir o que
quiserem hoje? E seria viável, hoje, todos consumirem em um alto padrão? Que
implicações ambientais teríamos? E se não é sustentável ou viável que todos
consumam em tamanha intensidade, por que incentivamos tal consumismo? Com isso,
o que quero dizer é que não se pode pensar a relação entre crime e consumo
apenas entre os pobres, mas creio que precisamos também olhar para as classes
médias e altas e para os crimes que, historicamente, têm sido cometidos contra
os mais pobres e o meio ambiente para proteger o consumo dos ricos.
P. É neste ponto
que os rolezinhos aparecem e criam uma tensão das mais reveladoras neste Natal?
R. Os rolezinhos
nos shoppings estão ligados diretamente a esse contexto. Não sei dizer como
surgiram efetivamente, mas me parece que despontaram por essas novas
associações que as redes sociais permitem fazer, de forma que uma brincadeira
possa virar algo sério. De repente, uma convocatória feita na internet pode
levar centenas de jovens a se encontrarem num shopping, local onde podem ter
acesso a esses bens cantados nas músicas, ainda que apenas por acesso visual.
Agora, o que é importante ressaltar é que não foram os rolezinhos nem o funk
ostentação que criaram essa relação de fascinação com consumo. Esta já existia
há muito tempo. Os Racionais, há mais de dez anos, já cantavam sobre isso, com
afirmações como: “Você disse que era bom e a favela ouviu, lá também tem
uísque, red bull, tênis nike e fuzil” ou “Fartura alegra o sofredor”
É importante perceber que os shoppings onde os rolezinhos ocorreram estão
em regiões mais periféricas. Eles não têm ido aos templos maiores do consumo de
luxo na cidade.”
P. Algumas
análises relacionam os rolezinhos a uma ação afirmativa da juventude negra e
pobre, a uma denúncia da opressão e a uma reivindicação de participação, neste
caso no mundo do consumo. Como você analisaria este fenômeno tão novo?
R. Não me
arriscaria a dizer que há um movimento político muito claro. Pode indiretamente
constituir-se como uma ação afirmativa da juventude negra e pobre. Talvez a
tensão que se criou com a criminalização desses jovens, durante os rolezinhos,
possa levar a algum tipo de reflexão e ação política maior, mas é difícil
prever. Em um livro intitulado Cidadania Insurgente, (o antropólogo
americano) James Holston analisa o surgimento das periferias urbanas no Brasil,
particularmente em São Paulo, apontando a discriminação contra certas espécies
de cidadãos no Brasil. Esse autor mostra como, historicamente, as formulações
de cidadania elaboradas pelos mais pobres se deram a partir de sua ocupação dos
bairros nas periferias das grandes cidades. Noções e práticas próprias de
cidadania que se produziram, ao mesmo tempo, por meio das experiências de
tornar-se proprietário, de participar de movimentos sociais por melhorias dos
bairros e de ingressar no mercado consumidor. Primeiro se ocupou os bairros,
mesmo sem estrutura mínima. Depois, ocorreram as reivindicações pela
legalização dos terrenos ocupados. E, enfim, vieram as lutas pela chegada da
energia elétrica, saneamento básico e asfalto. Acho sempre muito interessante,
em conversas com lideranças antigas dos bairros periféricos de São Paulo,
observar que elas indicam a chegada do asfalto como o grande marco de
transformação do bairro e a integração deste ao espaço urbano.
Encaro, portanto,
ações como estas, dos rolezinhos, do ponto de vista dessa “cidadania
insurgente”, referindo-se a associações de cidadãos que reivindicam um espaço
para si e, assim, se contrapõem ao grande discurso hegemônico ou, se não se
dissociam do discurso hegemônico, ao menos provocam ruídos nele. Trata-se de
uma reivindicação por cidadania, participação política e direitos que,
historicamente, foi feita na marra, pelos mais pobres, muitas vezes nas
costuras entre o legal e o ilegal, e que começou com a própria ocupação dos
bairros na periferia da cidade de São Paulo, como forma de habitar e sobreviver
no mundo urbano. Essa cidadania não necessariamente se apresenta como
resistência, mas pode também querer, em muitos casos, associar-se ao
hegemônico, produzindo dissonâncias.
O que são o funk
ostentação e os rolezinhos se não essa reivindicação dos jovens mais pobres por
maior participação na vida social mais ampla pelo consumo? Estas ações
culturais parecem situar-se nessa lógica, que não necessariamente se contrapõe
ao hegemônico, na medida em que tenta se afirmar pelo consumo, mas provoca um
desconforto, um ruído extremamente irritante para aqueles que se pautam por um
discurso e uma prática de segregação dos que consideram como seus “outros”.
P. Como definir
este desconforto? O que são os “outros” neste contexto? E que papel estes
“outros” desempenham?
R. O desconforto
em ver pobres ocupando um lugar em que não deveriam estar, como o de
consumidores de certos produtos que deveriam ser mais exclusivos. É um tipo de
espanto, que indaga: “Como eles, que não têm dinheiro, querem consumir produtos
que não são para a posição social e econômica deles?”. Estes “outros” são os
considerados “subalternos”. Podem ser funkeiros, pobres e pardos da periferia,
mas podem ser também as empregadas domésticas, os motoboys, os pichadores,
entre outros “outros”, que muitas vezes são utilizados como bode expiatório das
frustrações de uma parcela considerável da classe média.
Há uma tendência de perceber os jovens pobres a partir de três
perspectivas: a do bandido, a da vítima e a do herói.
Os rolezinhos não são
protestos contra o shopping ou o consumo, mas afirmações de: “Queremos estar no
mundo do consumo, nos templos do consumo”. Entretanto, por serem jovens pobres
de bairros periféricos, negros e pardos em sua maioria, e que ouvem um gênero
musical considerado marginal, eles passam a ser vistos e classificados pela
maioria dos segmentos da sociedade como bandidos ou marginais. Vamos pensar
que, na própria concepção do shopping, não está prevista a presença desse
público, ainda mais em grupo e fazendo barulho. Pergunto-me se fosse em um
shopping mais nobre, com jovens brancos de classe média alta, vestidos como se
espera que um jovem deste estrato social se vista, se a repercussão seria a
mesma, se a criminalização seria a mesma. Talvez fosse considerado apenas
um flash mob. Há uma tendência, por parcela considerável da classe
média, da mídia e do poder público de perceber os jovens pobres a partir de
três perspectivas, quase sempre exclusivistas: a do bandido, a da vítima e a do
herói.
P. Como
funcionam estas três perspectivas – bandido, vítima e herói?
R. São
muito mais formas de enquadrar esses jovens por aqueles que querem tutelá-los
do que categorias assumidas pelos próprios jovens. Por isso, são contextuais.
Dependendo da situação e dos atores sociais com quem dialogam, o jovem pode ser
entendido a partir de uma dessas categorias. O pichador, por exemplo, é um
agente que pode mobilizar todas essas classificações, dependendo do contexto e
dos interlocutores: a polícia, a secretaria de cultura, os pesquisadores
acadêmicos ou a ONG que quer salvar os jovens da periferia da violência. No
caso do funk, por exemplo, já há comentários e mesmo textos de pessoas mais
politizadas vendo os rolezinhos como uma ação afirmativa ou extremamente contestatória.
Para estes, os protagonistas dos rolezinhos são vítimas que se tornaram heróis.
Outros, como a polícia, a administração dos shoppings e a clientela, mas também
seus vizinhos, que moram lá nos bairros pobres da periferia, enxergam neles
principalmente vilões e mesmo bandidos.
Jovens como estes que
estão nos rolezinhos não necessariamente aceitam se encaixar nesses rótulos,
mas, em alguns casos, podem também se encaixar em todos eles ao mesmo tempo.
Não se pode simplificar um fenômeno como este. Porém, se pensarmos esse
movimento que surge principalmente com o hip hop, de valorizar a periferia como
espaço político e de afirmação positiva, é possível ver, sim, ainda que em
menor intensidade, uma certa ação política. De dizer: “Somos da quebrada e
temos orgulho disso”. Um movimento de reversão do estigma em marca positiva.
P. Mas há, de
fato, uma ação consciente, organizada, com um sentido político prévio? Ou o
sentido está sendo construído a partir dos acontecimentos, o que é igualmente
legítimo?
R. Olha,
sinceramente, é difícil dizer se há um sentido político, direto, consciente
e/ou explícito. Talvez por parte de alguns, mas pelo que vi nas redes sociais,
não da maioria. Se o movimento persistir ou tomar outras formas, pode ser que
tal sentido político fique mais forte. Por enquanto é difícil analisar esse
ponto. O antropólogo (indiano) Arjun Appadurai analisa há algum tempo as
mudanças que se processam no mundo por causa do avanço das tecnologias de
comunicação e de transporte. Segundo este autor, as pessoas cada vez mais se
deslocam no mundo atual, e não apenas fisicamente, mas também e talvez
principalmente pela imaginação, por causa de meios de comunicação como a
televisão e, mais recentemente, pela internet. Hoje é possível imaginar-se nos
mais diferentes lugares do mundo, mas também em diferentes classes sociais. O
que são os videoclipes de funk da ostentação que não imagens/imaginações que os
jovens produzem sobre o que seria pertencer a outra classe social ou possuir
melhores condições econômicas para o consumo?
O que são os videoclipes de funk ostentação que não imagens que os jovens
produzem sobre o que seria pertencer a outra classe social?”
Essa imaginação,
segundo esse autor, pode constituir-se como um projeto político compartilhado,
mas pode também ser apenas uma fantasia, como algo individualista e egoísta,
sem grandes potenciais políticos. Parece-me que o funk da ostentação em São
Paulo e movimentos como o dos rolezinhos nos shoppings têm intensamente essas
duas potências. Difícil saber se alguma delas irá prevalecer ou tornar-se
hegemônica.
P. A escolha da
música do MC Daleste, assassinado num show em Campinas, para o rolezinho
promovido no Shopping Internacional de Guarulhos, pode ter um significado a
mais?
R. A escolha da
música do MC Daleste na entrada dos jovens no shopping de Guarulhos me pareceu
bastante significativa, por vários motivos. Principalmente, porque a morte dele
no palco, cantando funk, de certa forma construiu um marco para esse funk da
ostentação. O seu assassinato acabou por dar ainda mais visibilidade a esta
vertente do funk paulista. MC Daleste cantava proibidão antes e, assim, essa
relação confusa entre crime e consumo manifesta-se de modo bastante forte no
que o MC Daleste representa. Há no seu próprio nome artístico essa afirmação de
um certo orgulho do lugar de onde vem e de ser da periferia, que tanto o funk
quanto o hip hop expressam. Não é por acaso que ele é “Da Leste”. Lembremos que
Guarulhos também está à leste da Região Metropolitana de São Paulo.
P. Hoje, uma parte
significativa da geração que se criou nas periferias com movimentos
contestatórios como o hip hop e a literatura periférica ou marginal tem, pelo
funk da ostentação, assumido os valores de consumo das classes médias e alta.
Como você analisa este fenômeno e o insere no contexto histórico atual do
Brasil?
R. O que um
evento como esse parece evidenciar é, por um lado, esse anseio por consumir e
por afirmar-se pelo consumo que esses jovens vêm demonstrando já há algum
tempo, pelas letras dos funks, mas que também já é visto no hip hop. Apesar das
críticas de certos segmentos do hip hop, não sei se o funk ostentação rompe com
o hip hop mais politizado dos anos 1980 e 1990 ou se oferece uma das muitas
possíveis continuidades a esse movimento cultural. Parece-me que o funk
ostentação é uma releitura paulista, muito influenciada pelo hip hop, do funk
carioca. Muitos MCs de funk eram MCs de hip hop, muitos deles, além dos funks,
cantam também raps, e músicas dos Racionais são ouvidas nos shows. Trechos de
letras de músicas dos Racionais podem ser encontrados facilmente nas letras do
funk. Agora, o fato é que o funk não é tão marcado pela questão política como o
hip hop. O Montanha, de Cidade Tiradentes, disse-me algo interessante, certa
vez, de que, na verdade, o hip hop ofereceria um espaço de expressão política
que faltava aos jovens, já o funk é um espaço de lazer e de sociabilidade.
Parece-me uma reflexão interessante. Não que o hip hop não possa conter lazer e
sociabilidade também, nem o funk, protesto político, mas que as duas vertentes
tendem para um dos polos. O funk, aliás, ganhou esse grande espaço junto aos
jovens das periferias de São Paulo porque, nessa articulação de um espaço de
lazer, configurou-se um espaço para as mulheres que, no hip hop, era mais
difícil. As mulheres são presença fundamental nos bailes funks. O protagonismo
da dança sempre foi delas. Ainda que os meninos também dancem e as meninas
participem cada vez mais como MCs. O hip hop sempre foi muito mais masculino,
da dança ao estilo de se vestir.
