Brasil de Fato 11.10.2013
“De 1500 para cá, tudo é feito na base da tortura”, diz relatora da ONU
Margarida Pressburguer, relatora do Subcomitê de
Prevenção à Tortura da ONU, repudia tortura contra Amarildo praticada na
Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) da Rocinha
Vivian Virissimo
Choques elétricos e asfixiamento com saco plástico
são as causas apontadas no inquérito que apurou a morte de Amarildo. O ajudante
de pedreiro, morador da Rocinha, sofreu por minutos ou horas as torturas
praticadas por policiais militares. A prática dos supostos torturadores da
Unidade da Polícia Pacificadora (UPP) teve a “pior repercussão possível” no
Comitê de Combate à Tortura da Organização das Nações Unidas (ONU). A informação
é da relatora do Subcomitê, a advogada Margarida Pressburguer, 69 anos.
Em entrevista, Margarida defendeu que os policiais
militares indiciados no caso sejam encaminhados para a prisão comum. “Por que o
crime deles é menor?”, questionou. Segundo ela, somente a desmilitarização da
polícia poderá resultar em mudanças significativas nas forças de segurança.
“Enquanto não desmilitarizar a polícia, vamos continuar vendo essas barbáries
com polícia militar jogando bombas em professores” , criticou.
Brasil de Fato – Como
repercutiu no Subcomitê da ONU a notícia de que a “polícia pacificadora” é
adepta da prática de tortura?
Margarida Pressburguer – A repercussão é
a pior possível. Ainda não estive com eles, nossa próxima sessão será no dia 15
de novembro, em Genebra. Teremos uma reunião conjunta do comitê, do subcomitê e
com o relator especial da ONU sobre a tortura, Juan Méndez. Só aí teremos uma
posição sobre o que tem acontecido no Brasil. Esse grito “Cadê Amarildo” não
reflete apenas este caso. Amarildo é um desaparecido da democracia. Falamos dos
desaparecidos da ditadura nas Comissões da Verdade, mas na democracia temos
muitos casos. São exemplos: João Antônio Carelli, da Fiocruz; Patrícia Amieiro,
engenheira da Esso; a irmã do Victor Belford e centenas de outros.
Essa truculência
pode ser atribuída a quais fatores?
A Polícia Militar (PM) aprende na mesma cartilha
que formava as forças armadas da ditadura. Ou seja, eles não têm a menor noção
que a obrigação da PM é defender a população. Quando eles enfrentam uma
manifestação, eles entendem que o povo é inimigo. Estou envolvida com esse tema
há 50 anos e nada mudou.
Nove PMs e o Major Edson
Santos, suspeitos de terem assassinado Amarildo, foram presos preventivamente.
Isso basta?
É uma prisão muito confortável. Eles estão num
Batalhão especial, no meio dos colegas. Esta é uma situação totalmente
diferente do sistema prisional brasileiro. Destaco que crime de tortura é um
crime de lesa-humanidade. Esses dez, ainda que estejam em prisão preventiva,
deveriam estar na prisão comum. Por que o crime deles é menor?
Amarildo não teve direito
de defesa e foi julgado e condenado pelos policiais da UPP. Como a senhora
avalia isso?
O que aconteceu com o Amarildo foi um crime
hediondo. Houve tortura psicológica contra a família e contra as testemunhas
que foram subornadas. Também houve uma acusação de que Amarildo seria um
elemento do tráfico. E se ainda o fosse, Amarildo teria de ter sido preso,
julgado e, se fosse condenado, cumprisse pena e não morto e torturado.
As declarações do
secretário José Mariano Beltrame e do governador Sérgio Cabral minimizaram a
tortura contra Amarildo. Em que medida esse posicionamento contribuiu para a
impunidade?
Cada vez mais [contribuem para impunidade]. Desde
que Beltrame assumiu, nós temos presenciado chacinas do Complexo do Alemão e da
Providência, também teve o caso do menino que foi metralhado na Tijuca. E é
sempre a mesma história: inicialmente nega e depois muda o comandante. Isso
torna a situação cada vez pior. Não se mudam práticas sem mudar a mentalidade.
Enquanto os comandantes acharem que a população é inimiga, não tem jeito.
Em outras ocasiões a
senhora afirmou que existe uma “cultura da tortura” no país. Por quê?
No momento em que o primeiro português aportou em
praias brasileiras, ele torturou o índio. De 1500 pra cá, tudo é feito na base
da tortura. Na escravidão, os negros eram torturados até a morte. Nos anos
1960, a ditadura civil-militar fez a mesma coisa. Enquanto não desmilitarizar a
polícia, vamos continuar vendo essas barbáries: PMs jogando bombas em
professores, os heróis que se predispõem a educar.
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UNICAMP 05/08/2013
A "psiquiatrização da infância", normatização do comportamento e os riscos de 'genocídio do futuro'
Para uns, ela é uma
droga perversa. Para outros, a 'tábua de salvação'. Trata-se
da ritalina, o metilfenidato, da família das anfetaminas, prescrita para
adultos e crianças portadores de transtorno dedeficit de
atenção e hiperatividade (TDAH). Teria o objetivo de melhorar a concentração,
diminuir o cansaço e acumular mais informação em menos tempo. Esse fármaco
desapareceu das prateleiras brasileiras há poucos meses (e já começou a
voltar), trazendo instabilidade principalmente aos pais, pela incerteza do
consumo pelos filhos. Ocorre que essa droga pode trazer dependência
química, pois tem o mesmo mecanismo de ação da cocaína, sendo
classificada pela Drug Enforcement Administration como um narcótico. No caso de
consumo pela criança, que tem seu organismo ainda em fase de formação, a
ritalina vem sendo indicada de maneira indiscriminada, sem o devido rigor
no diagnóstico. Tanto que, no momento, o país se desponta na segunda posição
mundial de consumo da droga, figurando apenas atrás dos Estados Unidos.
Como acontece com boa parte dos medicamentos da família das anfetaminas, a
ritalina 'chafurda' a ilegalidade, com jovens procurando a euforia química
e o emagrecimento sem dispor de receita médica. Fala-se muito que, se
não fizer o tratamento com a ritalina, o paciente se tornará um delinquente.
"Mas nenhum dado permite dizer isso. Então não tem comprovação de que
funciona. Ao contrário: não funciona", critica a pediatra Maria Aparecida
Affonso Moysés, professora titular do Departamento de Pediatria
da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp. “A gente corre o risco
de fazer um genocídio do futuro. Mais vale a orientação familiar”, encoraja a
pediatra, que concedeu entrevista, a seguir, ao Portal
Unicamp.
Portal Unicamp – Há pouco
tempo, faltou distribuição de ritalina no mercado brasileiro. Como essa lacuna
foi sentida?
Cida Moysés – Não sabemos
verdadeiramente o motivo de faltar o medicamento, mas isso criou uma
instabilidade nas pessoas. As famílias ficaram muito preocupadas e entraram em
pânico, com medo de que os filhos ficassem sem esse fornecimento. Isso foi
sentido de um modo muito mais intenso do que com outros medicamentos que de
fato demonstram que sua interrupção seria mais complicada que a ritalina. São
os casos dos medicamentos para diabetes ou hipertensão. Apesar de não
conhecermos a razão dessa falta do medicamento, sabemos das estratégias de
mercado para outros produtos como o açúcar e o café que faltam no
supermercado e, por isso, também para os medicamentos que faltam na
farmácia. Quando somem das prateleiras, eles criam angústia. No entanto, em
geral, retornam mais tarde. E mais caros, é óbvio.
Portal Unicamp – O que é
a ritalina? Como ela age?
Cida Moysés – A ritalina,
assim como o concerta (que tem a mesma substância da ritalina – o
metilfenidato, é um estimulante do sistema nervoso central - SNC), tem o mesmo
mecanismo de ação das anfetaminas e da cocaína, bem como de qualquer outro estimulante.
Ela aumenta a concentração de dopaminas (neurotransmissor associado ao prazer)
nas sinapses, mas não em níveis fisiológicos. É certo que os prazeres da vida
também fazem elevar um pouco a dopamina, porém durante um pequeno período
de tempo. Contudo, o metilfenidato aumenta muito mais. Assim, os prazeres da
vida não conseguem competir com essa elevação. A única coisa que dá prazer, que
acalma, é mais um outro comprimido de metilfenidato, de anfetamina. Esse é o
mecanismo clássico da dependência química. É também o que faz a cocaína.
Cida Moysés – Para quem
indica, é nos casos com diagnóstico de TDAH. Eu não indico. Para esses
médicos, entendo que é necessário traçar uma relação custo-benefício:
quanto ganho com esse tratamento em termos de vantagens e de desvantagens.
Sabe-se que é uma droga que possui inúmeras reações adversas, como qualquer
droga psicoativa. Considero extremamente complicado usar uma droga com essas
reações para melhorar o comportamento de uma criança. Qual é o preço disso?
Portal Unicamp – Quais
são os sintomas principais?
Cida Moysés – As reações
adversas estão em todo o organismo e, no sistema nervoso central então, são
inúmeras. Isso é mencionado em qualquer livro de Farmacologia. A lista de
sintomas é enorme. Se a criança já desenvolveu dependência química, ela pode
enfrentar a crise de abstinência. Também pode apresentar surtos de insônia,
sonolência, piora na atenção e na cognição, surtos psicóticos, alucinações e
correm o risco de cometer até o suicídio. São dados registrados no Food and Drug Administration (FDA). São relatos
espontâneos feitos por médicos. Não é algo desprezível. Além disso, aparecem
outros sintomas como cefaleia, tontura e efeito zombie
like, em que a pessoa fica quimicamente contida em si mesma.
Portal Unicamp – Não é
pouca coisa...
Cida Moysés – Ocorre que isso
não é efeito terapêutico. É reação adversa, sinal de toxicidade. Além disso, no
sistema cardiovascular é possível ter hipertensão, taquicardia, arritmia e até
parada cardíaca. No sistema gastrointestinal, quem já tomou remédio para
emagrecer conhece bem essas reações: boca seca, falta de apetite, dor no
estômago. A droga interfere em todo o sistema endócrino, que interfere na
hipófise. Altera a secreção de hormônios sexuais e diminui a secreção do
hormônio de crescimento. Logo, as crianças ficam mais baixas e também essa
droga age no peso. Verificando tudo isso, a relação de custo-benefício não
vale a pena. Não indico metilfenidato para as crianças. Se não indico para um
neto, uma criança da família, não indico para uma outra criança.