P. Mas qual é a
diferença, na sua opinião, entre a forma como, por exemplo, os Racionais falam
em consumo e os MCs da ostentação falam de consumo?
Devemos questionar não a ação dos meninos, mas as relações sociais
fomentadas na contemporaneidade que se pautam cada vez mais pela busca do
reconhecimento pelo consumo, pela posse de bens.
R. Há aí duas
perspectivas. Quando digo que os Racionais já cantavam isso, quero dizer que
eles já identificavam essa necessidade de consumir da juventude. E de consumir
o que eles achavam que era bom, nada de consumo consciente. Por isso digo que
os Racionais já faziam, há mais de dez anos, uma leitura desse anseio por
consumir dos jovens pobres. Por outro lado, há essa dimensão de movimentos como
o dos escritores da periferia, promovendo produtos da periferia, pela
periferia. O funk ostentação começa sem se preocupar com essa questão
diretamente. Ele não tem dor na consciência por cantar o consumo em suas
músicas e aderir ao sistema, por exemplo. Porém, indiretamente, se acaba
chegando a um outro ponto, na medida em que uma parcela considerável de jovens
da periferia passa a possuir algum tipo de renda com a produção do funk. Sejam
os meninos que gravam os videoclipes, os próprios MCs, mas também empresários,
produtores, técnicos e mesmo alguns MCs tornando-se empreendedores e criando
seus próprios negócios. Como o MC Nego Blue, que observando de perto o sucesso
das roupas de grife entre os jovens, criou a Black Blue, uma loja de roupas
cujo símbolo é uma carpa colorida. Hoje, além de possuir lojas próprias, já
vende suas roupas em lojas multimarcas, ao lado de camisas da Lacoste ou de
outras marcas famosas que os meninos procuram, e por um preço muito parecido.
Uma das empresas que agencia shows de funk em Cidade Tiradentes chama-se
justamente “Nóis por nóis”.
Os rolezinhos parecem
dizer: não apenas queremos consumir, mas queremos ocupar em massa e se divertir
aí nos seus shoppings, nos seus ou nos nossos. É importante perceber também que
os shoppings onde os eventos ocorreram estão em regiões mais periféricas,
provavelmente próximos ao próprio bairro de moradia dos jovens. Por enquanto,
eles não têm ido aos templos maiores do consumo de luxo na cidade, na região
dos Jardins, Faria Lima, Marginal Pinheiros etc. Pode haver aí também um
componente de um termo que surgiu muito forte para mim na pesquisa que fiz em
escolas de ensino médio, no meu doutorado, que é a ideia do “zoar”. Eles querem
zoar, que é chamar a atenção para si e se divertir, namorar, brincar e, se for
preciso, brigar.
P. Por que,
neste momento, o lazer se impõe como uma reivindicação desta geração, acima de
questões como saúde, educação e transporte de qualidade?
R. Acho que não
há uma reivindicação política bem formuladinha como acontecia com o hip hop: queremos
mais saúde, educação e lazer. Eles simplesmente querem estar nos shoppings para
zoar e vão. Não há essa reflexão mais elaborada que o hip hop produz, é mais
espontâneo. Esse talvez possa ser um ponto de distinção. E o próprio funk é,
por si só, lazer e diversão, um dispositivo poderosíssimo para dançar e motivar
paqueras. O zoar pode ser lido como um ato político, mas não me parece
intencional. Acho que cria uma tensão que é política, que é de disputa de poder
pelos espaços da cidade, mas não há um manifesto pela zoeira ou pelos
rolezinhos, como houve, por exemplo, no caso do manifesto da arte periférica
dos escritores.
P. Há também um
movimento maior para sair dos guetos e ocupar os guetos da classe média? Em
massa e não mais individualmente, como quando um grupo de rap aparecia numa TV,
mesmo sendo a MTV, ou um escritor do movimento literário marginal ou periférico
publicava numa grande editora? Esta é uma novidade importante?
R. Acho que
abre, sim, para fora do gueto, do bairro onde se vive, mas não para muito
longe, pois, afinal, os shoppings para os quais eles vão estão do lado de suas
casas. Neste sentido, acho que o hip hop, apesar de falar mais do gueto,
abre-se muito mais para fora do gueto, na medida em que conquista um espaço
importante nas políticas públicas de cultura, por exemplo.
É como se a sociedade dissesse: ‘Vocês, pobres, podem consumir, mas ir ao
shopping em grandes grupos, só para zoar e cantar funk, aí já é vandalismo’.
Claro que esse espaço
de lazer é problemático e conflitivo mesmo dentro dos bairros das periferias
onde moram esses jovens. Se entrevistarmos os seus vizinhos, certamente a
maioria vai se posicionar totalmente favorável à proibição das festas de rua
que eles organizam, com som alto que muitas vezes toma a madrugada toda. Por
isso, acho importante não tomar o funk nem como um movimento libertador, nem
como o grande vilão ou o grande movimento de corrupção da juventude
contemporânea, como setores mais moralistas, à esquerda e à direita, tendem a
fazer.
A questão do consumo
também me parece problemática. O desejo pelo consumo sempre existiu. Bem antes
do governo Lula, o processo de urbanização induz a esse apego maior ao consumo.
Porém, não dá para se negar que houve, nos últimos anos, também uma melhora
econômica para segmentos que antes estavam bastante afastados do mercado.
Porém, acho que reduzir o sucesso do funk da ostentação a isso é simplificar
demais o movimento e esquecer que ocorreram e ocorrem movimentos juvenis
parecidos em outras partes do mundo, como o próprio gangsta rap, nos Estados
Unidos, no qual os videoclipes se inspiram.
Devemos questionar
não a ação dos meninos, mas as relações sociais fomentadas na
contemporaneidade. É preciso conceder aos jovens, e não apenas aos pobres, mas
aos de classe média e alta também, outros espaços de reconhecimento e de
estabelecimento de relações sociais que não sejam pautados pela afirmação por
meio da posse e do consumo de bens. Porque, afinal, como dizem os Racionais,
mais uma vez: “Quem não quer brilhar, quem não? Mostra quem. Ninguém quer ser
coadjuvante de ninguém”. De repente, para alguns, ter um tênis caro, um
smartphone de última geração ou ir ao shopping para zoar, pode ser uma forma
encontrada para tentar brilhar.
P. Ao ocupar os
shoppings, os adeptos do funk da ostentação estariam promovendo sua primeira
atitude de insurgência contra o sistema, no sentido de: “Vou ocupar o espaço
que me é negado ou onde não me querem”. É isso? Ou as próprias letras das
músicas, interpretadas, em geral, como adesão ao sistema, já seriam, de fato,
uma insurgência, na medida que se apropriam, simbolicamente, dos valores da
elite e da classe média e, agora, com os rolezinhos, também de seus espaços
físicos?
R. Sim, acho que
essa é a maior irritação da classe média com esses movimentos. Basta ver os
comentários aos videoclipes no YouTube, irritados com os meninos ostentando e
exibindo-se com produtos mais caros, que não deveriam estar com aqueles
meninos, pobre e negros, em sua maioria. Esta é a principal insurgência que
eles provocam. A classe média, de uma maneira geral, a mais pobre ou a mais
rica, a mais ou menos intelectualizada, irrita-se bastante quando os
subalternos compram bens caros, mesmo antes deles. Já ouvi comentários
indignados, do tipo: “Minha empregada comprou uma televisão de última geração,
melhor do que a minha”. Isso tem antecedentes históricos que parecem refletir
até hoje. James Holston, ainda no livro sobre cidadania insurgente, que citei
anteriormente, traz como exemplo a legislação colonial portuguesa, que proibia
aos negros o uso de joias e artigos considerados finos...
P. Parece que os
“rolezeiros” dos shoppings estão ocupando o mesmo lugar simbólico dos
“vândalos” nas manifestações, na narrativa feita por parte da grande mídia e
pelas autoridades instituídas. Como você interpreta essa reação?
Os comentários em sites e redes sociais revelam esse profundo racismo
entranhado em parcela considerável da população brasileira.
R. O que me
assustou de verdade nessa história toda foram as reações, de mídia e de
polícia, condenando e mandando prender, mesmo em casos em que disseram que não
houve arrastões, mas correrias. Fico questionando quem provocou a correria: os
jovens ou a ação dos seguranças e da polícia? Eventos como estes revelam também
uma faceta complicada e extremamente preconceituosa da classe média brasileira.
Dei uma entrevista curta para o site de um grande grupo de comunicação e fiquei
assustado ao ler os comentários dos leitores, de um ódio terrível contras os
meninos e meninas que foram aos shoppings, contra os pobres, contra mim, que
tive uma fala dissonante na entrevista, ressaltando a forma preconceituosa com
que tal tema vinha sendo tratado. Ao falarem do evento, algumas palavras
utilizadas como categorias de acusação contra os jovens e as jovens foram
bastante reveladoras do preconceito, e mesmo do racismo, deste segmento social:
“favelados”, “maloqueiros”, “bandidos”, “prostitutas” e “negros”. Nesse último
caso, inclusive, fica evidente o racismo que aparece em muitos comentários
dessa notícia, mas também nas comunidades dos rolezinhos que os jovens criaram
nas redes sociais. Um dos comentários pede para que os jovens voltem para a
África. Isso é muito grave. Revela esse profundo racismo entranhado em parcela
considerável da população. Como se tal sociedade dissesse, por meio dos
representantes dos shoppings, da mídia e da polícia, brincando um pouco com a
questão das manifestações de junho: “Vocês, pobres, podem consumir, mas ir ao
shopping em grandes grupos, só para zoar e cantar funk, aí já é vandalismo”.
P. A classe
média é racista?
R. O que
chamamos de classe média não é um todo homogêneo. É possível segmentá-la em
diferentes níveis e a partir de diferentes contextos, é possível pensar em uma
classe média intelectualizada ou não intelectualizada. Contudo, parece-me que a
divisão mais importante para se pensar a classe média em São Paulo é a que se
dá por critérios socioeconômicos e espaciais. Há a classe média que está
concentrada principalmente no entorno do eixo central, que vai do Centro a
Pinheiros, passando pela Avenida Paulista e bairros próximos. Esta, em sua
maioria, vive numa bolha e tem poucos contatos com outras classes sociais, com
exceção dos trabalhadores subalternos: porteiros, empregadas domésticas etc.
Para esta, em grande medida, o Shopping Itaquera pode estar mais distante do
que Paris ou Londres.
Porém, há também
certa classe média baixa que vive na periferia. Citando novamente o Holston,
ele fala de uma diferenciação que se produziu nas periferias de São Paulo entre
aqueles que compraram seus terrenos, ainda que por meio de contratos obscuros,
e aqueles que ocuparam os espaços da cidade, formando as favelas. Essa pequena
diferença não cria um grande abismo econômico, mas produz uma profunda
diferenciação, por meio do qual um grupo estigmatiza o outro. Já vi um
indivíduo desta classe média da periferia questionando programas como o bolsa
família, porque tinha visto potes vazios de iogurte no lixo da favela. Este
indivíduo afirmava que nem ele consumia iogurte com tanta frequência, como eles
se davam ao direito de consumir tal produto, que era um luxo, raro, mas sobre o
qual ele detinha certa exclusividade?
A questão do auxílio
aos mais pobres, principalmente o bolsa família, é um forte fator de
estigmatização por parte desses diferentes segmentos da classe média, mas
principalmente por parte dessa classe média da periferia. Estive, recentemente,
em uma escola pública próxima a uma grande favela de São Paulo. Segundo os
professores, um dos problemas daquela escola era o fato de que 90% dos alunos
vinham da favela vizinha. E que, hoje, esses alunos estavam muito acomodados,
pois viviam de bolsas e na favela tinham tudo muito fácil, com a grande
quantidade de projetos presentes por lá. Inclusive, projetos de música,
ressaltou um professor. É muito importante refletir sobre isso, porque esses
professores, se não moram na favela, são vizinhos dela. Mas, ainda assim,
permitem-se diferenciar-se dos jovens por questões muito pequenas. E são estes
professores os responsáveis por formar esses jovens. Será que, com este olhar,
são capazes de lutar para que a escola se torne um espaço de convivência,
afirmação e reconhecimento para os jovens?
P. Como você,
que tem acompanhado o cotidiano de escolas públicas, em São Paulo, percebe a
educação?
Para uma parcela da classe média de São Paulo, o Shopping Itaquera pode
estar mais distante do que Paris ou Londres.
R. É necessário
pensarmos em uma educação para as diferenças, para que não caiamos mais na
armadilha da intolerância e das análises apressadas e preconceituosas de
setores das elites e das camadas médias, ao se referirem aos “subalternos”.
Lembro-me de um documentário português, que vale a pena ser assistido, sobre a
história de um arrastão que não existiu. Chama-se: “Era uma vez um arrastão” (assista aqui). Nele, conta-se do dia em que jovens
caboverdianos ou descendentes de caboverdianos resolveram frequentar a nobre
praia de Carcavelos, em Portugal. A polícia, ao ver a concentração de jovens de
origem africana, assustou-se e resolveu intervir, provocando uma grande
correria, que foi noticiada como arrastão. Mas, de fato, os jovens fugiam da
repressão policial gratuita. Isso talvez nos ensine algo sobre os arrastões que
estamos a criar todo dia, criminalizando jovens pobres cotidianamente.
Quando estive
pesquisando em escolas públicas da periferia de São Paulo, era comum ouvir dos
professores que, naquela escola, os alunos eram todos bandidos ou marginais. O
discurso da criminalização é efetivo e poderoso e condena muita gente ao
fracasso escolar e mesmo ao crime. O sociólogo polonês Zygmunt Bauman, num
livro sobre educação e juventude, ressalta a necessidade cada vez mais
premente, na contemporaneidade, de desenvolvermos a arte de conviver com os
estranhos e a diferença. Em especial num mundo no qual as migrações tendem a
aumentar cada vez mais. No nosso caso, não foi preciso a chegada de
estrangeiros para a expressão das mais brutais formas de preconceito, pois os
estrangeiros éramos nós, os brasileiros. Mas brasileiros que moram muito, muito
distante, ainda que vizinhos. Moram em Guaianazes, Capão Redondo, Grajaú,
Cidade Ademar, Cidade Tiradentes, Vila Brasilândia...
P. Em que
medida, na sua opinião, os rolezinhos se ligam às manifestações de junho?
R. Acho que não
há uma ligação direta. Mas, indiretamente, é possível perceber a reivindicação
comum do uso do espaço público e de quebra das marcas da segregação. Lembro-me
que, antes das manifestações de junho, para a imprensa conservadora era um tabu
ocupar a Avenida Paulista. Os movimentos sociais mostraram que não apenas não
era um tabu, como era um direito, o direito de ir às ruas e ocupá-las para
protestar. Os rolezinhos não parecem ter uma pauta tão clara, mas também estão,
ainda que indiretamente, dizendo: “Vocês não disseram que era bom consumir?
Pois bem, nós também queremos!”
P. Essa ocupação
de espaços que supostamente pertenceriam a “outros”, tanto no caso das
manifestações como no caso dos rolezinhos, parece marcar uma novidade
importante. O que está acontecendo?
R. Acho
que a novidade está aí, mas é difícil dizer o que está acontecendo ou o que
acontecerá. Pode ser apenas um surto – algo parecido com o que foi a revolta da
vacina como reação às propostas políticas opressoras de reforma sanitária do Rio
de Janeiro, por exemplo – ou pode ser uma nova forma de pensar os espaços
públicos e privados nas cidades brasileiras. Porém, é difícil prever. Os
rolezinhos podem ter acabado nesta semana, por exemplo. E movimentos como os de
junho não se repetiram com tanta intensidade e repercussão. Contudo, o que
movimentos como estes garantem é a possibilidade de se tencionar essa ocupação
dos espaços urbanos, amplamente negada até então.
“Aqui não foi preciso a chegada de estrangeiros para a expressão das mais
brutais formas de preconceito, pois os estrangeiros éramos nós, os brasileiros
que moram em Guaianazes, Capão Redondo, Grajaú, Cidade Ademar, Cidade
Tiradentes, Vila Brasilândia...”
P. Por que este
nome, rolezinho? E que significados ele contém?
R. Rolezinho é
um termo que está diretamente ligado à ideia de lazer. De sair para se divertir
e usufruir da cidade. Os pichadores, com os quais realizei pesquisa no
mestrado, também usam a ideia de rolê, para se referirem às suas pichações. Com
isso estão dizendo que pichar é dar voltas para conhecer e se apropriar da
cidade. Parece que, por este termo, indiretamente, podemos entender uma
reivindicação pelo direito de se divertir na cidade.
P. Divertir-se
na cidade não seria um ato de insubordinação para jovens pobres e negros?
Talvez até o maior ato de insubordinação?
R. Sim,
principalmente numa sociedade em que pobres e negros têm que trabalhar – e
apenas trabalhar – sem reclamar. Lembremos de que a ROTA, no final do regime
militar, atuava nas periferias abordando os moradores e cobrando-lhes a
carteira profissional como prova de que eram trabalhadores e não vagabundos.
Devotados, portanto, ao trabalho e não à diversão. Agora, claro que esses
jovens não estão pensando exatamente nisso. Querem muito mais é se divertir.
P. Como entender
este fenômeno, que é, ao mesmo tempo, uma insubordinação e uma adesão ao
sistema?
R. Acho
que a melhor palavra é paradoxo. O funk da ostentação em São Paulo é paradoxal:
não dá para situá-lo num polo ou noutro, dentro do modo tradicional de pensar a
política. Conservador ou revolucionário? Nenhum dos dois, mas com possibilidade
para os dois ao mesmo tempo.
Eliane Brum é escritora, repórter e
documentarista. Autora dos livros de não ficção A Vida Que Ninguém vê,
O Olho da Rua e A Menina Quebrada e do romance Uma
Duas.
_____________
21.08.2013
Mais equívocos
governamentais nas políticas de drogas…
Dartiu Xavier da
Silveira[1]
Diversas instâncias
governamentais têm apresentado propostas de enfrentamento dos problemas
relacionados a dependência química. No entanto, a grande maioria delas parte de
pressupostos equivocados a respeito do tema, não conseguindo assim caminhar
para a real solução do problema.
Uma dessas
iniciativas questionáveis seria o projeto Recomeço. Ao dependente químico seria
disponibilizada a quantia de R$ 1.350,00 mensais, durante seis meses, paga
diretamente a uma instituição de internação, preferencialmente uma comunidade
terapêutica. Ou seja, o primeiro grande engano é que já se determina de antemão
uma estratégia terapêutica fundamentada na internação e, pior ainda, em uma
comunidade terapêutica.
Não existe
fundamentação cientifica para se privilegiar o tratamento através de internação
em detrimento de um tratamento ambulatorial. A eficácia tende a ser maior
quando o dependente é atendido ambulatorialmente por uma equipe
multidisciplinar (a exemplo do que ocorre nos Caps-AD, como preconiza o
Ministério da Saúde).
No caso das internações,
a imensa maioria dos dependentes recai logo após o seu termino. Se agregarmos
as avaliações de custo-beneficio aos estudos de eficácia, chegaremos à
conclusão que este é um modelo incomparavelmente mais dispendioso e menos
eficaz. Isto para não mencionar outros problemas bastante graves que foram
levantados nos últimos anos a respeito das comunidades terapêuticas.
Embora algumas delas
sejam exemplares e ofereçam um tratamento de qualidade, infelizmente são
exceções. Na grande maioria das vezes, as CTs são instituições precárias, com
equipes mal preparadas, que utilizam métodos pouco científicos, sem preocupação
com avaliação da eficácia das intervenções propostas. São geralmente modelos
mistos, com forte viés moralista, sem conhecimento adequado da complexidade do
fenômeno dependência.
A maioria delas
sequer sabe distinguir um usuário de um dependente de drogas (e precisamos
lembrar que os estudos epidemiológicos do mundo inteiro nos mostram que mais de
80% dos usuários de drogas não são dependentes e portanto, não teriam que ser
submetidos a nenhuma forma de tratamento!!!).
Isto sem mencionar
os frequentes casos de aviltamento a que são submetidos os pacientes
internados, alguns deles sofrendo tortura psicológica e mesmo física, como foi
amplamente documentado por vários órgãos, inclusive pelo Conselho Federal de
Psicologia.
Os pontos centrais
que não deveriam ser negligenciados em qualquer iniciativa de abordagem da
questão: a grande maioria dos usuários de drogas não é dependente; deve sempre
ser privilegiado o tratamento ambulatorial, sem o afastamento do dependente do
seu meio (menos custoso e mais eficaz); nos casos que requerem internação
(menos de 20%), esta deveria ser de curta duração (geralmente de duas a quatro
semanas apenas) e serem feitas em ambiente de hospital geral. As internações
longas não contemplam as necessidades do dependente químico e, pior ainda,
reeditam o inadequado modelo psiquiátrico asilar e manicomial.
Diante do exposto,
os governos deveriam investir esses recursos do projeto nas suas próprias
estruturas de atendimento, implementando as unidades básicas de saúde e os
Caps-AD, o que talvez não resulte em mais votos, mas que certamente ajudaria
muito mais os dependentes de drogas.
A ONU preconiza que
o tratamento de um dependente químico deva ser feito preferencialmente em
regime ambulatorial e que os tratamentos coercitivos (como ocorre com a imensa
maioria das internações) deveriam ser considerados como equivalentes a tortura.
Acho irônico que,
justamente quando temos na chefia de nosso atual governo federal uma pessoa que
foi vítima de tortura na época da ditadura militar, sejam incentivadas medidas
“terapêuticas” que os órgãos internacionais consideram como sendo formas
disfarçadas de tortura (!).
Acolher é proteger, recolher é crime.
Siro Darlan
Desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro
Membro da Associação Juízes para a Democracia.
A Declaração de Genebra de 1924 estabeleceu à Humanidade o dever de observância aos direitos de crianças, do qual se infere o dever prestacional de assegurar a proteção, assim como o dever de abstenção de práticas perniciosas.
Em 20 de novembro de 1959 a Organização das Nações Unidas adota a Declaração Universal dos Direitos da Criança, posteriormente ratificada pelo Brasil. Tal documento, em consonância à proteção especial enunciada na Declaração de Genebra, expõe que “a humanidade deve à criança o que de melhor tiver a dar”, indicando em seu Princípio II e VII que:
“(...) II- A criança tem o direito de ser compreendida e protegida, e devem ter oportunidades para seu desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, de forma sadia e normal e em condições de liberdade e dignidade. As leis devem levar em conta os melhores interesses da criança. (...)”
Reafirmando as diretivas da Declaração Universal dos Direitos da Criança, o Artigo 3 1. prevê que “(...) Todas as ações relativas às crianças, levadas a efeito por autoridades administrativas ou órgãos legislativos, devem considerar, primordialmente, o interesse maior da criança. (...)”
O melhor interesse da criança se consolida como disposição de grande amplitude que indica a prioridade em se concretizar os direitos garantidos às crianças, vez que se deve, sob quaisquer circunstâncias, considerar as melhores soluções possíveis para esta parcela da população.
A Constituição Federal de 1988 contempla a proteção dos direitos fundamentais antes mesmo de apresentar as normas organizadoras da atividade estatal, revelando o seu compromisso à consecução daqueles.
O artigo 5º, § 1º, da CRFB, estabelece que os direitos humanos têm aplicabilidade imediata:
“(...)
§ 1º - As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.
(...)”
A efetivação dos direitos fundamentais concerne aos custos dos direitos. Em uma sociedade em que os recursos são escassos, implementar um direito fundamental, especialmente os sociais, é tarefa que exaspera os limites dos critérios jurídicos de proteção do direito para invadir a inevitável relevância dos fatos.
A Carta Magna prevê, em seu artigo 227, o arcabouço do atual regramento acerca da garantia de direitos de crianças e adolescentes, In verbis:
“É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.”
Preleciona o Professor Wilson Donizeti Liberatti:
“Nossos Tribunais têm reiteradamente, e com acerto, firmado entendimento reconhecendo que o interesse da criança e do adolescente deve prevalecer sobre qualquer outro interesse, quando seu destino estiver em discussão” (LIBERATTI, WILSON DONIZETI. Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente. São Paulo: Malheiros Editores, 1993, p. 17.)
Dispõe o artigo 1º da Lei 8069/90:
“Esta Lei dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente”.
Crianças e adolescentes passaram a ser considerados cidadãos, sujeitos de direitos, com direitos pessoais e sociais garantidos, desafiando os governos em todas as suas esferas a formularem e implementarem políticas públicas, especialmente dirigidas a esse segmento, amparadas na destinação privilegiada de recursos.
Neste sentido, já tive oportunidade de mencionar que a solução para problemas que envolvam crianças e adolescentes não perpassa por atitude repressiva. Ao revés, deve ser realizada mediante a consecução de políticas públicas, cuja realização impõe a apreciação principiológica em todos os níveis e esferas de atuação pública.
Ao Poder Legislativo impõe a discricionariedade regrada de prever a legislação pertinente à previsão de normas gerais que atendam aos fins propostos em sede constitucional, de modo que todos os direitos conferidos às crianças sejam alcançados, sendo certo que tais regras devem estar balisadas pela estrutura principiológica de garantia do melhor interesse das crianças.