Portal Unicamp – Criança
não comportada é um problema social?
Cida Moysés – Está se
tornando. E não vai se resolver colocando um diagnóstico de uma doença
neurológica ou neuropsiquiátrica e administrando um psicotrópico para uma
criança.
Portal Unicamp – Qual
seria o tratamento então?
Cida Moysés – Um levantamento
de 2011, publicado pelo equivalente ao Ministério da Saúde nos Estados Unidos,
envolve uma pesquisa feita pelo Centro de Medicina baseado em Evidências da
Universidade de McMaster, no Canadá, que analisou todas as publicações de 1980
a 2010 sobre o tratamento de TDAH. O primeiro dado interessante foi que, dos
dez mil trabalhos que provaram que o metilfenidato funciona, é seguro, apenas
12 foram considerados publicações científicas. Todo o resto foi descartado por
não preencher os critérios de cientificidade. Esse é um aspecto muito
importante. Dos 12 trabalhos restantes, o que eles encontraram foi que a orientação
familiar tem alta evidência de bons resultados, e o medicamento tem baixa
evidência. Isso não quer dizer que a família seja culpada. É preciso orientá-la
como lidar com essa criança. Além disso, os dados dessa pesquisa sobre
rendimento escolar foram inconclusivos, assim como não há nenhum dado que
permita dizer que melhora o prognóstico em longo prazo. Fala-se muito que, se a
criança não for tratada, vai se tornar uma dependente química ou delinquente.
Nenhum dado permite dizer isso. Então não tem comprovação de que funciona. Ao
contrário: não funciona. E o que está acontecendo é que o diagnóstico de TDAH
está sendo feito em uma porcentagem muito grande de crianças, de forma
indiscriminada.
Portal Unicamp – Dê um
exemplo.
Cida Moysés – Quando se fala
em 5% a 10% de pessoas com determinado problema, o conhecimento médico exige
que se assuma que isso é um produto social, e não uma doença inata,
neurológica, como seria o TDAH, e muito menos genética. Não dá para pensar em
porcentagens. Em Medicina, sobre doenças desse tipo fala-se em 1 para 100 mil
ou em 1 para 1 milhão. Então, é algo socialmente que vem se produzindo. Quando
digo isso, de novo, não estou dizendo que a família é a culpada. Pelo
contrário, é um modo de viver que estamos produzindo.
Portal Unicamp – Quem
está sendo medicado?
Cida Moysés – São as crianças
questionadoras (que não se submetem facilmente às regras) e aquelas que sonham,
têm fantasias, utopias e que ‘viajam’. Com isso, o que está se abortando? São
os questionamentos e as utopias. Só vivemos hoje num mundo diferente de 1.000
anos atrás porque muita gente questionou, sonhou e lutou por um mundo diferente
e pelas utopias. Quando impedimos isso quimicamente, segundo a frase de um
psiquiatra uruguaio, “a gente corre o risco de estar fazendo um genocídio do
futuro”. Estamos dificultando, senão impedindo, a construção de futuros
diferentes e mundos diferentes. E isso é terrível.
Portal Unicamp – Na
França, o TDAH é praticamente zero. A que se deve isso?
Cida Moysés – Isso se deve a
valores culturais, fundamentalmente.
Portal Unicamp – Isso em
países desenvolvidos?
Cida Moysés – Não
necessariamente. Ninguém pode dizer que os EUA não sejam desenvolvidos. Não
obstante, o país é o primeiro grande consumidor mundial da ritalina, da onde
irradia tudo. O Brasil vem logo em seguida, como segundo consumidor mundial. Ao
contrário do que se propaga, de que a taxa de prevalência é a mesma em todos os
lugares, isso não é verdade. Varia de 0,1% a 20%, conforme o estudo da
Universidade McMaster do Canadá. Varia de acordo com valores culturais, região
geográfica, época e conforme o profissional que está avaliando. Há trabalhos
que mostram, por exemplo, que médicas diagnosticam mais TDAH em meninos e que
médicos mais em meninas, provavelmente por uma falta de identificação. Alguns
trabalhos mostram que crianças pobres têm mais chances de receber o
diagnóstico. Estamos falando de uma Era dos Transtornos – uma epidemia dos
diagnósticos. A França tem uma resistência muito grande a isso por uma questão
de formação de médicos, de valores da sociedade. Lá eles têm um movimento muito
grande desencadeado por médicos, muitos deles psiquiatras, que se chama collectif pas de 0 de conduite. Esse movimento
surgiu como reação à lei que propunha avaliar o comportamento de todas as
crianças até três anos de idade. Era um modelo que pegava especificamente
pobres e imigrantes. O movimento conseguiu derrubar tal lei.
Portal Unicamp – Existe
no Brasil alternativa diferente da medicalização, da visão organicista?
Cida Moysés – Temos uma
articulação mais recente que é o Fórum sobre Medicalização da Educação e da
Sociedade, o qual eu e o Departamento de Pediatria da FCM-Unicamp integramos. O
nosso Departamento é o seu membro fundador, tendo mais de 40 entidades
acadêmicas profissionais e mais de 3.000 pessoas físicas no Brasil, que estão
buscando difundir as críticas que existem na literatura científica sobre isso.
Além do mais, procuramos construir outros modos de acolher e de atender as necessidades
das famílias dos jovens que vivenciam e sofrem com esses processos de
medicalização. Em novembro, a Unicamp promoverá um Fórum Permanente sobre
Medicalização da Vida, que irá abordar essas questões de medicalização e de
patologização da vida. Todos estão convidados.
_____________
IHU 23.05.2013
“A maior parte das
gangues nasce nos colégios”
Mauro Cerbino*
Entrevistadora:
Natalia Aruguete
O que representa o
lugar da gangue para jovens que estão desprovidos de todos os tipos de
direitos?

Onde existe, a
gangue representa – para alguns jovens – um modo de vida, um modo de existência
e reprodução social. Além disso, é uma forma de se proteger de uma insegurança
que é prévia a estas organizações. Essa insegurança se deve ao fato de que
alguns bairros não são aptos para a vida, porque foram abandonados pelo mundo
adulto, que decidiu ter um projeto de vida que não leva em conta a construção
do laço social, mas se conforma a viver fechado – tanto no lar, como no
trabalho – ou, inclusive, a levantar grades na precária construção de seu lar,
com o desejo de ter a sensação de estar seguro. Nesses bairros “dormitório” é
muito difícil que a vida social seja possível: não há pessoas nas ruas porque o
bairro não tem lugares para a diversão, o espairecimento, a reprodução social.
E os jovens e adolescentes precisam de maiores condições de sociabilidade,
desse trânsito pelo espaço público, uma vida social mais ampla do que aquela
que os adultos gostariam de ter. Em muitas cidades latino-americanas, os jovens
buscam um modo para se apropriar – ou reapropriar-se antropologicamente –
destes espaços.
Você estabelece uma
relação entre o imperativo da violência e o respeito. Que significado tem o
respeito, em uma organização violenta?
O respeito é o que
estrutura as relações, principalmente, as relações intra e inter gangue. É
homem de respeito aquele que se faz respeitar por aquele que está fora da
gangue, em outra gangue, ou por outros jovens que podem estar ao redor.
Fazer-se respeitar supõe que o outro tenha medo de você, que entenda e possa
baixar a cabeça quando um jovem passa por aí. Será uma pessoa de respeito
aquele que conseguir causar medo nos outros. É uma dinâmica de olhares para
baixo, de submissão, de interiorização, de superioridade de um para com o
outro. Estas questões, que saem dos relatos dos garotos, surgem da falta de
condições que permitam a reprodução social. A condição de respeito substitui
estes vazios, porque constrói o reconhecimento. É o oposto ao respeito da forma
como o concebemos, a partir da educação cívica.
É o oposto porque a
única possibilidade de respeito passa pela violência?
E pelo medo. O
respeito é um dos elementos presentes na modernidade, uma condição que permite
que nos reconheçamos e possamos estar juntos. Neste caso, baseia-se no medo e
não porque seja experimentada a necessidade de que para estar juntos precisamos
nos respeitar. São sujeitos que sofreram uma falta de respeito.
Ao analisar as
gangues juvenis, por que você inclui uma “dimensão coletiva da violência”?
É uma dinâmica que
se estabelece num horizonte de destinos de masculinidade hegemônica, outro
elemento do horizonte simbólico discursivo que dá sentido à ação da gangue,
junto com o respeito. Esse horizonte da masculinidade hegemônica é o que os
adolescentes e jovens, sobretudo de certos setores populares, vão aprendendo em
suas famílias e no colégio, assim como em outros espaços onde permanentemente
estão expostos. Para ser homem é preciso ser homens de respeito. Torna-se homem
a partir do momento em que se inferioriza o outro. A masculinidade é um discurso
potentíssimo, que não apenas tem a ver com a questão do varão, mas que sustenta
uma concepção das relações sociais. Nós a chamamos de hegemônica porque está
presente em muitos estratos.
E a mulher?
A mulher fica
subsumida, comporta-se de modo semelhante, embora com uma contradição, porque é
um sujeito portador de outra dimensão sexual e, portanto, muitas vezes, as
mulheres são objeto de estupro, de alguma forma tolerado. Entretanto, ao mesmo
tempo, as mulheres se comportam como os homens: podem ser protagonistas das
mesmas cenas de violência das quais os homens são portadores ou protagonistas.
Por terem que se afirmar como parte da gangue, elas se comportam de modo
semelhante aos homens. Aí há outro aspecto sexual que é bastante sórdido.
Qual?
Há estupros; as
mulheres são mulheres do líder..., situações deste tipo. Porém, as mulheres
reproduzem o mesmo discurso que os varões, que, além disso, é sustentado pelas
mães. Lembro que a mãe de um dos garotos me disse: “Eu estranhei muito quando
me disseram que meu filho era dos... porque ele não sabe brigar”. Essa ideia da
necessidade de saber brigar provém da mãe e não somente do pai.
Que análise você faz
a respeito da lógica das políticas públicas, do papel do Estado, frente à
violência juvenil?
Em primeiro lugar,
não há política pública de juventude, ao menos no Equador. E não houve política
pública de jovens migrantes na Espanha. No caso da Espanha, sob a raiz de uma
norma de reagrupação familiar, os adolescentes e os jovens do Equador iam se
reagrupar com seus pais, e isso era tudo em termos de marco normativo. Há
normas que facilitam que as famílias se reagrupem, mas, em seguida, o Estado é
incapaz de pensar o que fazer com estes jovens. Pode oferecer-lhes uma
possibilidade de entrar no colégio, mas, ali, encontram uma montanha de
problemas e discriminações. Não há uma política de integração.
Quais consequências,
essa ausência de política de integração, acarretam?
O prevalecimento das
relações cara a cara, altamente discriminatórias. A reprodução de todo tipo de
discriminação e humilhação. Portanto, muitos destes jovens – também na Espanha,
onde se esperaria que estivessem em outras condições – talvez, estejam nas
mesmas ou piores condições que deixaram no Equador. E quando sabem que existe
uma organização que se reúne, que fala o mesmo idioma e que, além disso, fala
forte, não fala “suavezinho”...
O que significa “não
falar ‘suavezinho’”?
Significa que não
fala submisso como a mãe, que já assumiu a inferioridade porque tem um projeto
de vida diferente, uma estratégia de vida diferente que a permite processar a
submissão. Eles não têm um projeto de vida, já que muitas vezes foram se
agrupando sem ter o desejo de concebê-lo. Nesses espaços, encontram novamente a
reprodução, a proteção, o sentido da vida, o gozo, a diversão.
Na relação
gangues-Estado, como você percebe a responsabilidade legal que o Estado
deposita nestes jovens e adolescentes?
Retomo a ideia de
que não há uma política pública. No Equador, há uma lei de juventude, mas nunca
se efetivou regulamentos e dispositivos para a sua aplicação. Portanto, não há
uma política pública para a prevenção de um fenômeno como este. O que o Estado
faz para prevenir o bullying? (N. do R: o bullying é um ato de conduta
agressiva para, deliberadamente, causar dano a outra pessoa, de maneira física
ou psicológica.) É uma coisa absurda em nossos colégios, há jovens que
cometeram suicídio em razão de reiterados assédios ou linchamentos. Aquele que
aguenta é o jovem que não quer entrar na dinâmica do mais forte, estando à
margem disso, converte-se no objeto daqueles que sempre almejam ser os mais
fortes, que necessitam identificar alguém como frágil. E o que o Estado faz? A
maior parte das gangues, no Equador ou em outras partes do mundo, nasce nos
colégios. O sistema educativo não apenas é incapaz de gerar condições para uma
maior circulação, uma melhor articulação da população, como também se
transforma no oposto: faz com que os jovens se sintam continuamente humilhados,
muitas vezes, o professor contribui para isso.
Como?
No Equador, nós
temos vários exemplos de professores que abonam esse horizonte de masculinidade
hegemônica. Não há uma política pública, exceto normativa repressiva, uma ação
policial e punitiva terrível... A inconsistência do Estado de bem-estar, muitas
vezes, vem compensada pela condição abusiva da polícia, que é a única cara
visível de um Estado inconsistente. Estes jovens populares se sentem atraídos
em ser policiais, porque isso faria com que se mostrassem fortes, porém, por
sua vez, borram-se de medo diante da polícia: possuem esse amor-ódio. Eu
poderia contar histórias dos mais obstinados líderes que me chamavam, à noite,
para que lhes dessem uma mão, pois um policial estava levando-os. Choravam como
crianças.
Em seu livro “El
lugar de la violencia”, você destaca que os meios de comunicação são
“reprodutores de um discurso maior”. Que papel cumprem os meios de comunicação
no relato deste tipo de violência? Acredita que “reprodutores” é a expressão
mais adequada?
Claro que os meios
de comunicação não são apenas reprodutores, também, são os que produzem o
discurso maior, que pretende ser objetivo e inquestionável. Tanto na Espanha
como no Equador, a única visão que o comum das pessoas leigas possui é a visão
dos meios de comunicação... Os meios de comunicação se encarregam de
representar simbolicamente e alimentar o imaginário dos cidadãos, fazendo o
“trabalho sujo” por conta do Estado. (sorri). As violências grupais juvenis não
podem ser assimiladas à violência criminal das gangues organizadas..., não, ao
menos, em um primeiro momento, depois, algumas destas gangues podem se
transformar em outra coisa, como ser capturadas por gangues organizadas, mas
esse é outro fenômeno.
Insisto com a
pergunta, os meios de comunicação apenas reproduzem esse discurso ou disputam
poder simbólico com outros atores sociais?
Os meios de
comunicação trabalham diretamente com a constituição da opinião pública, são
alimentadores dos funcionários, aqueles que dão as chaves interpretativas da
realidade. Encarregam-se de sustentar a tese de que estes grupos são os que se
desviaram da norma... Encarregam-se de desresponsabilizar o Estado e dizer:
“não, o que ocorre é que os jovens são assim, naturalmente violentos”.
Essencializam a condição juvenil, e com isso poupam um grande trabalho ao
Estado.
Como?
Eles conseguem fazer
com que a opinião pública não veja o Estado como um dos maiores responsáveis, e
também ao conjunto da sociedade, por não questioná-lo, por ser passiva frente a
estes assuntos. Efetivamente, insensibilizam a opinião pública, já que por esse
processo de naturalização parece óbvio que os jovens atuam do modo que atuam.
Contribuem para invisibilizar as condições que tornam possível esse fenômeno.
Não contextualizam, não historicizam, não fazem uma investigação com fontes
primárias, mas recorrem ao “monofontismo” (usar uma única fonte de informação)
da polícia, tribunais de justiça, atores que também fazem o trabalho sujo por
conta do Estado.
O que é que os meios
de comunicação encobrem, a partir de uma “notícia dramatizada” (onde há bons e
maus, ganhadores e perdedores, como num conto), quando fazem a cobertura deste
tipo de fenômeno?
Cobrem com a
objetividade dos fatos... Isso não existe. E encobrem as condições de
possibilidade da existência deste fenômeno. Tornam os jovens os únicos
responsáveis de sua ação, quando evidentemente a responsabilidade é, no mínimo,
compartilhada. Além disso, contribuem – e isso é o pior – para piorar as
coisas, pois apresentam estes como sujeitos descartáveis.
Em seu livro, você
sustenta que os meios de comunicação “não possuem agenda própria” e relacionou
isto com a perspectiva daqueles especialistas que olham os meios de comunicação
como “atores políticos”. No contexto atual, latino-americano, onde se nota uma
relação conflitiva entre meios de comunicação e governos, como se constrói essa
agenda sobre a violência juvenil, a partir dos meios de comunicação que já não
se aliam tão claramente com a palavra do Estado?
Agora que você
apresenta isso, ocorre-me pensar que, há mais de cinco anos, os meios de
comunicação no Equador já não se ocupam deste fenômeno. Ou o fenômeno
desapareceu ou perdeu o interesse, pois os meios de comunicação já não possuem
no Estado, nem no governo, uma fonte para fazer o trabalho sujo.
No entanto, dependem
exclusivamente dessa fonte para fazer o “trabalho sujo”?
Sim, porque dependem
da polícia. Em Madri, tive uma contenda com um repórter do jornal El País
porque ele queria se desresponsabilizar do que esse jornal tinha escrito sobre
os Latin Kings, dizendo que no fundo eles apenas reproduziam a polícia e que,
em última instância, o problema estava na fonte. Você se dá conta da
barbaridade que ele dizia? Um jornalista pode afirmar que o problema está na
fonte e não nele? A primeira coisa que me ocorre lhe dizer é: “muda de fonte”,
“diversifica”. Havia um policial que lhe disse: “Eu sou fonte, mas você está
escrevendo a nota”. Foi uma cena emblemática. Às vezes, os meios de comunicação
servem para sustentar algum interesse da parte de um partido político, que
aproveita essa representação midiática da violência juvenil para justificar a
“necessidade” de uma ação repressiva. No Equador, existe uma discussão sobre a
redução da maioridade penal para os 16 anos. Precisam preparar a opinião
pública para assimilá-la e, em seguida, justificar certo tipo de legislação, o
aumento de guardas particulares.
Por que estudar os
Latin Kings? Que traços os faziam interessantes para você?
Que pergunta boa!
Esta organização nasceu nos anos 1940, em Chicago, formada por imigrantes,
principalmente, porto-riquenhos, cubanos e mexicanos. A partir dos anos 1980,
começam a se definir como uma nação. Essa definição de nação sempre me atraiu
muito.
Por quê?
Após refletir muito,
comecei a ver que efetivamente era uma organização, que possuía tal envergadura
na quantidade de membros e que ia configurando uma nação dentro de outra, uma
nação no lugar de outra. Isto é o que (Erving) Goffman maravilhosamente define
como a transformação do estigma em emblema, quando fala da carreira do
criminoso. Estes grupos são objetos de constante humilhação e estigmatização.
São tidos como pessoas desadaptadas e é provável que acabem realizando isto do
modo mais espetacular possível. É como se dissessem: “Se o outro me condena a
ser criminoso, serei o melhor criminoso possível”. Então, o estigma de ser
latinos se converte no emblema de ser latinos, mas, reis. Há coroas e há
superioridades e beneficência. Essa coisa da nação me chamava muito a atenção,
pois todas as gangues possuem um nome, mas eles se chamavam nação.
Quais elementos
faziam deles uma nação?
Eles têm uma
Constituição, e possuem elementos que criam uma nação, talvez, não o idioma,
mas, sim, uma regra, um vocabulário... Dois reis que não se conhecem,
reconhecem-se pelo modo como atuam ou por um gesto que os tornam reconhecidos.
Eu estive muito perto deles. Uma vez, em Madri, ao final de uma conversa e
vendo que compartilhávamos alguns saberes, esse garoto me perguntou: “Mas, você
que chapa tem? Que King é?”. É claro que eu não tenho nenhuma (chapa), mas
sabia muito em razão da minha pesquisa. Contudo, eles se reconhecem, possuem um
universo simbólico compartilhado, algo que tem a ver com o linguístico, o
gestual. Compartilham minimamente um território que se translocaliza. Outro
elemento que me atraia muito é o caráter transnacional: são uma nação, mas são
transnacionais. Eles dizem que começa a existir a nação quando se coloca a
bandeira. Eles têm o ato de constituição da nação no lugar em que se coloca a
bandeira. Terão esta data para recordá-la, da mesma forma como são recordados
os acontecimentos que fundam a nação. Era tão potente essa nação, com uma
Constituição, manifestos, propósitos e leis, que era capaz de se refundar cada
vez que fosse necessário. Não eram as pequenas gangues de 20 ou 25 pessoas,
como as estudadas há muitos anos. Há pessoas que hoje possuem 40 anos e
continuam sendo Latin King... porque eles dizem que um rei é para sempre,
embora já não sejam um King.