Ao Poder Judiciário incumbe garantir a constitucionalidade e a legalidade dos atos realizados, tendo sempre em consideração a perspectiva de atuação em favor de crianças e adolescentes, destinatárias das normas preventivas e protetivas.
Por sua vez, não pode o Poder Executivo, imbuído de ponto de vista repressivo, pretender realizar faxina social, mediante o recolhimento das crianças, como alhures já referi, de modo a que sejam crianças expurgados da sociedade. A solução não passa pela exclusão dos indivíduos, a consideração distorcida e dissociada da previsão constitucional.
Ao contrário, impõe o respeito a sua condição de pessoas em desenvolvimento, mediante a previsão, garantia e execução de políticas públicas, que permitam a crianças e adolescentes o alcance de seus direitos.
Neste sentido, cabe afirmar que o Ministério Público detém atribuições legais para impor a adequada realização de políticas públicas em prol de crianças, assim como para impedir o vilipêndio acintoso de seus direitos.
Nem se afirme que se estaria adentrando o mérito administrativo. Isto porque o resguardo do mérito administrativo presume a sua legalidade. No caso de recolhimento de crianças, não tendo por ótica o seu melhor interesse, mas tão-somente a maquiagem social, verifica-se a ilegalidade, sendo de atribuição do Judiciário a sua apreciação para fins de expurgar o equívoco do ato.
Em consonância com a recente reforma do Código Penal, Lei 12.403/2011, cabe desde logo dizer que a prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indicio suficiente de autoria.
Assim, como leciona a doutrina, o periculum libertatis e o fumus commissi delicti são o fundamento e o requisito da preventiva, respectivamente.
A nova lei 12.403 de 04/05/2011 prevê no parágrafo único do art. 313 do CPP que também será admitida a prisão preventiva quando houver dúvida sobre a identidade civil da pessoa ou quando esta não fornecer elementos suficientes para esclarecê-la, devendo o preso ser colocado imediatamente em liberdade após a identificação, salvo se outra hipótese recomendar a manutenção da prisão.
O mestre Guilherme de Souza Nucci na sua obra Prisão e Liberdade sobre a nova lei assevera que o direito ao silêncio liga-se ao contexto da imputação, mas não à identificação do indiciado ou réu. Ainda, ressalva que a Lei 12.037/2009 prevê as hipóteses nas quais se pode identificar o indiciado ou réu, criminalmente, colhendo suas impressões dactiloscópicas e sua fotografia.
O doutrinador Aury Lopes Junior no seu livro O novo regime jurídico da prisão processual, liberdade provisória e medidas cautelares diversas salienta com muita propriedade que lhe é peculiar que o dispositivo em questão não está autorizando a prisão preventiva para averiguações e que tal artigo deve ser interpretado em conjunto com a lei 12.037/90 que regulamentou a identificação criminal prevista no art. 5º, LVIII, da CF.
O mestre Aury ressalva que não sendo apresentado qualquer documento civil ou militar, ou nas hipóteses do art. 3º da Lei 12.037, será o suspeito submetido à identificação criminal e, dependendo do caso, à prisão preventiva (desde que cabível).
Como se vê, a prisão preventiva quando houver dúvida sobre a identidade civil somente poderá ser decretada na ausência de qualquer documento civil ou militar, ou nas hipóteses do art. 3º da Lei 12.037 (tais como o documento apresentar rasura ou tiver indício de falsificação, entre outros), desde que seja cabível.
Cediço que a prisão preventiva somente tem cabimento nos crimes dolosos punidos com pena privativa de liberdade máxima superior a 04 anos; se o suspeito tiver sido condenado por outro crime doloso com sentença transitada em julgado; se o crime envolver violência doméstica e familiar contra a mulher, criança, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência, para garantir a execução das medidas protetivas de urgências ou, se houver descumprimento de qualquer das obrigações impostas por força de outras medidas cautelares.
Fora as hipóteses de cabimento acima mencionadas a prisão preventiva quando houver dúvida sobre a identidade civil ou quando a pessoa não fornecer elementos suficientes para esclarecê-la é ilegal, sob pena de afronta ao princípio da presunção da inocência.
Não se pode prender apenas para identificação pessoal.
Como bem esclarece Silvio César Arouk Gemaque “ninguém pode ser preso preventivamente apenas porque não tenha como comprovar sua identidade, sem que haja qualquer indício de prática de crime (...)”.
Finalizando, cumpre então dizer que a nova lei não pode autorizar a prisão de qualquer pessoa tão-somente pelo fato de a mesma não fornecer elementos para a sua devida identificação pessoal, somente se podendo aceitá-la desde que cabível, conforme hipóteses acima mencionadas.
Sob esse enfoque, deve-se analisar a real natureza do denominado “Protocolo do Serviço Especializado em Abordagem Social no âmbito da Proteção Social Especial de Média Complexidade” que está sendo implementado pelo Poder Executivo do Município do Rio de Janeiro.
Diz o citado documento (RESOLUÇÃO SMAS Nº 20 DE 27 DE MAIO DE 2011. Publicado no Diário Oficial Eletrônico do Município de 30.05.2011), no seu artigo 5º, inciso XV, in verbis:
“Art. 5º - São considerados procedimentos do Serviço Especializado em Abordagem Social, devendo ser realizados pelas equipes dos CREAS/Equipe Técnica/Equipe de Educadores:
(...)
XV – acompanhar todos os adolescentes abordados à Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente - DPCA, para verificação de existência de mandado de busca e apreensão e após acompanhá-los à Central de Recepção para acolhimento emergencial;”
(...)(grifei)
Cediço que a apreensão em flagrante do adolescente infrator, é medida drástica de privação de liberdade, em relação a qual devem ser rigorosamente observados os direitos e garantias previstos no ECA, sob pena de responsabilização.
Registre-se que, há que deixar claro que a criança (até 12 anos de idade incompletos) não será apreendida em flagrante pela polícia por prática de ato infracional, só o sendo o adolescente (de 12 até 18 anos de idade incompletos). Segundo o artigo 105 do ECA, ao ato infracional praticado por criança corresponderão as medidas previstas no art. 101 (medidas protetivas ou de proteção em espécie, a serem aplicas pelo Conselho Tutelar (art. 136, I) ou Juiz da Infância e Juventude (art. 262). Pelo ora exposto, depreende-se que, prima facie, inexistirá mandado de busca e apreensão expedido em desfavor de criança, logo, a dita abordagem para o efeito previsto no inciso acima referido, atinge ou deveria atingir, apenas o adolescente.
Por outro lado, nos termos do ECA (art. 106, caput), em norma adaptada do art. 5º, LXI, da Constituição, o adolescente somente será privado de sua liberdade em duas hipóteses: 1) em caso de flagrante de ato infracional ou 2) por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente.
Ora, se a apreensão ou a “abordagem” do adolescente não se deu em razão de flagrante de ato infracional, sua condução coercitiva à DPCA para verificação de existência de mandado de busca e apreensão, representa claro desrespeito às garantias constitucionais e infraconstitucionais.
A apreensão em flagrante do adolescente está regulada no ECA, mais precisamente, no Título VI: Do Acesso à Justiça, Capítulo III: Dos Procedimentos, Seção V: Da Apuração de Ato Infracional Atribuído a Adolescente, valendo salientar que aplicam-se subsidiariamente as normas gerais previstas no Código de Processo Penal e leis processuais esparsas pertinentes (cf. art. 152).
Assim, somente se houver dúvida sobre a idade real do adolescente, cuja identificação não foi obtida e que alega ser menor de 18 anos, como tal será tratado, inclusive na lavratura dos respectivos procedimentos, até esclarecimento através do órgão de identificação ou perícia médico-legal. A identificação compulsória, em consonância com o art. 5º, LVIII, da CF, ocorre nos termos do art. 109 do ECA que dispõe que: "O adolescente civilmente identificado não será submetido a identificação compulsória pelos órgãos policiais, de proteção e judiciais, salvo para efeito de confrontação, havendo dúvida fundada". (grifei) Realizada a identificação ao arrepio da hipótese legal, configura-se a responsabilidade penal do art. 232 do ECA.
Deve-se, portanto, evitar a vulgarização da apreensão do adolescente, estabelecendo-a como uma rotina de abordagem social, sob o falso aspecto de que se está cumprindo a norma legal. O Poder Público, como garantidor dos direitos dos adolescentes apreendidos, deve repelir qualquer atitude que vise a expor a imagem e identidade destes, ao contrário, deve pautar seus esforços e ações no sentido de priorizar a proteção integral a que fazem jus.
Destarte, o ECA constitui paradigma de enfrentamento proporcional e garantista das questões que envolvem a infância e juventude, e como tal, deve ser o instrumento legal utilizado por aqueles quem são incumbidos pela ordem constitucional de assegurar com absoluta prioridade os direitos das crianças e dos adolescentes.
Dessa forma, conclui-se que as ações de recolhimento de adolescentes realizadas ao arrepio do ECA com a aplicação subsidiária do parágrafo único do art. 313 do CPP, e a implementação do famigerado “Protocolo do Serviço Especializado em Abordagem Social”, em detrimento dos interesses superiores dos adolescentes é incabível, inconcebível e flagrantemente ilegal, uma vez que afrontam a doutrina da proteção integral e contrariam os princípios de interpretação insculpidos no art. 6º da Lei 8069/90 e no art. 227 da Constituição Federal.
__________
Brasil de Fato 07.06.2013
Drogas, equívocos e
soluções
Internações podem
ser úteis em situações de crise ou surto.
Nunca como solução. Todo drogado grita em outra linguagem: “Eu quero ser
amado!”
Frei Betto
O fenômeno das
drogas atinge todos nós. Não há exceção. Ainda que você não tenha um dependente
químico na família, o perigo reside no assalto. Nada pior do que ser assaltado
por uma pessoa drogada. Qualquer gesto, por mais inocente, pode representar na
cabeça dele uma reação que merece a morte.
Não é apenas nas
ruas que a existência de grande número de viciados preocupa. Em todas as
classes sociais há quem seja dependente de drogas. Não somente das proibidas,
como cocaína e ópio, mas também das que se podem adquirir em farmácias (com
receitas falsas) ou em hospitais (por desvio). Nos dois casos, uma grana extra
faz do funcionário um corrupto, e a droga de tarja preta chega fácil às mãos do
usuário.
Famílias de classes
média e alta conhecem a tortura do que significa ter um parente dependente
químico. Por sua vez, o poder público, incomodado com a paisagem urbana das
cracolândias, advoga a internação compulsória. Medida, aliás, adotada por
certas famílias com recursos para pagar internação em clínicas de (suposta)
recuperação.
Restam as perguntas
que não querem calar, mas que famílias e poder público insistem em abafar: o
que induz uma pessoa a consumir drogas? Qual a solução para o problema?
Se amanhã hóstia de
igreja, que é oferecida gratuitamente, virar grife, terá preço de mercado, como
jeans esfarrapados vendidos hoje em lojas sofisticadas. Ocorre que só quem comunga por razões
religiosas consome hóstias. Do mesmo modo, o narcotráfico – que deve ser
combatido com todo rigor – só existe porque há um amplo e voraz mercado de
consumo.
O que leva uma
pessoa a consumir drogas é a carência de autoestima. Sentindo-se inferior, desamada, pressionada
pelo estresse competitivo, ela encontra nas drogas o recurso para alterar seu
estado de consciência. Assim, se sente bem melhor do que ao enfrentar, de cuca
limpa, a realidade. Sobretudo com certas drogas, como a cocaína, que imprimem
sensação de onipotência.
Todo drogado é um
místico em potencial. Sabe que a felicidade é uma experiência da subjetividade.
Nada fora do ser humano é capaz de trazer felicidade. Dê a um dependente químico barras de ouro
para que abandone a droga e inicie vida nova. Ele logo tratará de vendê-las
para comprar drogas.
A droga decorre de
nossa escala de valores. Há nisso forte componente educativo. Se um jovem é
educado priorizando como valores riqueza, sucesso, poder e beleza, tende a se
tornar vulnerável às drogas. Elas funcionarão, periódica e provisoriamente,
como cobertor ao frio de suas ambições frustradas.
Alerto meus amigos
que têm filhos pequenos: deem a eles muita atenção e carinho, especialmente até
que completem 12 anos. Internações podem ser úteis em situações de crise ou
surto. Nunca como solução. Todo drogado
grita em outra linguagem: “Eu quero ser amado!”
E o poder público, o
que fazer diante desta epidemia química? Internação compulsória? Funciona
provisoriamente como limpeza da paisagem urbana. Em um país como o nosso, em que o sistema de
saúde é tão precário, difícil acreditar que existam clínicas de internação em
número suficiente para atender todos os dependentes e que tenham suficiente pedagogia
de recuperação.