*É doutor em
Antropologia Urbana pela Universitat Rovira i Virgili. Coordena o Programa de
Estudos Internacionais e Comunicação, da Faculdade Latino-Americana de Ciências
Sociais – Equador, e dirige a revista Iconos, que a própria faculdade edita. Há
anos, pesquisa assuntos sobre organizações juvenis de rua, juventudes e
violência. Como diretor do Observatório dos Meios de Comunicação, além do
discurso informativo que se constrói sobre este fenômeno, estuda a relação
entre governos e meios de comunicação e, neste marco, a midiatização da
política.
Sua pesquisa se
configurou nos cursos e seminários conferidos em diversas universidades da
América Latina e Europa e em numerosos livros e artigos como “El lugar de la violência”
(Taurus-Flacso), “Más allá de las pandillas, violencias, juventudes y
resistencias en un mundo globalizado” (Flacso) e “Jóvenes en la calle, cultura
y conflicto” (Anthropos), entre outros.
É italiano, mas
desenvolveu sua principal trajetória acadêmica no Equador. Aí, dedicou-se a
pesquisar a origem das gangues juvenis, as motivações para a sua formação e as
relações que estabelecem com o Estado. Aqui, esmiúça suas conclusões e adverte
sobre o papel dos meios de comunicação.
___________
O Globo 22.05.2013
Jessé Souza*
No livro sobre os "batalhadores", você
argumenta que os milhões de brasileiros que ascenderam socialmente nos últimos
anos não configuram uma "nova classe média", e sim uma "nova
classe trabalhadora". Por quê? O que separa esse estrato social da classe
média?
JESSÉ SOUZA: O debate público brasileiro sobre a
“nova classe média” é dominado por um debate pobre e superficial, que associa
pertencimento de classe à renda. No entanto, a mera classificação econômica e
estatística por faixas de renda não explica rigorosamente nada. Mas ela dá a
“impressão” que explica. Passa-se a ilusão de que se organiza uma realidade
confusa. Mas o que ajuda saber que tantas pessoas estão num certo patamar e
outras em outro patamar de renda? O que isso diz dessas pessoas? Pessoas com
renda semelhante podem ser muito diferentes entre si. Basta comparar um
trabalhador da FIAT em Betim com um Professor universitário em início de
carreira que ganham salários semelhantes. Todas as escolhas da vida dessas
pessoas – a não ser a conversa sobre o futebol no domingo - tendem a ser
muitíssimo diferentes entre si. O que importa saber para que se conheça uma
“classe social” é o “como”, em cada caso, as pessoas são produzidas como seres
humanos com capacidades distintas e acesso distinto a todos os bens e recursos
sociais escassos em competição na luta social. Não existe questão mais
importante que esta, porque é a questão que nos move a todos durante as vinte e
quatro horas de cada dia. Associar classe à renda é fazer de conta que se fala
de classe quando se escondem, na verdade, todas as questões que esclarecem a
gênese social dos privilégios injustos.
Daí que tenhamos tentado corrigir e criticar a
expressão “nova classe média”, construída segundo este tipo de classificação
superficial da realidade. Na verdade, a “classe média verdadeira” é uma das
classes dominantes em sociedades modernas como a brasileira, porque é
constituída pelo acesso privilegiado a um recurso social escasso de extrema
importância: o capital cultural nas suas mais diversas formas. Seja sob a forma
de capital cultural “técnico”, como no caso da “tropa de choque” do capital,
formada pelo exército de advogados, engenheiros, administradores, economistas
etc., seja sob a forma de capital cultural “literário” dos professores,
jornalistas, publicitários etc., este tipo de conhecimento é fundamental para a
reprodução e legitimação tanto do mercado, quanto do Estado, ou seja, para a
reprodução e legitimação da sociedade moderna como um todo. A incorporação
deste tipo de capital cultural, por sua vez, exige “tempo livre” que só as
camadas privilegiadas possuem. É esse fundamento social “invisível” que irá
permitir mais tarde tanto a remuneração, quanto o prestígio social atrelado a
este tipo de trabalho prestigioso e reconhecido.
A vida dos “batalhadores” é completamente outra.
Ela é marcada pela ausência dos “privilégios de nascimento” que caracterizam as
classes médias e altas. Como lhes faltam tanto o capital cultural altamente
valorizado das classes médias “verdadeiras”, quanto o capital econômico das
classes altas, eles compensam essa falta com extraordinário esforço pessoal,
dupla jornada de trabalho e aceitação de todo tipo de super exploração da mão
de obra. Essa é uma condução de vida típica das classes trabalhadoras, daí nossa
hipótese de trabalho desenvolvida no livro que nega e critica o conceito de
“nova classe média” e tenta construir um conceito de “nova classe
trabalhadora”, produto das novas condições da divisão de trabalho internacional
e da nova dominância global do capital financeiro Esses fatores fazem com que
essa nova classe não tenha nada de “especificamente brasileira”, já que países
como China, Índia e grande parte do sudeste asiático também devem boa parte de
seu dinamismo atual a este mesmo fenômeno.
Apesar disso, hoje no Brasil tanto o mercado quanto
o governo enfatizam a ideia de uma "nova classe média". A que você
atribui essa ênfase?
JESSÉ SOUZA: A ênfase é perfeitamente
compreensível. Esse estrato social é o grande responsável pelo extraordinário
desenvolvimento econômico brasileiro dos últimos anos que se deu,
fundamentalmente, pela perspectiva do mercado interno. Foi esse estrato que
dinamizou a economia brasileira na última década e estimulou o mercado de
consumo de bens duráveis antes de impossível acesso a grandes parcelas da
população. Politicamente, também, ele é a maior novidade no cenário brasileiro,
ainda que seja uma classe muito heterogênea, com distinções regionais
importantes e abrangendo desde pequenos empresários até trabalhadores super explorados
e sem direitos sociais.
Nosso estudo procurou dar conta tanto do elemento
de “chance” e de “novidade bem-vinda”, que são inegáveis, como também do “outro
lado” desse fenômeno: o da dor e do sofrimento silenciados por leituras
triunfalistas e apologéticas da realidade. Também foi nossa preocupação
criticar as leituras que já partem do “preconceito de classe” – como na crítica
a outras pesquisas que realizamos no nosso livro - e, claro, só confirmam
aquilo que já procuravam.
Você dedicou seus últimos dois livros ao estudo da
"ralé brasileira" e dos "batalhadores brasileiros". Como
você define esses dois grupos sociais e o que os diferencia?
JESSÉ SOUZA: Na verdade, as classes sociais se
formam pela herança afetiva e emocional, passada de pais para filhos no
interior dos lares, de modo muitas vezes implícito, não consciente e
inarticulado. São esses estímulos, que são muito distintos dependendo do
ambiente familiar típico de cada classe social, que irão construir formas
específicas de agir, reagir, refletir, perceber e se comportar no mundo. E é
precisamente a presença ou falta de certos estímulos, por exemplo, estímulos
para a disciplina, para o autocontrole, para o pensamento prospectivo, para a
concentração, que irá definir as classes vencedoras e perdedoras antes mesmo do
jogo da competição social se iniciar de forma mais explícita.
Estudando empiricamente a “ralé”, como chamo,
provocativamente, essa classe de infelizes e abandonados, num país que nega,
esconde e eufemiza todos os seus conflitos sociais, percebemos que existem
classes sociais, como a “ralé”, por exemplo, com dificuldades de concentração,
por falta de exemplos e estímulos à leitura e à imaginação, e por conta disso
já chegam “derrotadas” na escola e depois, com mais razão ainda, no mercado de
trabalho.
Como a “ralé” não realiza, em medida suficiente, as
pré-condições emocionais e cognitivas que permitem a “incorporação” de capital
cultural ou técnico valioso, ela é jogada nas “franjas” do mercado competitivo.
Assim sendo, ela passa a ser “vendida” como mero “corpo”, ou seja, não como
corpo “perpassado” por conhecimento útil e, conseqüentemente, desejável, mas
como mera “energia muscular” para serviços sujos, pesados ou humilhantes que as
classes superiores evitam desempenhar. Por conta disso, a “ralé” é explorada
pelas classes média e alta que, dispondo dessa mão de obra de pouco valor – os
homens da ralé fazem o serviço pesado e sujo; enquanto as mulheres o trabalho
doméstico e sexual para as classes superiores - podem dedicar seu tempo a
trabalhos e estudos de retorno muito mais alto. Essa é uma “luta de classes”
sobre a qual nunca se fala no Brasil. E ainda nos assustamos com os “quebra
quebras” populares ou quando o ressentimento não articulado de classe humilhada
nos assalta na rua.
A precariedade econômica e existencial da ralé
implica a criação de uma classe que tende a se eternizar, posto que condenada
ao “aqui e agora”. É uma classe literalmente “sem futuro”, pois jamais “planeja
o futuro” dada a “urgência” da sobrevivência no presente. Nas classes
“incluídas”, inclusive os “batalhadores”, ao contrário, o futuro é mais
importante que o presente, implicando o cálculo e o planejamento da condução da
vida que permite que se “tenha futuro”. A “ralé” nunca foi, de resto, sequer “percebida”
como uma “classe social” entre nós. Seja no debate intelectual, seja no debate
público ela é sempre percebida apenas fragmentariamente na luta entre bandido e
polícia no Rio de Janeiro, na inoperância do SUS e da escola pública, no
gargalo da mão de obra sem qualificação, nos quebra-quebras populares etc. É a
existência dessa classe de abandonados sociais, no entanto, mais que qualquer
outra coisa, que marca o atraso social e político brasileiro e o que, na
verdade, explica nosso atraso relativo em relação aos países mais avançados em
todas as dimensões da vida social.
Os “batalhadores”, como uma classe intermediária
entre a “ralé” e as classes superiores, não possuem o acesso privilegiado aos
capitais impessoais que são as bases do prestígio social das classes média e
alta, o que faz com que a incorporação dos capitais econômico e cultural seja,
nessa classe, restrito e limitado. São pessoas que fizeram escola pública ou
universidade particular (no melhor dos casos), tendo de trabalhar paralelamente,
muitas vezes, em mais de um emprego. Muitos trabalham entre 10 a 14 h por dia e
não possuem o recurso mais típico das classes do privilégio que é o “tempo
livre” para incorporação de conhecimento valorizado e altamente concorrido. Por
outro lado, no entanto, esses “batalhadores” não se confundem com a “ralé” de
desclassificados sociais entre nós porque possuem sólida “ética do trabalho
duro”, que implica incorporação de disposições como disciplina, autocontrole e
pensamento prospectivo. Muitos tiveram também famílias estruturadas – que são
minoria na “ralé” - e apoio afetivo dos pais, ou, alternativamente, tiveram a
possibilidade de uma socialização religiosa tardia – um pentecostalismo mais
racional e menos “mágico” (a magia é a esperança dos que não tem futuro, diria
o sociólogo francês Pierre Bourdieu) que o da “ralé”-, que lhes possibilitaram
acreditar em si mesmos e seguir adiante apesar dos inúmeros obstáculos.
Em "A ralé brasileira", você critica o
fetiche "economicista" na interpretação da sociedade brasileira.
Quais são os problemas dessa interpretação?
JESSÉ SOUZA: O mecanismo complexo que explica a
existência das classes sociais é o segredo mais bem guardado de todas as
sociedades modernas. Não só no Brasil, mas também na França, na Alemanha e nos
EUA imagina-se, tanto no discurso de senso comum, quanto em boa parte daquilo
que se passa por “ciência”, que se está em uma “sociedade de indivíduos”
percebidos como “sem passado” e, portanto, “livres”, autônomos e, no jargão de
hoje, “empreendedores de si mesmos”. É assim que as sociedades modernas se
justificam como “igualitárias” e “justas”. Esse é, no fundo, um tipo de
legitimação muito semelhante à de qualquer sociedade do passado, que legitimava
privilégios ao dizer que estes eram “vontade de Deus”. Hoje a única efetiva
diferença é que se legitima o mundo social ao se esconder a “origem social” de
todo “privilégio individual”.
O pertencimento de classe tem que ser
cuidadosamente escondido, posto que é ele que decide, em grande medida, o
acesso privilegiado, desigual e injusto, a qualquer tipo de bem ou recurso
escasso. Esses bens e recursos, que não precisam ser materiais como um carro ou
uma casa, mas também podem ser, por exemplo, o tipo de mulher ou de homem que
se consegue ter ou o tipo de reconhecimento social ou prestígio que se desfruta
em todas as dimensões da vida. Tudo isso é definido, com alta probabilidade
pelo menos e na imensa maioria dos casos, pela herança de classe- pela
presença ou ausência relativa de capital cultural e capital econômico – na qual
se é socializado.
A classe social, adequadamente discutida, permite
vislumbrar a construção diferencial dos indivíduos pelas heranças típicas de
cada classe, quebrando a ilusão do “homem universal”, como se os pressupostos
para a competição social por recursos escassos fossem os mesmos para todos. Por
conta disso, os interesses da reprodução de todo tipo de privilégio precisam ou
tornar inofensivo ou ridicularizar o conceito de classe. Torna-se o conceito de
classe inofensivo quando se liga, por exemplo, pertencimento de classe à renda,
como vemos acontecer em todos os jornais e em todo o debate acadêmico e público
brasileiro. O que essa associação arbitrária esconde é todo processo
diferencial de gênese emocional, afetiva e cognitiva das classes e de sua
reprodução no tempo, que permite reproduzir todo tipo de privilégio injusto
indefinidamente. É essa “fabricação social” de indivíduos com capacidades
diferenciais a partir do pertencimento de classe que tem que ser cuidadosamente
escondida para que se possa falar mais tarde do “milagre do mérito individual”
como justificativa de todo tipo de privilegio social.
Os discursos "eufóricos" sobre a ascensão
econômica na base da sociedade podem acentuar o que você chama, em outro livro,
de "invisibilidade da desigualdade brasileira"? Como se dá esse
fenômeno da "invisibilidade da desigualdade"?
JESSÉ SOUZA: Como dito acima, a “invisibilidade da
desigualdade” moderna exige que a realidade social, pretensamente justa e
igualitária, seja compreendida de modo parcial e distorcido. A associação de
classe à renda cumpre essa função à perfeição, posto que se traveste ainda de
“conhecimento científico rigoroso”, pelo uso da estatística e do “número”,
símbolos perfeitos, em uma sociedade que confunde informação com reflexão, da
ciência transformada em fetiche. Mas entre nós esse discurso economicista só
logra ser tão hegemônico, porque o próprio debate intelectual brasileiro
dominante é, de fato, singularmente conservador e superficial. Esse ponto
merece destaque, porque o debate intelectual é a primeira trincheira do debate
político, dado que todas as idéias políticas hegemônicas dos últimos 200 anos
foram, em primeiro lugar, formuladas por intelectuais antes de ganharem as
universidades, a mídia, a esfera pública e o público em geral. O grande engano
da ciência social ainda dominante no Brasil é imaginar o nosso país como uma sociedade
pré-moderna, cuja hierarquia social seria fundada no capital social de relações
pessoais ou no famoso “quem indica” do “jeitinho brasileiro”.
Essa é uma imagem infantil, superficial e
conservadora, porque esconde toda a questão do acesso diferencial aos capitais
impessoais, ou seja, aos capitais econômico e cultural, os quais dependem da
herança de classe, e induz a pensar a desigualdade e a injustiça social
brasileiras como atributos de um suposto “patrimonialismo” e “personalismo” de
origem supostamente portuguesa e pré-moderna. Relações pessoais são muito
importantes – na perspectiva do sucesso individual - no Brasil, na Alemanha,
nos EUA e seria também em Marte ou Júpiter se lá houvesse gente e capitalismo.
Relações pessoais podem ajudar a se conseguir um bom emprego no Brasil, nos EUA
ou na China, mas não explicam por que as classes sociais se reproduzem,há tanto
tempo, de modo tão desigual e injusto nem aqui nem em nenhum outro lugar do
mundo moderno. A tal “sociologia do jeitinho brasileiro”, tão dominante nas
nossas universidades, na mídia e nos botecos do Brasil inteiro, e que reduz um
mundo complexo a relações pessoais e de amizade, é uma das causas principais da
pobreza de nosso debate público, que jamais chega às causas reais de nossos problemas.
Na verdade, se pensarmos duas vezes, perceberemos,
facilmente, que só tem acesso a “relações pessoais vantajosas” quem já possui
capital econômico ou cultural em alguma medida. Ou o leitor conhece alguém com
“ligações importantes” sem, antes, já ter tido capital econômico ou cultural? O
olhar concentrado no capital social, como base da hierarquia social, “esconde”
a questão mais importante – posto que condiciona a própria existência do “quem
indica” como “capital” valioso – do acesso diferencial, determinado pela
posição de classe, aos capitais “impessoais” econômico e cultural. Como a
questão principal da “origem de toda desigualdade” é deixada às sombras, então
se pode imaginar os problemas brasileiros como sendo produzidos pela “corrupção
do Estado” – sem dúvida nociva, importante de ser combatida, mas longe de ser
uma especificidade brasileira –, enquanto o mercado é percebido como “reino de
todas as virtudes”.
A falsa oposição mercado virtuoso vs Estado
corrupto ocupa o lugar de todos os conflitos sociais silenciados há séculos
entre nós - alguns deles discutidos acima - e é a maior contribuição dos nossos
intelectuais à invisibilidade da desigualdade brasileira. Irritante, no
entanto, é que, quem repete essa visão frágil e conservadora de nossa realidade
“tira onda” de crítico, como se estivesse desvelando e denunciando aspectos
incômodos da nossa realidade. É isso que confere toda a “sofisticação, aura de
virtude e poder de convencimento” a um tipo de interpretação anacrônica, frágil
e em completo desacordo com o dinamismo de diversos aspectos – o mercado
competitivo, por exemplo, que pressupõe a maior importância dos critérios
impessoais sobre os pessoais para que exista uma economia dinâmica - da
modernização brasileira.
Nos últimos anos, o estrato emergente da sociedade
brasileira se transformou num "capital político" disputado por todos
os partidos. Como ele pode obter participação política real?
JESSÉ SOUZA: Qualquer ação “articulada” ou com
“consciência de classe” deste setor da nossa sociedade é improvável, dada sua
enorme heterogeneidade. Mas é típico da esfera política – ainda que isto seja
muito raro na realidade – transformar o possível em realidade, o inarticulado
em discurso explícito e o sofrimento em esperança. Esta é a grandeza do debate
político, infelizmente reduzido, quase sempre, à pura manipulação emotiva dos
sonhos, medos, desejos e ressentimentos espalhados pela sociedade.
Dependendo de um contexto mais ou menos favorável
para a articulação política de interesses reais, estão abertas, a meu ver, duas
alternativas possíveis: a primeira é essa classe ser cooptada pelo discurso e
prática individualista e socialmente irresponsável que caracterizam boa parte
das classes dominantes no Brasil; a segunda alternativa é essa classe assumir
um papel de protagonista e inspirar, pelo seu exemplo social, a efetiva
redenção daquela classe social de humilhados sociais que chamo,
provocativamente, de “ralé”. Muitos dos batalhadores que entrevistamos vinham,
inclusive, da própria “ralé”, mostrando que as fronteiras entre as classes são
fluidas e que não existem classes condenadas para sempre.
Você continua trabalhando num livro sobre as elites
brasileiras? Quais são os principais aspectos dessa sua pesquisa sobre as
elites?
JESSÉ SOUZA: Sim, este projeto existe e já estamos
trabalhando nele há mais ou menos um ano. Nossa preocupação com estes dois
estudos anteriores sobre as “classes populares” e com este agora que estamos
fazendo sobre as classes média e alta no Brasil é compreender a “singularidade
e complexidade da sociedade brasileira contemporânea”, evitando tanto a
armadilha “economicista”, que associa classe à renda, quanto a armadilha
“culturalista”, que vincula nossas mazelas e nossa abissal desigualdade social
a um pretenso “mal de origem” imutável, que nos teria condenado, supostamente
até hoje, a uma “pré-modernidade” do “jeitinho brasileiro” e das “relações
pessoais”. Nesse sentido, procuramos, ao contrário desses dois esquemas
dominantes, atentar para as pré-condições e necessidades objetivas do mercado
competitivo moderno nacional e internacional, e como, a partir disso, as
diversas classes sociais constituem pontos de partida distintos não só para o
acesso aos bens materiais, mas também para fenômenos como auto-estima, reconhecimento
social e prestígio diferencial em todas as dimensões da vida social.