A solução talvez não
seja fácil para aqueles que já romperam vínculos familiares. Contudo, há, sim,
solução preventiva se o poder público cumprir seu dever de assegurar a todas as
crianças e jovens educação de qualidade. Um jovem que sonha ser um profissional
competente jamais entrará nas drogas se tiver educação garantida, sobretudo
centrada em valores altruístas, solidários, espirituais.
Morei cinco anos em
favela. Aprendi que nenhum traficante deseja que seu filho siga os seus passos.
O sonho é que o filho seja doutor. Portanto, no dia em que o poder público
levar aos ninhos do tráfico mais escolas, música, teatro, academias de
ginástica, bibliotecas, e menos batidas policiais e balas “perdidas”, teremos
menos viciados e traficantes.
Portugal ensinou muito
ao Brasil: o idioma, o prazer do queijo, a religiosidade cristã, a arte sacra,
o gosto pela literatura etc. É hora de aprendermos também com Portugal como
lidar com as drogas. Lisboa é a capital europeia com menor índice de
homicídios.
Frei Betto é
escritor, autor do romance sobre drogas “O Vencedor” (Ática), entre outros
livros.
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Rev Época 03/06/2013
Os loucos, os normais e o Estado
Os “loucos” são
aqueles que dizem mais dos “normais” do que de si mesmos: o livro 'Holocausto
Brasileiro' conta um capítulo tão tenebroso quanto escondido da história
recente do Brasil – e que está longe de ser encerrado
Eliane Brum
Antônio Gomes da Silva soltou a voz ao empolgar-se
com a Banda da Polícia Militar. Ao seu lado, o funcionário levou um susto:
– Por que você nunca disse que falava?
E Antônio:
– Uai, mas ninguém nunca perguntou.
Ele tinha passado 21 anos como mudo na instituição
batizada de“Colônia”, considerada o maior hospício do Brasil, no pequeno
município mineiro de Barbacena. Em 21 anos, nenhum médico ou funcionário tinha
lhe perguntado nada. Aos 68 anos, Antônio ainda não sabe porque passou 34 anos
da vida num hospício, para onde foi despachado por um delegado de polícia.
“Cada um diz uma coisa”, conta. Ao deixar o cárcere para morar numa residência
terapêutica, em 2003, Antônio se abismou de que era possível acender e apagar a
luz, um poder que não sabia que alguém poderia ter. Fora dos muros do
manicômio, ele ainda sonha que está amarrado à cama, submetido a eletrochoques,
e acorda suando. A quem escuta a sua voz, ele diz: “Se existe um inferno, a
Colônia é esse lugar”.
Antônio ganhou nome, identidade e história em uma
série excepcional de reportagens. Publicada na Tribuna de Minas, de Juiz de
Fora (MG), o trabalho venceu o prêmio Esso de 2012 e foi ampliado para virar um
livro que chega às livrarias nesta semana. Na obra, a jornalista mineira
Daniela Arbex ilumina o que chamou de “holocausto brasileiro”: a morte de cerca
de 60 mil pessoas entre os muros da Colônia ao longo do século XX. Convidada
por Daniela para fazer o prefácio de seu livro, abri uma exceção e aceitei,
pela mesma razão que me move a escrever esta coluna: a importância do tema para
compreender nossa época.
Em Holocausto Brasileiro (Geração
Editorial), Daniela Arbex devolve aos corpos sem história, que eram os corpos
dos “loucos”, uma história que fala deles, mas fala mais de nós, os ditos
“normais”. Durante décadas, as pessoas eram enfiadas – em geral
compulsoriamente – dentro de um vagão de trem que as descarregava na Colônia.
Lá suas roupas eram arrancadas, seus cabelos raspados e, seus nomes, apagados.
Nus no corpo e na identidade, a humanidade sequestrada, homens, mulheres e até
mesmo crianças viravam "Ignorados de Tal".
![]() |
(Foto: Luiz Alfredo/FUNDAC) |
Qual é a história dos corpos sem história? Esta é a
questão que Daniela se propõe a responder pelo caminho da investigação
jornalística. Eram Antônio Gomes da Silva, o mudo que falava, Maria de Jesus,
encarcerada porque se sentia triste, Antônio da Silva, porque era epilético. A
estimativa é de que sete em cada dez pessoas internadas no hospício não tinham
diagnóstico de doença mental.
Quem eram eles, para além dos nomes apagados?
Epiléticos, alcoolistas, homossexuais, prostitutas, mendigos, militantes políticos,
gente que se rebelava, gente que se tornara incômoda para alguém com mais
poder. Eram meninas grávidas, violentadas por seus patrões, eram esposas
confinadas para que o marido pudesse morar com a amante, eram filhas de
fazendeiros que perderam a virgindade antes do casamento. Eram homens e
mulheres que haviam extraviado seus documentos. Alguns deles eram apenas
tímidos. Cerca de 30 eram crianças.
Qual era o destino de quem o Estado determinava que
não podia viver em sociedade, que era preciso encarcerar, ainda que não tivesse
cometido nenhum crime? Homens, mulheres e crianças às vezes comiam ratos,
bebiam esgoto ou urina, dormiam sobre capim, eram espancados e violados. Nas
noites geladas da Serra da Mantiqueira, eram atirados ao relento, nus ou
cobertos apenas por trapos. Instintivamente faziam um círculo compacto,
alternando os que ficavam no lado de fora e no de dentro, na tentativa de não
morrer. Faziam o que fazem os pinguins imperadores para sobreviver ao inverno
na Antártica e chocar seus ovos, como se viu num documentário que
comoveu milhões anos atrás. Os humanos da Colônia não comoviam ninguém, já
que sequer eram reconhecidos – nem como humanos nem como nada. Alguns não
alcançavam as manhãs.
Os pacientes da Colônia morriam de frio, de fome,
de doença. Morriam também de choque. Em alguns dias os eletrochoques eram
tantos e tão fortes que a sobrecarga derrubava a rede do município. Francisca Moreira
dos Reis, funcionária da cozinha, conta no livro sobre o dia em que disputou
uma vaga para atendente de enfermagem, em 1979. Ela e outras 20 mulheres foram
sorteadas para realizar uma sessão de eletrochoques nos pacientes masculinos do
Pavilhão Afonso Pena, escolhidos aleatoriamente para o “exercício”. As
candidatas à promoção cortavam um pedaço de cobertor e enchiam com ele a boca
da cobaia, amarrada à cama. Molhavam a testa, aproximavam os eletrodos das
têmporas e ligavam a engenhoca na voltagem de 110. Contavam até três e
aumentavam a carga para 120. A primeira vítima teve parada cardíaca e morreu na
hora. A segunda, um garoto apavorado aparentando menos de 20 anos, teve o mesmo
destino. Francisca, cuja vez de praticar ainda não tinha chegado, saiu
correndo.
Nos períodos de maior lotação, 16 pessoas morriam a
cada dia. Morriam de tudo – e também de invisibilidade. Ao morrer, davam lucro.
Entre 1969 e 1980, mais de 1.800 corpos de pacientes do manicômio foram
vendidos para 17 faculdades de medicina do país, sem que ninguém questionasse.
Quando houve excesso de cadáveres e o mercado encolheu, os corpos passaram a
ser decompostos em ácido, no pátio da Colônia, na frente dos pacientes ainda
vivos, para que as ossadas pudessem ser comercializadas. Dos homens e mulheres
do hospício, encarcerados pelo Estado e oficialmente sob sua proteção, até os
ossos se aproveitava.
Daniela Arbex salvou do esquecimento um capítulo
que muitos gostariam que seguisse nas sombras, até o total apagamento, no qual
parte dos protagonistas ainda está viva para refletir tanto sobre seus atos
quanto sobre suas omissões. Entrevistou mais de 100 pessoas, muitas delas nunca
tinham contado a sua história. Além de sobreviventes do holocausto manicomial,
Daniela escutou o testemunho de funcionários e de médicos. Um deles, Ronaldo
Simões Coelho, ligou para ela meses atrás: “Meu tempo de validade está
acabando. Não quero morrer sem ler seu livro”. No final dos anos 70, o psiquiatra
havia denunciado a Colônia e reivindicado sua extinção: “O que acontece na
Colônia é a desumanidade, a crueldade planejada. No hospício, tira-se o caráter
humano de uma pessoa, e ela deixa de ser gente. É permitido andar nu e comer
bosta, mas é proibido o protesto, qualquer que seja a sua forma”. Perdeu o
emprego.
Em 1979, o psiquiatra italiano Franco Basaglia,
pioneiro da luta pelo fim dos manicômios, esteve no Brasil e conheceu a
Colônia. Em seguida, chamou uma coletiva de imprensa, na qual afirmou: “Estive
hoje num campo de concentração nazista. Em lugar nenhum do mundo, presenciei
uma tragédia como essa”. Hoje, restam menos de 200 sobreviventes da Colônia.
Parte deles deverá ficar internada até a morte: são aqueles que foram tão
torturados por uma vida dentro do hospício que já não conseguem mais viver
fora. Parte foi transferida para residências terapêuticas para reaprender a
tomar posse de si mesma. Sônia Maria da Costa está entre os que conseguiram dar
o passo para além do cárcere. Às vezes ela coloca dois vestidos para compensar
a nudez de quase uma vida inteira.
Ao empreender uma investigação jornalística para
escrever este livro, Daniela leva adiante pelo menos três trabalhos
fundamentais de documentação contemporânea: as 300 fotos feitas pelo fotógrafo
Luiz Alfredo, para a revista O Cruzeiro, a primeira a denunciar a Colônia, em
1961(duas fotografias deste acervo são publicadas nesta coluna); a reportagem
transformada no livro Nos porões da loucura (Pasquim), do
jornalista Hiram Firmino; e o documentário Em nome da razão, de
Helvécio Ratton, filmado em 1979, que se tornou o símbolo da luta
antimanicomial.
Ao ler Holocausto Brasileiro – vida,
genocídio e 60 mil mortes no maior hospício do Brasil, é prioritário
resistir à tentação de acreditar que essa história acabou. Não acabou. Ainda
existem no Brasil instituições que mantêm situações semelhantes às da Colônia,
como algumas reportagens têm denunciado – ainda que não de forma maciça como no
passado muito, muito recente, e com nomes mais palatáveis do que “hospício” ou
“manicômio”. As conquistas produzidas pela luta antimanicomial, que botou fim
às situações mais bárbaras, estão hoje sob ameaça de retrocesso. É nesse
momento que entramos nós, a sociedade.
Se não quisermos continuar sendo cúmplices da
barbárie descrita por Daniela Arbex neste livro, é preciso refletir sobre o
nosso papel. É bastante óbvio perceber que fábricas de loucura como a Colônia
só persistiram por um século porque podiam contar com a cumplicidade da
sociedade. Mesmo quando o holocausto foi denunciado na revista de maior sucesso
da época, O Cruzeiro, no início dos anos 60, passaram-se décadas até que a
realidade do hospício começou – muito lentamente – a mudar. E outras gerações
foram aniquiladas entre seus muros. Como é possível? É possível porque a
sociedade prefere que seus indesejados sejam tirados da frente de seus olhos.
Não enxergar, para muitos, ainda é solução. E esta é uma das razões pelas quais
a tese do encarceramento sempre encontra ampla ressonância – e tem sido largamente
manipulada por políticos ao longo da história do Brasil, e inclusive hoje.
Tivesse a sociedade disposta a enxergar o que
estava estampado na revista preferida das famílias brasileiras, em 1961, e
muitas tragédias teriam sido impedidas. Como a de Débora Aparecida Soares. Ela
foi um dos cerca de 30 bebês roubados de suas mães. As mulheres trancafiadas na
Colônia conseguiam proteger sua gravidez passando fezes sobre a barriga, para
não serem tocadas. Mas, logo depois do parto, os bebês eram tirados de seus
braços e doados. Débora nasceu em 23 de agosto de 1984. Dez dias depois, foi
adotada por uma funcionária do hospício. A cada aniversário, sua mãe, Sueli
Aparecida Resende, epilética, perguntava a médicos e funcionários pela menina.
E repetia: “Uma mãe nunca se esquece da filha”.
Em 2005, aos 21 anos, Débora nada sabia sobre a sua
origem, mas não conseguia pertencer de fato à família de adoção. Tentou o
suicídio. Como os comprimidos demoravam a fazer efeito, dirigiu-se à estrada de
ferro, a mesma onde décadas antes havia passado o trem que levara sua mãe ao
inferno. Foi salva por uma amiga, que a carregou para o hospital no qual mais
uma coincidência seria descoberta tarde demais. Dois anos depois, Débora
iniciou uma jornada em busca da mãe. O que alcançou foi a insanidade da
engrenagem que mastigou suas vidas. Sua busca pela mãe é um dos momentos mais
trágicos e reveladores do livro, ao unir passado, presente e futuro no corpo em
movimento desta filha.