A realidade social é “hierarquizada”, ou seja,
existem questões importantes e secundárias. Para nós, a questão social mais
importante é aquela que esclarece o segredo da “legitimação” do acesso
privilegiado – o qual é, muitas vezes, também injusto - aos bens materiais e
ideais que nós todos passamos a vida perseguindo. É essa legitimação do
privilégio injusto que separa os felizes dos infelizes e que demarca as vidas
bem sucedidas e prestigiosas daquelas vividas na humilhação e na sombra. Todas
as outras questões são secundárias em relação a esta que perfaz o núcleo de
nossa vida social. Estudar as classes do privilégio no Brasil é estudar,
portanto, a forma específica como a dominação social moderna, que é opaca e
sutil muitas vezes, se apresenta na nossa realidade. Essa é o nosso desafio e
esta é a nossa ambição.
*Professor da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), o sociólogo Jessé Souza vem estudando as transformações e os impasses da estrutura de classes brasileira em livros como “Os batalhadores brasileiros: nova classe média ou nova classe trabalhadora?” (2010) e “A ralé brasileira: quem é e como vive” (2009), publicados pela Editora UFMG. Crítico das interpretações “economicistas” da sociedade nacional, Jessé considera que a associação frequente entre classe e renda torna superficial o debate sobre a “nova classe média” brasileira.
_________
Revista Fórum
Fomos treinados para
ter medo de tudo e de todos.
Eduardo Galeano
A cada dia, nasce uma
história em Os Filhos dos Dias, novo livro do escritor uruguaio. São 366 textos
que, segundo Eduardo Galeano, são histórias de invisíveis que merecem ser contadas.
Confira a entrevista.
Por que este título,
Os Filhos dos Dias?
Segundo os maias,
nós somos filhos dos dias, ou seja, o tempo é que estabelece o espaço. O tempo
é nosso pai e nossa mãe e, como somos filhos dos dias, o mais natural é que a
cada dia nasça uma história. Somos feitos de átomos, mas também de histórias.
Dentro dessas
histórias há muitas vinculadas à nossa vida cotidiana. Você assinala: “vivemos
em um mundo inseguro”. A particularidade é que projeta que existem diferentes
concepções sobre a insegurança. A que se refere?
Muitos políticos no
mundo inteiro, não é algo que passa somente em nosso país, exploram um tipo de
histeria coletiva a respeito do tema da insegurança. Te ensinam a ver o próximo
como uma ameaça e te proíbem de vê-lo como uma promessa, ou seja, o próximo,
esse senhor, essa senhora, que anda por aí, pode roubar-te, sequestrar-te,
enganar-te, mentir para ti, raramente oferecer-te algo que valha a pena
receber. Creio que isto faz parte de uma ditadura universal do medo. Fomos
treinados para ter medo de tudo e de todos e este é o álibi que necessita a
estrutura militar do mundo. Este é um mundo que destina metade de seus recursos
à arte de matar o próximo. Os gastos militares, que são o nome artístico dos
gastos criminais, necessitam de um álibi. As armas necessitam da guerra, como
os abrigos necessitam do inverno.
Quando fala dos medos,
você joga com essa palavra para assim mencionar os meios e tem uma história que
é “os meios de comunicação”. Que lugar você atribui aos meios em nossos medos?
Às vezes, os meios
atuam como medos de comunicação, então, se convertem em medos de incomunicação.
Isto não é verdade para todos, mas sim para alguns meios que no mundo inteiro
exploram esse tipo de histeria coletiva desatada com o tema da insegurança.
Mentem, porque a insegurança não se reduz à insegurança que se pode sofrer nas
ruas. Inseguro é este mundo e a primeira é a insegurança no trabalho, que é a
mais grave de todas e da qual nunca falam os políticos que exploram o tema da
insegurança. Não há nada mais inseguro que o trabalho. Todos nos perguntamos: e
amanhã, haverá quem me contrate? Voltarei ao lugar de trabalho onde estive
hoje? Terá alguém ocupado meu lugar?
Esse medo real de
perder o trabalho ou de não encontrá-lo é a fonte de insegurança mais
importante. Tão inseguro é o mundo, a quantidade de pessoas que matam com os
carros nisso que chamamos acidentes de trânsito, na realidade são atos
criminosos por conta dos condutores que, tendo permissão de dirigir, têm
permissão para matar, ou a insegurança da maioria das crianças que nascem no
mundo condenadas a morrer muito cedo de fome ou de enfermidade incurável.
Aparecem as
histórias dos desaparecidos, mas lhe menciono uma em particular, chamada Plano
Condor, onde a história que se conta pertence a Macarena Gelma. Como foi para
você conhecer Macarena Gelman?
Comecei conhecendo
ao pai de Macarena (Marcelo) e ao avô Juan (Gelman) com quem trabalhei junto na
revista Crisis em Buenos Aires, e que é meu amigo de toda a vida. São muitos
anos de amizade, ou melhor, de irmandade. Juan (Gelman) teve que sair da
Argentina para continuar vivo, naqueles dias que se viviam em Buenos Aires,
onde tinha que ir ou esconder-se. Então, eu recebia com muita frequência seu
filho Marcelo e me fiz de pai por algum tempo, depois o mataram, e a outra
história é bastante conhecida.
A mulher de Marcelo
(María Claudia) foi sequestrada na Argentina. Eram acusados do crime de
protestar, delitos de dignidade que têm a ver com o direito estudantil ao
protesto. Esses eram os crimes dos meninos, como eles foram assassinados muito
cedo. Assassinaram María Claudia no Uruguai, onde já funcionava o mercado comum
da morte, que foi o melhor em funcionamento, porque o Mercosul ainda tinha
dificuldades graves. O mercado da morte funcionou muito bem naquelas horas do
terror nas quais as ditaduras trocavam favores. Mandaram María Claudia grávida
para o Uruguai e aqui os militares uruguaios se encarregaram do trabalho.
Esperaram ela dar à luz, ela passou seus últimos dias, ou talvez seus últimos
meses, na sede do Bulevar Artigas e Palmar (SID) onde descobriu-se a placa em
memória de María Claudia e todos os que estiveram ali.
Me impressionou o
contraste pela beleza exterior do palácio e os horrores que escondia. Depois de
dar à luz, a mataram e entregaram seu filho(a) a um policial, troca de favores.
A partir de uma busca complicada, Juan (Gelman) e seus amigos conseguiram
encontrá-la e agora chama-se Macarena Gelman. Nos tornamos muito amigos e uma
vez jantando em casa, me contou essa história que é parte das histórias de Os
Filhos dos Dias. É uma história muito íntima, muito particular e lhe pedi
autorização para publicá-la. É uma história rara, mas reveladora. Conta que,
quando ainda não sabia quem era e vivia em outra casa, com outro nome, nesse
período sofria de insônia contínua, que não a deixava dormir à noite porque a
perseguia sempre o mesmo pesadelo. Via uns senhores desconhecidos muito armados
que a buscavam no dormitório onde estava dormindo, debaixo da cama, no
guarda-roupa e em todas as partes e ela acordava gritando e angustiadíssima.
Durante muitíssimo
tempo, toda sua infância, teve esse pesadelo que a perseguia e ela não sabia o
por quê, de onde vinha. Até que conheceu sua verdadeira história e soube que
estava sonhando os pesadelos que sua mãe havia vivido enquanto a formava no
ventre. A mãe, uma estudante de apenas 19 anos, era perseguida de verdade por
outros senhores armados até os dentes, que a encontraram e a mandaram para
morrer no Uruguai. Macarena estava no ventre dessa mulher acuada e perseguida.
Desde o ventre padecia a perseguição que sua mãe sofria e depois a sonhou e
isto se converteu em seus próprios pesadelos. Ela sonhou o que sua mãe havia
vivido. É uma história que parece uma metáfora da transmissão, das penas, dos
horrores, e também de outras continuidades que não são todas horríveis.
É um livro que
contém muitas histórias de mulheres. Por que?
Também há muitas
histórias de mulheres em meus livros anteriores, como Espelhos e Bocas do
Tempo. Há muitas histórias dos invisíveis, e as mulheres ainda são bastante
invisíveis. Há histórias de negros, de índios, das culturas ignoradas, das
pessoas ignoradas e que merecem ser redescobertas porque têm algo para dizer e
vale a pena escutar.
Neste último livro
(Os Filhos dos Dias) há uma história que me impressionou muito, e que não havia
escrito até agora, a de Juana Azurduy. Juana foi uma heroína das guerras de
independência. Encabeçou a tomada do Cerro de Potosí que estava nas mãos dos
espanhóis. Ela era a chefe de um grupo guerrilheiro que recuperou Potosí das
mãos espanholas. Depois seguiu guerreando pela independência, perdeu seus sete
filhos e seu marido nessa guerra. Finalmente, foi enterrada em uma fossa comum
e morreu na pobreza mais pobre que se possa imaginar. Antes havia recebido um
título militar, foram as forças independentistas as que lhe deram um título que
dizia em mérito: “a sua viril coragem”. Precisou-se de muito tempo para que uma
presidenta argentina (Cristina Fernández) a outorgasse o título de general por
sua feminina valentia.
Há muitas histórias
dos povos originários, da luta pelos recursos naturais, e o rol das
multinacionais. Em particular, uma história dedicada à selva amazônica.
Essa história sobre
a Amazônia recorda que a Texaco, empresa petroleira que derramou veneno durante
muitos anos, arruinou boa parte da selva equatoriana. Foi a juízo, mas perdeu.
As vítimas desse atentado à natureza e às pessoas desse lugar não tinham meios
econômicos, enquanto a Texaco contava com centenas de advogados. Ao cabo de
anos, contudo, o pleito foi ganho, mas ainda não se colocou em prática, porque
há muitas maneiras de se apelar, e de tirar a bola para fora e para isso não
faltam doutores.
No livro tem um
olhar crítico sobre os governos progressistas que ainda não descriminalizaram o
aborto.
O livro toca todos
os temas sempre a partir de histórias concretas. Não é um livro teórico.
As 366 histórias não
são somente latino-americanas, você percorre o mundo.
Há muitas histórias
que merecem ser recuperadas. Luana, por exemplo, foi a primeira mulher que
firmou seus escritos nas tábuas de barro. Ocorreu há quatro mil anos e dizia
que escrever era uma festa. Esta mulher é desconhecida. E vale a pena contar
que essa história existiu.
A respeito da crise
internacional, você resgata o que ocorreu na Islândia e o movimento dos
indignados na Espanha.
Esta crise provém de
um círculo muito pequeno de banqueiros onipotentes. Me ocorreu para esta
história um título sinistro que foi “adote um banqueiro”. Os responsáveis pela
crise são os que mais têm se queixado e os que mais dinheiro tem recebido. Eles
têm sido recompensados por fundir o planeta. Todo esse dinheiro que se destinou
aos que causaram o pior desastre na história da humanidade seria suficiente
para dar comida aos famintos do mundo, com sobra, inclusive.
Você acha uma
contradição a existência do movimento dos indignados e que, ao mesmo tempo,
tenha ganhado o Partido Popular na Espanha?
A aparição dos
indignados é o que de mais lindo ocorreu no mundo nos últimos tempos. Creio que
o melhor da vida é sua capacidade de surpresa. O melhor dos meus dias é o que
ainda não vivi. Cada vez que uma cigana me cerca para ler a minha mão a peço
por favor que a pague, mas que não leia. Não quero que me digam o que vai me
acontecer, o melhor que a vida tem é a curiosidade e a curiosidade nasce da
ignorância do destino. A explosão dos indignados começou na Espanha, e depois
se estendeu em outras partes. É uma boa notícia a capacidade de indignação. Bem
dizia meu mestre brasileiro Darcy Ribeiro (intelectual brasileiro já falecido)
que o mundo se divide entre os indignos e os indignados e que tem-se que tomar
partido, há que se eleger.
Pensei muito nele
quando surgiu este movimento. Jovens que perderam seus empregos e suas casas
por responsabilidade desses malabarismos financeiros que acabaram despojando os
inocentes de seus bens. Eles não foram os que pegaram empréstimos impossíveis,
não foram eles os culpados pela bolha financeira e deste disparate que
aconteceu na Espanha de construir e construir e agora está cheia de moradias
desabitadas e gente sem casa.
O PP ganhou a
eleição, é verdade. A direita ganhou as eleições, e terá que lutar para que
isso mude. Isto que aconteceu na Espanha também fala do desprestígio de forças
de esquerda que entram na vida política prometendo mudanças radicais, e depois
terminam repetindo a história, ao invés de mudá-la. Muitas pessoas, sobretudo
os jovens, se sentem desapontadas e abandonam a política.
__________
Estadão 04.05.2013Juiz americano diz que a tendência é aumentar, não diminuir, a maioridade penal à medida que sabemos mais do desenvolvimento do adolescente
Mônica Manir
Foi um menor de
idade? Ficou automático perguntar, antes mesmo do fim da perícia (quando há),
se o autor de um crime tem mais ou menos que 18 anos. A sociedade brasileira
está extremamente sensível ao tema e, na cruzada para endurecer, arrefecer ou
manter a coisa como está, um recurso é olhar o direito penal do vizinho
"civilizado". Ver quando e como punem seus jovens infratores.
Especialista em
direito comparado, o juiz federal americano Peter Messitte diz que a maioridade
penal é uma preocupação de praticamente todos os países. Mas consenso é o que
não há. Nos próprios Estados Unidos, cada Estado estabelece seu limite e a
Suprema Corte, até agora, só conseguiu unificar a proibição da pena de morte
para os menores de 18. Milhares deles, no entanto, estão condenados à prisão
perpétua, sem direito a condicional. Saíram permanentemente do convívio da
sociedade. Lá estão, lá ficarão. Ainda assim o sistema gera críticas pela falta
de políticas educacionais dentro desses presídios. "Por que desistir do
ser humano?", questiona o juiz, que conhece o Brasil de outros tribunais,
quando voluntário de 1966 a 1968 do Corpo de Paz em São Paulo, e mais
recentemente como diretor do Programa para Assuntos Jurídicos Brasil-EUA, em
Washington, em que americanos e brasileiros trocam informações sobre sua Justiça
lá e aqui.
É a maior
sensibilidade mundial aos direitos humanos, aliada à percepção de que o
desenvolvimento físico e intelectual do adolescente tem suas peculiaridades,
que levam Peter Messitte a apostar na ampliação da maioridade penal. E a
acreditar nas atividades preventivas, como maior acesso dos jovens à educação,
à saúde, ao lazer, à cultura. Não pra ontem nem pra agora. Coisa pro futuro.
Enquanto isso, o debate deveria prosseguir, "sob ou não o calor da
hora".
Cabem comparações
sobre a maioridade penal entre os países, considerando que cada um tem sua
cultura jurídica e social?
Essa questão é
universal. Até certa medida, todo o mundo está preocupado com a idade a partir
da qual uma pessoa pode ser considerada responsável criminalmente por seus
atos. Eu diria que é provavelmente impossível para um país condenar como adulto
uma criança de 5 anos. Há diferenças evidentes entre uma fase e outra. O
desafio estaria em definir isso na faixa dos 16, 18 anos. Nos EUA, há que se
levar em conta que cada um dos 50 Estados tem competência sobre a maioridade
penal. É uma determinação em nível estadual. No federal, existem questões
semelhantes, mas não tão extensivas. Em convenções internacionais, inclusive
das Nações Unidas, a idade mínima para a culpabilidade também vem sendo
discutida.
Qual seria, para o
senhor, esse limite de idade para a culpabilidade?
Eu me pergunto, na
verdade, se deveríamos fixar automaticamente uma idade para determinar o
desfecho ou deixar aberta a questão e fazer isso com certa flexibilidade,
dependendo da maturidade emocional e intelectual do indivíduo que cometeu o
crime. Na mesma linha, penso que deveríamos avaliar quando levar esse indivíduo
a um tribunal especial ou quando submetê-lo a um tribunal para adultos. E qual
deveria ser a pena. Essa é uma diferença importante entre os EUA e o Brasil:
vocês têm um limite de até 30 anos para qualquer crime. Aqui não.
Há muitos Estados
americanos que aplicam a prisão perpétua para adolescentes?
Falando antes de
pena capital, faz poucos anos que a Suprema Corte determinou que a pena de
morte abaixo dos 18 anos é inconstitucional. Foi no caso Roper versus Simmons,
em 2005. Até aquele ponto, mais de 20 Estados incluíam a pena de morte para
crianças e adolescentes no seu sistema penal. Já quanto à prisão perpétua, uma
minoria de Estados a aplica. O debate mais recente é nesse sentido: se deve
continuar existindo no país prisão perpétua, sem possibilidade de condicional,
para adolescentes. Ele estaria influenciado pela Oitava Emenda da Constituição,
que proíbe penas inúteis e cruéis. Em 2010, no caso Graham versus Florida, o
Supremo se embasou nessa emenda para proibir a prisão perpétua sem condicional
para jovens não homicidas. Naquela época, 37 dos 50 Estados seguiram a
recomendação. Mas note que o Supremo deixou de fora os homicídios. Ohio, por
exemplo, condenou recentemente à prisão perpétua sem condicional o jovem Thomas
"T. J." Lane. Ele tinha 17 anos quando matou três estudantes.
Pesquisa sobre a
vida dos jovens em prisão perpétua nos EUA - The Lives Of Juvenille Lifers,
feita pelo The Sentencing Project, mostra que a maioria dos condenados é negra,
pobre e sofreu abusos físicos e sexuais quando criança. Programas educacionais
e políticas de trabalho para esses jovens são limitados porque eles não
conseguiriam voltar à sociedade. O senhor conhece essa pesquisa? Poderia
comentar os resultados?
Sim, eu conheço esse
estudo e não me surpreende o perfil desses jovens delinquentes. Provavelmente
não é diferente do perfil da maioria dos adultos infratores. Alguns podem
concluir que isso é fruto do racismo, o que pode ser verdade em alguns casos.
Mas falta uma pesquisa nacional a respeito. Quanto a não oferecer educação ou
treinamento profissional a esses jovens, isso realmente nos ofende. Por que
desistir do ser humano? Mas isso não é necessariamente cínico. Pode ser uma
visão realista. Os recursos públicos são limitados. Pensando na segurança da
sociedade em primeiro lugar, muito do dinheiro vai para a construção de
presídios e contratação de guardas. Mesmo pensando nos presos, é necessário
cuidar de sua alimentação, de seu espaço físico e da segurança no presídio.
Depois, presumivelmente, viria a educação - uma boa coisa, com certeza. Mas a
fila para os recursos é muito longa e ela fica para trás.
Existem equipes
multidisciplinares nos EUA que podem avaliar os jovens antes do aprisionamento?
Sim, isso se faz com
psiquiatras, psicólogos, médicos que avaliam a dependência de drogas, por
exemplo. Todos os Estados aqui, como no Brasil, têm varas especializadas para
tratar de jovens até os 17 anos e 364 dias de vida. Temos que cuidar deles, nos
esforçar para lhes dar educação, tratar da saúde, aumentar-lhes a autoestima,
cuidar de doenças mentais, e ao mesmo tempo precisamos pensar em segurança
pública, porque alguns representam ameaças à sociedade.
No Brasil, os
presídios são vistos como escolas do crime. Qual a imagem deles nos Estados
Unidos?
Jovens com menos de
18 anos ou estão em reformatórios (usando uma expressão do passado) ou estão em
alas separadas dos adultos. No entanto, mesmo entre os jovens, um mais
experiente influencia o outro. E há problemas de estupro dentro de presídios em
geral, drogas, corrupção. Houve inclusive um escândalo no mês passado aqui, no
Estado de Maryland, que chocou a população. Descobriram um esquema de tráfico
de drogas e lavagem de dinheiro dentro de uma prisão em Baltimore que era
pilotado por uma gangue e contava com a participação de guardas. Quatro das
guardas femininas, aliás, estavam grávidas de um dos líderes. É como digo:
sempre haverá pessoas manipulando o sistema penal e sempre haverá indignação
quanto a isso. Temos que ser mais efetivos. Não pode ser uma coisa cosmética.