Há uma tendência no senso comum de considerar que categorias
como “loucos” são determinadas, imutáveis, indiscutíveis e, principalmente,
isentas dos humores do processo histórico. Não são. Cada sociedade cria seus
proscritos – uma construção cultural que varia conforme o momento e as
necessidades de quem detém o poder a cada época. Há um livro essencial sobre
este tema: Os infames da história – pobres, escravos e deficientes no
Brasil (Faperj / Lamparina). Na apresentação, a autora, a psicóloga Lilia
Ferreira Lobo, que escreve sob a inspiração de Michel Foucault, faz uma
descrição primorosa:
“Existências infames: sem notoriedade, obscuras
como milhões de outras que desapareceram e desaparecerão no tempo sem deixar
rastro – nenhuma nota de fama, nenhum feito de glória, nenhuma marca de
nascimento, apenas o infortúnio de vidas cinzentas para a história e que se
desvanecem nos registros porque ninguém as considera relevantes para serem
trazidas à luz. Nunca tiveram importância nos acontecimentos históricos, nunca
nenhuma transformação perpetrou-se por sua colaboração direta. Apenas algumas
vidas em meio a uma multidão de outras, igualmente infelizes, sem nenhum valor.
Porém, sua desventura, sua vilania, suas paixões, alvos ou não da violência
instituída, sua obstinação e sua resistência encontraram em algum momento quem
as vigiasse, quem as punisse, quem lhes ouvisse os gritos de horror, as canções
de lamento ou as manifestações de alegria.”
Aqueles que foram encarcerados dentro da Colônia e
de outros hospícios do Brasil, em algum momento perturbaram alguém ou a ordem
instituída com a sua voz – ou apenas com a sua mera existência. Em vez de serem
escutados no que tinham a dizer sobre a sociedade da qual faziam parte, foram
arrancados dela e trancafiados para morrer – primeiro pelo apagamento
simbólico, depois pela falência do corpo torturado. A pergunta que vale a pena
fazer neste momento, diante da história documentada pelo Holocausto
Brasileiro, de Daniela Arbex, é: quem são os proscritos de nossa época?
Vale a pena repetir que, na Colônia, sete em cada
dez não tinham diagnóstico de doença mental. O diagnóstico, além de não
representar nenhuma verdade absoluta sobre alguém, perde qualquer possível
valor num lugar como o hospício descrito. Sua única utilidade seria como
justificativa oficial para retirar pessoas incômodas do espaço público, aquelas
cujo sofrimento não poderia existir, violando neste ato seus direitos mais
básicos. Mas o fato de 70% dos internos não ter nem sequer um diagnóstico é um
dado importante para perceber com que desenvoltura os manicômios serviram – e
ainda servem – a um propósito não dito, mas largamente exercido pelo Estado: o
de ampliar as categorias das pessoas que não devem ser escutadas, calando todos
aqueles que dizem não apenas de si, mas de toda a sociedade.
Vivemos um momento histórico muito delicado, em que
está sendo determinado quais são os novos infames da história – e qual deverá
ser o seu destino. E também em que medida o Estado tem poder sobre os corpos.
Me arrisco a dizer que, se ontem os proscritos eram os epiléticos, as prostitutas,
os homossexuais, as meninas pobres e grávidas, as esposas insubmissas, hoje os
proscritos que se desenham no horizonte histórico são os drogados – e
especificamente os “craqueiros”. E o destino apresentado como solução tem sido,
de novo, a internação. Inclusive a compulsória. A tarja de dependência química
funciona como um silenciamento, já que não teriam nada a dizer nem sobre a
sociedade em que vivem, nem sobre sua própria vida. São apenas um corpo
sujeitado ao Estado para ser “curado”. E, para a maioria, nada melhor do que
tirá-los da frente – às vezes literalmente.
É bom aprender com a história. Holocausto
Brasileiro é um excelente começo para uma reflexão não apenas sobre o
passado, mas sobre o presente. Como afirma Daniela Arbex: “O descaso diante da
realidade nos transforma em prisioneiros dela. Ao ignorá-la, nos tornamos
cúmplices dos crimes que se repetem diariamente diante de nossos olhos.
Enquanto o silêncio acobertar a indiferença, a sociedade continuará avançando
em direção ao passado de barbárie. É tempo de escrever uma nova história e de
mudar o final”.
(Foto: Luiz
Alfredo/FUNDAC)
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Adital 16.01.13
Moradores de Rua: por uma política que liberta
Depois de 15 execuções de Moradores de Rua - em quatro meses: de
agosto a dezembro/12 - na cidade de Goiânia e depois da repercussão nacional
que estas execuções tiveram na mídia, o Estado de Goiás e a Prefeitura da
capital resolveram tomar algumas medidas, que, na realidade, são um paliativo e
não abrem caminhos para uma solução estrutural do problema. Só servem para dar
uma satisfação à sociedade, numa tentativa de "lavar a cara” do Estado e
da Prefeitura.
Sobre a política do Estado de Goiás "para” os
Moradores de Rua (reparem: "para” e não "com”), "o delegado
Edilson de Brito, superintendente de Direitos Humanos da Secretaria de
Segurança Pública e Justiça (SSPJ), diz que o objetivo é unir esforços para
resolver o problema dos Moradores de Rua na capital. Todavia, ele não convidou
representantes da Pastoral dos Povos de Rua e da Comissão de Direitos Humanos
da Assembleia Legislativa do Estado de Goiás (Alego), que criticam as medidas
anunciadas” (O Popular, 27/12/12, p. 5). Ora, superintendente, o senhor não
acha que são justamente aqueles/as que criticam que devem ser convidados em
primeiro lugar? Se criticam, é porque têm algo a contribuir.
A respeito da política de assistência e de defesa
social do Poder Público, Maria Madalena Patrício de Almeida - Agente da
Pastoral dos Povos de Rua (desde à época de Dom Fernando Gomes dos Santos) e
ligada ao Vicariato Oeste da Arquidiocese de Goiânia - diz: "É uma ação
tapa-buraco, emergencial e que não vai resolver nada. Estão fazendo isso,
agora, para dizer que estão fazendo alguma coisa. (...) Não se chega à
população de rua, dizendo que vai retirá-la de uma hora para outra, porque é
preciso confiança” (Ib.). E reafirma: "Para realizar um bom trabalho, é
necessário conquistar a confiança da população de rua, e isso não se faz de um
dia para outro” (Ib., 28/12/12, p. 9).
A chamada Operação Salus - deflagrada pela Polícia
Militar (PM) em conjunto com a Prefeitura de Goiânia há um ano (10 de
janeiro/12) - contava inicialmente com 71 policiais militares, 20 agentes da
Guarda Municipal e (reparem) 4 educadores sociais da Secretaria Municipal de
Assistência Social (Semas). Apesar de ter sido realizada também em outros bairros
da cidade - como no entorno da Igreja Matriz, no Setor Campinas e do Terminal
do Dergo, no Setor Aeroviário - a ação integrada da Operação Salus deu-se
principalmente na Região Central e serviu para dispersar, quase sempre com
violência, os Moradores de Rua e os usuários de drogas (Cf. Ib., 10/01/13, p.
4).
Artur (nome fictício), de 22 anos, diz: "Em um
ano, nossa situação piorou muito”. "Agora, pelo menos pararam de matar a
gente. Só vamos ver até quando não vai surgir outra vítima”. "Na verdade,
tem repressão todo dia, mas só que à noite, escondido, para ninguém ver” (Ib.).
Não há - como diz Maria Madalena - uma relação absoluta entre Moradores de Rua
e criminalidade. "Existe, sim, o problema das drogas, mas não pode ser uma
desculpa para violentar a população de rua. Quem banaliza a violência, promove
a morte” (Ib.).
A Operação Salus foi considerada ilegal pelo
Ministério Público Estadual (MPE) e pela Ordem dos Advogados do Brasil em Goiás
(OAB-GO).
Até o presente, em relação aos Moradores de Rua, o
Poder Público só soube usar violência, botar na cadeia e, na melhor das
hipóteses, oferecer internação. É por causa desse desrespeito, que "o
Fórum Goiano de Direitos Humanos vai propor, até a primeira quinzena de
janeiro/13, uma ação na Justiça, para responsabilizar o Estado e a Prefeitura
pelas 15 mortes de Moradores de Rua, em Goiânia” (Ib., 27/12/12, p. 5).
Quem sabe, embora as execuções sejam irreparáveis,
essa ação na Justiça leve o Poder Público a mudar sua política (ou melhor, sua
falta de política) a respeito dos Moradores de Rua, que - segundo uma pesquisa
feita por profissionais da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de Goiás -
são mais de mil pessoas na capital.
A questão dos Moradores de Rua deve ser uma
prioridade do Poder Público. São os excluídos dos excluídos. Não basta abrir
125 vagas em abrigos (Cf. Ib.) e instalar uma tenda para "seduzir” os
Moradores de Rua (Cf. Ib., 28/12/12, p. 9), mas é preciso tomar medidas
eficazes, a curto e longo prazo.
A curto prazo, em caráter emergencial, o Poder
Público, estadual e municipal, deve - como diz Maria Madalena - criar um espaço
para oferecer alimentação, dormitório e, sobretudo, segurança aos Moradores de
Rua, sem uso de álcool ou drogas, mas por onde eles possam transitar com
liberdade (Cf. Ib., 27/12/12, p. 5).
A longo prazo, o Poder Púbico, estadual e
municipal, deve formar uma equipe multiprofissional, bem preparada do ponto de
vista humano e técnico, e, gradativamente, implementar uma política baseada
numa pedagogia realmente libertadora, que leve os Moradores de Rua a serem
sujeitos de sua própria libertação e não meros objetos da ação assistencial
e/ou caritativa do Poder Público, das Igrejas e das chamadas "pessoas de
bem” de nossa sociedade excludente e hipócrita (que, às vezes, fazem alguns
atos de caridade - servindo de "tranquilizante de consciência” - para
encobrir a prática permanente da injustiça).
Para que essa política seja realmente libertadora,
deve ter como motivação fundamental o amor aos Moradores de Rua. Eles e elas
são pessoas humanas, são irmãos e irmãs nossos.
Entre outros que poderiam ser citados, lembro o
testemunho de Maria Madalena. Mesmo sabendo que ela, na sua modéstia, não quer
que o faça, é muito importante destacar o testemunho de Maria Madalena, que nos
edifica e serve de incentivo para todos nós. "Ninguém acende uma lâmpada
para colocá-la debaixo de uma vasilha, e sim para colocá-la no candeeiro, onde
ela brilha para todos os que estão em casa” (Mt 5, 15).
Maria Madalena - sem ter as condições materiais
para realizar grandes obras e fazendo todo dia a experiência de sua impotência
diante dos gravíssimos problemas dos Moradores de Rua - realiza o seu trabalho
de pastoral social com muito amor (que é o mais importante). Maria Madalena ama
os Moradores de Rua, sabe o nome deles, chama-os pelo nome, visita-os durante
as longas noites, convive e conversa com eles, escuta seus problemas, sofre com
eles e, de algum modo, "morre” com eles. Maria Madalena é amiga e irmã dos
Moradores de Rua, é confidente deles, é amada e respeitada por eles. Maria
Madalena é - podemos dizer - "um anjo de Deus” no meio dos Moradores de Rua.
Que todos e todas nós sejamos solidários/as com os
nossos irmãos e irmãs, Moradores de Rua, partilhando sua vida com amor e
lutando com eles por seus direitos.
Em tempo: Depois de terminado este artigo, a mídia
noticiou que, na madrugada do dia 16 deste mês de janeiro/13, mais dois
Moradores de Rua foram assassinados na grande Goiânia (um no município de
Goiânia e outro no município de Aparecida de Goiânia). Trata-se de um
verdadeiro massacre: 17 execuções em menos de cinco meses. Que barbárie! Diante
da incapacidade do Estado de oferecer segurança aos Moradores de Rua - uma
omissão criminosa do Poder Publico - torna-se necessária e urgente a
federalização da investigações. Lutemos por ela. Chega de matança!
_________
rev. Época 20.05.2013
Acordei doente mental
A quinta edição da
“Bíblia da Psiquiatria”, o DSM-5, transformou numa “anormalidade” ser “normal”
Eliane Brum
A poderosa American
Psychiatric Association (Associação Americana de Psiquiatria – APA) lançou
neste final de semana a nova edição do que é conhecido como a “Bíblia da
Psiquiatria”: o DSM-5. E, de imediato, virei doente mental. Não estou sozinha.
Está cada vez mais difícil não se encaixar em uma ou várias doenças do manual.
Se uma pesquisa já mostrou que quase metade dos adultos americanos tiveram pelo
menos um transtorno psiquiátrico durante a vida, alguns críticos renomados
desta quinta edição do manual têm afirmado que agora o número de pessoas com
doenças mentais vai se multiplicar. E assim poderemos chegar a um impasse
muito, mas muito fascinante, mas também muito perigoso: a psiquiatria
conseguiria a façanha de transformar a “normalidade” em “anormalidade”. O
“normal” seria ser “anormal”.
A nova edição do
Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (Manual Diagnóstico e
Estatístico de Transtornos Mentais) exibe mais de 300 patologias, distribuídas
por 947 páginas. Custa US$ 133,08 (com desconto) no anúncio de pré-venda no
site da Amazon. Descobri que sou doente mental ao conhecer apenas algumas das
novas modalidades, que tem sido apresentadas pela imprensa internacional. Tenho
quase todas. “Distúrbio de Hoarding”. Tenho. Caracteriza-se pela dificuldade
persistente de se desfazer de objetos ou de “lixo”, independentemente de seu
valor real. Sou assolada por uma enorme dificuldade de botar coisas fora, de
bloquinhos de entrevistas dos anos 90 a sapatos imprestáveis para o uso, o que
resulta em acúmulos de caixas pelo apartamento. Remédio pra mim. “Transtorno
Disfórico Pré-Menstrual”, que consiste numa TPM mais severa. Culpada. Qualquer
um que convive comigo está agora autorizado a me chamar de louca nas duas
semanas anteriores à menstruação. Remédio pra mim. “Transtorno de Compulsão Alimentar
Periódica”. A pessoa devora quantidades “excessivas” de comida num período
delimitado de até duas horas, pelo menos uma vez por semana, durante três meses
ou mais. Certeza que tenho. Bastaria me ver comendo feijão, quando chego a
cinco ou seis pratos fundo fácil. Mas, para não ter dúvida, devoro de uma a
duas latas de leite condensado por semana, em menos de duas horas, há décadas,
enquanto leio um livro igualmente delicioso, num ritual que eu chamava de
“momento de felicidade absoluta”, mas que, de fato, agora eu sei, é uma doença
mental. Em vez de leite condensado, remédio pra mim. Identifiquei outras
anomalias, mas fiquemos neste parágrafo gigante, para que os transtornos
psiquiátricos que me afetam não ocupem o texto inteiro.
Há uma novidade mais
interessante do que as doenças recém inventadas pela nova “Bíblia”. Seu
lançamento vem marcado por uma controvérsia sem precedentes. Se sempre houve
uma crítica contundente às edições anteriores, especialmente por parte de
psicólogos e psicanalistas, a quinta edição tem sido atacada com mais
ferocidade justamente por quem costumava não só defender o manual, como
participar de sua elaboração. Alguns nomes reluzentes da psiquiatria americana
estão, digamos, saltando do navio. Como não há cordeiros nesse campo, movido em
parte pelos bilhões de dólares da indústria farmacêutica, é legítimo perguntar:
perceberam que há abusos e estão fazendo uma “mea culpa” sincera antes que seja
tarde, ou estão vendo que o navio está adernando e querem salvar o seu nome, ou
trata-se de uma disputa interna de poder em que os participantes das edições
anteriores foram derrotados por outro grupo, ou tudo isso junto e mais alguma
coisa?
Não conheço os
labirintos da APA para alcançar a resposta, mas acredito que vale a pena
ficarmos atentos aos próximos capítulos. Por um motivo acima de qualquer
suspeita: o DSM influencia não só a saúde mental nos Estados Unidos, mas é o
manual utilizado pelos médicos em praticamente todos os países, pelo menos os
ocidentais, incluindo o Brasil. É também usado como referência no sistema de
classificação de doenças da Organização Mundial da Saúde (OMS). É, portanto, o
que define o que é ser “anormal” em nossa época – e este é um enorme poder.
Vale a pena sublinhar com tinta bem forte que, para cada nova patologia,
abre-se um novo mercado para a indústria farmacêutica. Esta, sim, nunca foi tão
feliz – e saudável.
O crítico mais
barulhento do DSM-5 parece ser o psiquiatra Allen Frances, que, vejam só, foi o
coordenador da quarta edição do manual, lançada em 1994. Professor emérito da
Universidade de Duke, ele tem um blog no Huffington Post que praticamente usa
apenas para detonar a nova Bíblia da Psiquiatria. Quando a versão final do
manual foi aprovada, enumerou o que considera as dez piores mudanças da quinta
edição, num texto iniciado com a seguinte frase: “Esse é o momento mais triste
nos meus 45 anos de carreira de estudo, prática e ensino da psiquiatria”. Em
carta ao The New York Times, afirmou: “As fronteiras da psiquiatria continuam a
se expandir, a esfera do normal está encolhendo”.
Entre suas críticas
mais contundentes está o fato de o DSM-5 ter transformado o que chamou de
“birra infantil” em doença mental. A nova patologia é chamada de “Transtorno
Disruptivo de Desregulação do Humor” e atingiria crianças e adolescentes que
apresentassem episódios frequentes de irritabilidade e descontrole emocional.
No que se refere à patologização da infância, o comentário mais incisivo de
Allen Frances talvez seja este: “Nós não temos ideia de como esses novos
diagnósticos não testados irão influenciar no dia a dia da prática médica, mas
meu medo é que isso irá exacerbar e não amenizar o já excessivo e inapropriado
uso de medicação em crianças. Durante as duas últimas décadas, a psiquiatria
infantil já provocou três modismos — triplicou o Transtorno de Déficit de
Atenção, aumentou em mais de 20 vezes o autismo e aumentou em 40 vezes o
transtorno bipolar na infância. Esse campo deveria sentir-se constrangido por
esse currículo lamentável e deveria engajar-se agora na tarefa crucial de
educar os profissionais e o público sobre a dificuldade de diagnosticar as
crianças com precisão e sobre os riscos de medicá-las em excesso. O DSM-5 não
deveria adicionar um novo transtorno com o potencial de resultar em um novo modismo
e no uso ainda mais inapropriado de medicamentos em crianças vulneráveis".
A epidemia de doenças
como TDAH (Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade) tem mobilizado
gestores de saúde pública, assustados com o excesso de diagnósticos e a suspeita
de uso abusivo de drogas como Ritalina, inclusive no Brasil. E motivado algumas
retratações por parte de psiquiatras que fizeram seu nome difundindo a doença.
Uma reportagem do The New York Times sobre o tema conta que o psiquiatra Ned
Hallowell, autor de best-sellers sobre TDAH, hoje arrepende-se de dizer aos
pais que medicamentos como Adderall e outros eram “mais seguros que Aspirina”.
Hallowell, agora mais comedido, afirma: “Arrependo-me da analogia e não direi
isso novamente”. E acrescenta: “Agora é o momento de chamar a atenção para os
perigos que podem estar associados a diagnósticos displicentes. Nós temos
crianças lá fora usando essas drogas como anabolizantes mentais – isso é
perigoso e eu odeio pensar que desempenhei um papel na criação desse problema”.
No DSM-5, a idade limite para o aparecimento dos primeiros sintomas de TDAH foi
esticada dos 7 anos, determinados na versão anterior, para 12 anos, aumentando
o temor de uma “hiperinflação de diagnósticos”.
Pensar sobre a
controvérsia gerada pelo nova “Bíblia da Psiquiatria” é pensar sobre algumas
construções constitutivas do período histórico que vivemos. Construções
culturais que dizem quem somos nós, os homens e mulheres dessa época. A começar
pelo fato de darmos a um grupo de psiquiatras o poder – incomensurável – de
definir o que é ser “normal”. E assim interferir direta e indiretamente na vida
de todos, assim como nas políticas governamentais de saúde pública, com
consequências e implicações que ainda precisam ser muito melhor analisadas e compreendidas.
Sem esquecer, em nenhum momento sequer, que a definição das doenças mentais
está intrinsicamente ligada a uma das indústrias mais lucrativas do mundo
atual.
Parte dos
organizadores não gosta que o manual seja chamado de “Bíblia”. Mas, de fato, é
o que ele tem sido, na medida em que uma parcela significativa dos psiquiatras
do mundo ocidental trata os verbetes como dogmas, alterando a vida de milhões
de pessoas a partir do que não deixa de ser um tipo de crença. Talvez seja em
parte por isso que o diretor do National Institute of Mental Health (Instituto
Nacional de Saúde Mental – NIMH), possivelmente a maior organização de pesquisa
em saúde mental do mundo, tenha anunciado o distanciamento da instituição das
categorias do DSM-5. Thomas Insel escreveu em seu blog que o DSM não é uma
Bíblia, mas no máximo um “dicionário”: “A fraqueza (do DSM) é sua falta de
fundamentação. Seus diagnósticos são baseados no consenso sobre grupos de
sintomas clínicos, não em qualquer avaliação objetiva em laboratório. (...) Os
pacientes com doenças mentais merecem algo melhor”. O NIMH iniciou um projeto
para a criação de um novo sistema de classificação, incorporando investigação
genética, imagens, ciência cognitiva e “outros níveis de informação” – o que
também deve gerar controvérsias.
A polêmica em torno
do DSM-5 é uma boa notícia. E torço para que seja apenas o início de um debate
sério e profundo, que vá muito além da medicina, da psicologia e da ciência.
“Há pelo menos 20 anos tem se tratado como doença mental quase todo tipo de
comportamento ou sentimento humano”, disse a psicóloga Paula Caplan à BBC
Brasil. Ela afirma ter participado por dois anos da elaboração da edição
anterior do manual, antes de abandoná-la por razões “éticas e profissionais”,
assim como por ter testemunhado “distorções em pesquisas”. Escreveu um livro
com o seguinte título: “Eles dizem que você é louco: como os psiquiatras mais
poderosos do mundo decidem quem é normal”.
A vida tornou-se uma
patologia. E tudo o que é da vida parece ter virado sintoma de uma doença
mental. Talvez o exemplo mais emblemático da quinta edição do manual seja a
forma de olhar para o luto. Agora, quem perder alguém que ama pode receber um
diagnóstico de depressão. Se a tristeza e outros sentimentos persistirem por mais
de duas semanas, há chances de que um médico passe a tratá-los como sintomas e
faça do luto um transtorno mental. Em vez de elaborar a perda – com espaço para
vivê-la e para, no tempo de cada um, dar um lugar para essa falta que permita
seguir vivendo –, a pessoa terá sua dor silenciada com drogas. É preciso se
espantar – e se espantar muito.
Vale a pena olhar
pelo avesso: quem são essas pessoas que acham que o “normal” é superar a perda
de uma mãe, de um pai, de um filho, de um companheiro rapidamente? Que tipo de
ser humano consegue essa proeza? Quem seríamos nós se precisássemos de apenas
duas semanas para elaborar a dor por algo dessa magnitude? Talvez o DSM-5 diga
mais dos psiquiatras que o organizaram do que dos pacientes.
Há ainda mais uma
consequência cruel, que pode provocar muito sofrimento. Ao transformar o que é
da vida em doença mental, os defensores dessa abordagem estão desamparando as
pessoas que realmente precisam da sua ajuda. Aquelas que efetivamente podem ser
beneficiadas por tratamento e por medicamentos. Se quase tudo é patologia,
torna-se cada vez mais difícil saber o que é, de fato, patologia. Por sorte, há
psiquiatras éticos e competentes que agem com consciência em seus consultórios.
Mas sempre foi difícil em qualquer área distinguir-se da manada – e mais ainda
nesta área, que envolve o assédio sedutor, lucrativo e persistente dos
laboratórios.
Se as consequências
não fossem tão nefastas, seria até interessante. Ao considerar que quase tudo é
“anormal”, os organizadores do manual poderiam estar chegando a uma concepção
filosófica bem libertadora. A de que, como diria Caetano Veloso, “de perto
ninguém é normal”. E não é mesmo, o que não significa que seja doente mental
por isso e tenha de se tornar um viciado em drogas legais para ser aceito. Só
se pode compreender as escolhas de alguém a partir do sentido que as pessoas
dão às suas escolhas. E não há dois sentidos iguais para a mesma escolha, na
medida em que não existem duas pessoas iguais. A beleza do humano é que aquilo
que nos une é justamente a diferença. Somos iguais porque somos diferentes.
Esse debate não
pertence apenas à medicina, à psicologia e à ciência, ou mesmo à economia e à
política. É preciso quebrar os monopólios sobre essa discussão, para que se
torne um debate no âmbito abrangente da cultura. É de compreender quem somos e
como chegamos até aqui que se trata. E também de quem queremos ser. A definição
do que é “normal” e “anormal” – ou a definição de que é preciso ter uma
definição – é uma construção cultural. E nos envolve a todos. Que cada vez mais
as definições sobre normalidade/anormalidade sejam monopólios da psiquiatria e
uma fonte bilionária de lucros para a indústria farmacêutica é um dado dos mais
relevantes – mas está longe de ser tudo.
E não, eu não acordei
doente mental. Só teria acordado se permitisse a uma Bíblia – e a pastores de
jaleco – determinar os sentidos que construo para a minha vida.
_____
A morte anunciada por
descaso do Governo do Estado com os adolescentes em conflito com a lei e seus
servidores.
Carta Anônima
Senhores,
Vou divulgar o fato
ocorrido no cai Belford Roxo, nesta sexta-feira (17/05), porém gostaria de
total sigilo sobre meu nome, por questões óbvias. Por volta das 18:30h de hoje,
os menores da galeria coletiva do CAI-Br, ao serem tirados de seus alojamentos
para o jantar, se amotinaram e partiram para cima dos funcionários, fazendo
dois colegas de reféns, tendo os amarrado, torturado e ameaçado de morte,
tomado as chaves da galeria de suas mãos e foram abrindo o restante da galeria,
em seguida dominaram e agrediram um outro agente que se encontrava do outro
lado da galeria, que também foi ferido e lhe foi tomado também as chaves da
galeria individual, tendo esses menores ido até a referida galeria e aberto
todos os alojamentos, no sentido de integrar os demais daquela galeria ao
motim.
Foram momentos de
muita tensão e dificuldade, e com a ajuda dos demais colegas do plantão e
diretores que ainda se encontravam na casa, fomos até o local e conseguimos
libertar os agentes e controlar a situação...
Os menores alegaram
que o motim teria sido motivado pelo fato de que na tarde de hoje, durante a
visita, um agente "teria" olhado para a mãe de um dos adolescente e
esses interpretaram que havia um certo desejo em seu olhar. Motivo pra lá de
ridículo, uma vez que o trabalho do agente é justamente observar, seja quem
quer que seja, seja ele menor ou visitante...
A viatura saiu por
volta das 22hs para o hospital, para serem atendidos e medicados os agentes e
posteriormente à 54ª DP, para o devido registro de ocorrência. Por favor,
precisamos do sindicato ao nosso lado, denunciando e cobrando posicionamentos
por parte da direção geral.
As condições de
trabalho estão desumanas, a superlotação é absurda (tínhamos 184 menores hoje
na casa), o risco é pra lá de iminente, a continuar assim teremos a morte de um
colega mais cedo ou mais tarde. Temos que forçar uma providência...."
_________
O Globo 20.05.2013
Prisão não resolve
Luiz Octávio Coimbra
O Instituto de
Pesquisa Econômica Aplicada informou recentemente que o aumento de 10% no
número de presos reduziria a taxa de homicídios no Brasil em 0.5%. A hipótese
do Ipea, interpretada de forma literal, é um absurdo. Usando os números
apresentados chegamos à conclusão de que para reduzir a taxa de mortes
intencionais no Brasil (27 por 100 mil habitantes) até chegar à média mundial
(7/100 mil) deveríamos inaugurar centenas de prisões e botar na cadeia mais de
dois milhões de brasileiros. Os países das Américas apresentam os maiores
índices de homicídio do mundo e as maiores taxas de encarceramento. A Comissão
Interamericana de Direitos Humanos informa em seu Relatório de 2012 que a
superpopulação carcerária em nossos países é uma consequência da falta de
infraestrutura adequada, implementação de políticas repressivas e uso excessivo
da prisão preventiva.
A grande maioria
(85%) dos países das Américas convive com este problema. Na América Latina e no
Caribe 50% dos presos estão na cadeia sem julgamento e sem pena estabelecida.
Muitos estão presos por crimes não violentos, incluindo consumo e tráfico de
pequenas quantidades de drogas. As prisões por crimes não violentos promovem o
antagonismo entre a polícia e as comunidades. A polícia passa a ser vista como
responsável por separar as famílias, enquanto os pequenos criminosos são
imediatamente substituídos nas ruas. O encarceramento atinge, principalmente,
os jovens e as minorias étnicas que vão cursar a universidade do crime e serão
capazes de cometer outros delitos enquanto estiverem encarcerados. Em todo o
mundo, mais de 10 milhões de pessoas estão presas. Em nosso continente, onde
habitam 14% da população mundial, temos 30% da população carcerária. Esses
dados indicam que não existe uma relação importante entre o crescimento das
taxas de encarceramento e os índices de criminalidade.
Por outro lado,
frente à repressão a criminalidade foge, como as baratas quando acendemos a
luz, reaparecendo onde melhor possa praticar o ilícito. Os homicídios
diminuíram na cidade do Rio de Janeiro, mas aumentaram nas cidades e estados
vizinhos; assim como os homicídios na Colômbia migraram para o México, a
América Central e Caribe. Estes estados exerceram suas políticas de mão de
ferro e tolerância zero como forma de combater o crime. Quem quer tomar
decisões políticas tem a obrigação de reconhecer a importância das evidências.
Até mesmo Che Guevara, quando ministro de Cuba, em 1961, afirmou que “não se
pode dirigir sem analisar, e não podemos analisar sem ter dados.” A citação do
Che faz ainda mais sentido nos dias de hoje, nas Américas, onde os dados sobre
as tendências do crime e sistemas judiciais se encontram embaralhados, as
prisões estão lotadas e o crime organizado multiplica os homicídios.
Luiz Octávio Coimbra
é coordenador do Observatório Hemisférico de Segurança da OEA.
____________
JB 11.05.2013
Cidadania das
crianças brasileiras
Siro Darlan*
A dignidade da pessoa
humana é um princípio presente em todas as Constituições civilizadas do mundo.
Não é diferente na nossa. O Brasil é signatário da Convenção das Nações Unidas
sobre os Direitos da Criança que define a maioridade aos 18 anos. Esse fato
torna imutável o artigo 226 da Constituição do Brasil.
Em 2010 foram
assassinadas no Brasil 8.600 crianças e adolescentes, fazendo com que o Brasil
ocupe a quarta posição com as maiores taxas de homicídios na faixa etária entre
zero e 18 anos no ranking das nações que mais matam crianças. Não houve
qualquer reação a esses números escandalosos. Bastou que um filho da classe
média fosse vítima de violência praticada por um adolescente para que voltasse
às manchetes a ladainha dos que desejam o aumento da população carcerária.
O que proponho é uma
agenda positiva. O Estatuto da Criança e do Adolescente deveria estar em vigor
há 22 anos, e não está porque a reação desses setores da sociedade que clamam
pela redução da responsabilidade penal não é a mesma diante da negação dos
direitos das crianças e dos adolescentes. Crianças respeitadas, bem
alimentadas, escolarizadas e bem tratadas não praticam violência contra o
próximo. Que sejam respeitadas e implementadas as normas do Estatuto da Criança
e do Adolescente. Que sejam responsabilizados os administradores que não
respeitarem a norma constitucional que determina que crianças e adolescentes
devam ter precedência de atendimento nas políticas sociais públicas e
destinação privilegiada de recursos públicos.
Atribuir-se maturidade
aos jovens em conflito com a lei chega às raias da irresponsabilidade quando o
CNJ apurou que quase 90% desses jovens abandonaram (ou foram abandonados) pela
escola e não completaram o ensino fundamental. As maiores vítimas de violência
no Brasil são as crianças e adolescentes. Em 2012, segundo relatório do Disque
100 foram registrados 12 mil casos de violência contra crianças e adolescentes,
enquanto, conforme dados do ISP, da Secretaria de Segurança do Rio de Janeiro,
apenas 8% dos registros policiais se referem a adolescentes como protagonistas
de violência.
Interessa apenas aos
negligentes administradores que não cumprem as leis que priorizam as crianças o
encarceramento precoce desses jovens porque assim escondem nas masmorras as
vergonhas de sua negligência administrativa.
É falso afirmar-se
que os adolescentes não são responsabilizados pelos atos infracionais que
cometem. Segundo o CNJ, existem 15 mil adolescentes cumprindo medidas
socioeducativas no Brasil, e essas medidas vão, segundo a gravidade dos atos
cometidos, de advertência a internação (prisão), o que pode variar em até três
anos. Ora, numa fase de plena energia, o enclausuramento de um jovem por um
período tão longo chega a ser mais gravoso do que a pena máxima de um adulto.
Levando-se em conta
que a finalidade da pena deve ser a reabilitação, a reforma, a correição,
visando o retorno à sociedade como um membro produtivo e reintegrado, o grande
infrator, mais uma vez, é o Estado brasileiro, uma vez que não cumpre as normas
legais que impõem que as unidades socioeducativas devam, em obediência aos
princípios constitucionais da brevidade, excepcionalidade e respeito à condição
peculiar de pessoa em desenvolvimento, privá-los da liberdade, obedecida
rigorosa separação por critérios de idade, compleição física, e gravidade da
infração, e nenhuma das unidades de cumprimento de medidas no Brasil cumpre a
lei.
A lei obriga ainda
que os jovens em conflito com a lei e em cumprimento da medida de internação
devem permanecer em unidades que ofereçam instalações físicas em condições
adequadas de habitabilidade, higiene, salubridade e segurança, além de
propiciar escolarização e profissionalização, atividades culturais, esportivas
e de lazer; preservar a identidade em ambiente de respeito e dignidade, em
pequenas unidades com grupos reduzidos. Nada disso é cumprido por nenhum estado
da Federação e, mais grave, o CNJ constatou abusos sexuais de adolescentes,
pelo menos 19 mortes foram registradas nas unidades, 28% tinham sofrido
agressões de funcionários. Em pelo menos 11 estados as unidades operam acima da
sua capacidade.
* Siro Darlan
Oliveira, desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro e membro da
Associação Juízes para a democracia.
sdarlan@tjrj.jus.br
____________
Banco de Injustiças
10.05.2013
A política de drogas
deve estar fundada nos direitos humanos.
Hoje tomarei a
liberdade de detalhar um tema que perpassou quase todas as discussões neste
impressionante e belo encontro, que, como dito no primeiro dia, é a verdadeira
cúpula que pode iluminar a Esplanada dos Ministérios neste momento."
Pronunciamento feito
pelo psicólogo Aldo Zaiden em sua participação no Congresso Internacional sobre
Drogas, que aconteceu nso dias 3,4 e 5 de maio, em Brasília.
Na imprensa, já recebemos alguns ataques, mas,
sobre isso, gostaria de citar uma frase que o Fernando Morais disse a um amigo
ofendido: se elogio em boca própria é vitupério, vitupério em certas bocas é
elogio.
Sigamos! Estas declarações reacionárias são prêmios
de direitos humanos às avessas. Meus cumprimentos a todos os lutadores
presentes.
Bom, para falar nesta mesa sobre direitos humanos
no contexto atual, na posição de governo, ou sobre como governos estão lidando
com isso e sem ser repetitivo, recorro a uma imagem que me veio há um tempo e
que tenho partilhado em alguns espaços: a de um touro em uma tourada.
O touro, este animal poderoso, morre em sua
batalha. Por quê? Morre porque se engana.
Ele pensa que o que está lhe atacando é a capa e
não o toureiro. E enquanto o touro dá suas investidas contra a capa, o toureiro
enfia espadas e facas no lombo daquele gigante.
Parece que é assim com a questão das drogas, em
muitos casos: ela vira a capa, a cortina que encobre a espada, a adaga da
pobreza, dos sofrimentos muito grandes enfrentados pelas pessoas, em especial
as mais pobres, mais vulneráveis, e que, portanto, têm os seus direitos mais
violados.
Nestas reflexões, a metáfora da capa e do touro tem
me retornado, me retomado e me possibilita deslocar o significante do boi
para lembrar, neste contexto em que também talvez tenhamos que voltar à
luta pela Democracia, de uma canção de Geraldo Vadré, brilhantemente
cantada nos duros anos da ditadura brasileira por Jair Rodrigues: Disparada – ”
porque gado a gente marca, tange, ferra, engorda e mata, mas com gente é
diferente…mas com gente é diferente…”
Como é de conhecimento público, este PL (7663/2010,
do deputado Osmar Terra (PMDB-RS)) não foi apoiado pelo Ministério
da Saúde e outros Ministérios relacionados, que também se
manifestaram oficialmente contrários por meio de notas técnicas. Contudo,
há também apoios no Governo.
Muita água vai rolar ainda no debate deste PL, e
será necessário o compromisso de todos para garantirmos os melhores e
possíveis resultados dessa batalha. Cada um usará dos recursos que
dispuser, dentro de suas possibilidades. A discussão ainda deverá ser
mantida dentro do Governo, na Câmara, no Senado e, especialmente, na
Sociedade.
Me pergunto, sim, se ainda consigo fazer essa
disputa dentro do Governo, se não devo sair para fazer o debate aberto. De
todo modo, precisamos conter o retrocesso e avançar nessa questão que
trata, na verdade, de Democracia.
* Aldo
Zaiden é psicologo, membro da Rede Pense Livre e um militante pela causa
dos direitos humanos e da luta antimanicomial.
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