No Brasil, a
reincidência em unidades de internação para adolescentes (13%) é bem menor do
que em presídios (mais de 60%). Como é, nos Estados Unidos, a questão da
reincidência de adolescentes?
O Departamento de
Justiça tem dito que, nos últimos 30 anos, reduziu-se em quase 25% o número de
condenações de jovens com menos de 18 anos em crimes como homicídio. Me parece
que há mais crimes cometidos por jovens do que antes, mas não vou contrariar as
estatísticas.
Essa sensação
poderia vir da exposição sensacionalista dos casos?
Não é fácil
determinar exatamente a taxa de crimes cometidos por jovens e a reincidência.
Há muitas variantes entre os Estados. Mas é claro que o sensacionalismo às
vezes prejudica a racionalidade. Talvez a mídia pudesse zelar pela calma no
meio do transtorno. É importante entender a natureza de determinado caso, de
não apresentar reação inapropriada, porque essas questões sempre estão
presentes.
Nesse sentido, em
que medida se deve legislar sob a influência da revolta provocada por um crime
bárbaro?
Não vejo problema
com relação a isso porque o povo está sempre avaliando vários aspectos de sua
vida, se tem emprego, se pode alimentar a família, se tem segurança. Um
escândalo ou um crime bárbaro levantam novamente a questão e o debate continua.
E às vezes, dependendo da gravidade do problema, haverá mudanças. Tivemos aqui
massacres como o de Newtown. Veja a proposta feita pelo presidente Obama de se
verificar os antecedentes do comprador das armas. Era uma iniciativa que tinha
mais de 90% de apoio da população, mas não passou no Congresso, não passou no
Senado. Contudo, o horror do massacre pelo menos trouxe à tona, mais uma vez,
com muita força, a necessidade de enfrentar a questão do controle de armas.
Assim como o fará o caso desse menino de 5 anos que matou a irmã com um rifle
feito especialmente para crianças. Como ele pode diferenciar a realidade de um
videogame da de um assassinato?
Para onde o senhor
acha que caminha o debate sobre a maioridade penal?
Eu poderia dizer que
ele corre mais na direção de aumentar a idade de responsabilidade da maioridade
penal. Por quê? Porque estamos entendendo melhor o aspecto físico da falta de
desenvolvimento de crianças e adolescentes. Nos EUA, criamos a primeira vara de
infância, se não me engano, em 1899, e veja o que temos hoje. Veja o que vocês
têm no Brasil. Há uma série de estudos, descobertas científicas. Se haverá
mudanças no futuro - e não posso dizer o prazo -, será na direção de minimizar
a culpabilidade da criança e do adolescente e, mais importante, concentrar
forças nas atividades preventivas. É lamentável a falta de dinheiro nesse
sentido, o que nos limita. Mas também somos mais sensíveis hoje aos direitos
humanos do que éramos 50 anos atrás. É realmente a direção da vida. É um fato.
* Peter Messitte é
juiz federal, professor de direito comparado e diretor do programa para
assuntos jurídicos Brasil-EUA
__________
Estadão 29.04.2013
"A redução da
maioridade penal só favorece o crime"
Ministro da Justiça
critica discussão, diz que qualquer tentativa de mudança na lei é inconstitucional
e que os presídios brasileiros são escolas de criminalidade.
Thais Arbex
No ápice da mais
recente crise entre Congresso e STF, o ministro da Justiça prefere manter
distância. Não significa que José Eduardo Cardozo seja um homem sem opinião.
Principalmente quando o assunto é a redução da maioridade penal: “Sou contra.
Quem achar que, com uma varinha mágica, vai resolver a questão da
criminalidade, está escondendo da sociedade os reais problemas que a afligem”.
A afirmação vem
justamente no momento em que a Câmara discute mudanças no Estatuto da Criança e
do Adolescente – entre elas a proposta do governador Geraldo Alckmin de ampliar
de três para oito anos o prazo de internação de menores infratores. “Qualquer
tentativa de redução da maioridade penal é inconstitucional”, afirma. A
criminalidade, ressalta, não tem respostas simplistas.
O paulistano, que
completou 54 anos no último dia 18, passou o aniversário em Brasileia, no Acre.
Acompanhava os trabalhos de força-tarefa montada para receber a massa de
imigrantes haitianos que chegam ilegalmente à cidade por meio dos chamados
“coiotes”. “É um ministério que vai da toga à tanga”, brinca.
Na militância
política desde os tempos do Centro Acadêmico da Faculdade de Direito da PUC,
Cardozo tinha 28 anos quando assumiu o primeiro cargo público, como secretário
de governo da então prefeita de São Paulo Luiza Erundina. De lá para cá, perdeu
a privacidade. Supermercado e cinema? Só com seguranças. Nos poucos momentos em
que está só, vai para o piano. Ou mergulha na leitura. Hoje, em sua cabeceira,
repousa El Hombre que Amaba a los Perros, do cubano Leonardo Padura. “Isso me
relaxa.”
A seguir, os
principais trechos da entrevista.
O Brasil voltou a
discutir a redução da maioridade penal. O senhor é a favor?
Tenho uma posição
consolidada há muitos anos: sou contra a redução da maioridade penal. A
Constituição prevê inimputabilidade penal até os 18 anos de idade. É um direito
consagrado e uma cláusula pétrea da Constituição do Brasil. Nem mesmo uma
emenda pode mudar isso. Qualquer tentativa de redução é inconstitucional. Essa
é uma discussão descabida do ponto de vista jurídico. No mérito, também sou
contra. Mesmo que pudesse, seria contra. Diante da situação carcerária que
temos no Brasil, a redução da maioridade penal só vai agravar o problema.
Por quê?
Porque nossos
presídios são verdadeiras escolas de criminalidade. Muitas vezes, pessoas
entram nos presídios por terem cometido delitos de pequeno potencial ofensivo
e, pelas condições carcerárias, acabam ingressando em grandes organizações
criminosas. Porque, para sobreviver, é preciso entrar no crime organizado.
Não há o que fazer?
Temos de melhorar
nosso sistema prisional. Reduzir a maioridade penal significa negar a
possibilidade de dar um tratamento melhor para um adolescente. Vai favorecer as
organizações criminosas e criar piores condições. Boa parte da violência no
Brasil, hoje, tem a ver com essas organizações que comandam o crime de dentro
dos presídios. Quem não quer perceber isso é alienado da realidade. Quem quer
encontrar outras explicações para os fatos ignora que, nos presídios
brasileiros, existem os grandes comandos de criminalidade. Criar condições para
que um jovem vá para esses locais, independentemente do delito cometido, é
favorecer o crescimento dessa criminalidade e dessas organizações. É uma
política equivocada e que trará efeitos colaterais gravíssimos.
E qual é a solução?
Desenvolver
políticas em diversos campos. A criminalidade não tem respostas simplistas.
Quem achar que, com uma varinha mágica, com um projeto de lei, vai resolver o
problema da criminalidade, está escondendo da sociedade os reais problemas que
a afligem. Por que existe a criminalidade? Há vários fatores. A exclusão social
e a impunidade são dois deles. Três: é preciso combater os grupos de
extermínio. Quatro: o crime organizado se enfrenta com coragem e determinação,
não com subterfúgios. O governo federal tem desenvolvido programas em todas
essas áreas. Mas é uma luta difícil e que tem de ser discutida com
profundidade, sem políticas cosméticas.
Há uma briga entre o
Legislativo e o Judiciário?
Não tenho por
hábito, desde que assumi o ministério, comentar situações que dizem respeito a
outros poderes – embora tenha opinião sobre elas.
A política
brasileira de vistos para haitianos foi alvo de críticas internacionais. Como o
senhor recebeu essas críticas?
São infundadas.
Nosso objetivo não é barrar os haitianos. Temos uma tradição de acolhimento e
respeito aos direitos dos imigrantes, especialmente em situações humanitárias
como a do Haiti. Queremos incentivar a entrada legal no País – o que permite
ter controle de fronteiras, respeitar a lei, combater as máfias e evitar que
criminosos entrem pela mesma porta que os haitianos. Estamos discutindo acabar
com o teto dos cem vistos emitidos por mês em Porto Príncipe. A perspectiva de
haitianos virem ao Brasil é maior do que isso. Também vamos criar outros postos
de atendimento.
O Brasil está
preparado para garantir a segurança durante a visita do papa Francisco e a Copa
das Confederações?
Estamos trabalhando
em ritmo bastante acelerado e preparados, sim, para esses dois eventos. Temos a
ação da Secretaria de Grandes Eventos trabalhando juntamente com os estados que
vão receber a Copa das Confederações e, em especial com o Rio de Janeiro, que
receberá a visita do papa Francisco. Esse trabalho está integrado com as Forças
Armadas. Será um aprendizado para a Copa e para a Olimpíada. Quanto mais um
país cresce e se apresenta para o mundo, mais aumentam os desafios e a
responsabilidade de quem governa. Nenhum de nós, hoje, tem o direito de errar.
A PF tem autonomia
para investigar qualquer pessoa?
A PF tem total
autonomia para cumprir seu papel e sua missão constitucional. Ela atua de
acordo com a Constituição e as leis, sem interferência política. Ela pode
investigar quem quer que seja, desde que o faça nos termos da lei e em
cumprimento a ordens judiciais.
O senhor foi
consultado sobre a investigação e a quebra de sigilo do ex-assessor de Lula?
Não fui, não sou e
não devo ser consultado. As autoridades policiais têm competência para presidir
os inquéritos e propor as medidas cabíveis. O ministro da Justiça só deve
intervir nos casos em que perceba algum abuso ou desvio.
Como está o processo
para a substituição do ministro Ayres Britto no Supremo?
A vaga no STF está
em aberto, e a presidenta Dilma está refletindo. Temos muitos bons nomes.
Grandes juristas homens e grandes juristas mulheres que podem ser nomeados para
esse cargo. Com certeza, a presidenta escolherá a melhor alternativa. Ela
costuma refletir bastante em relação a essas questões. Não é uma escolha fácil,
é uma escolha que tem de ser feita de maneira bastante amadurecida, porque se
trata de um cargo vitalício.
Seu nome já foi
citado como possível nome do PT ao governo de São Paulo. O senhor é candidato à
vaga?
Não, de jeito
nenhum. Meu partido tem excelentes nomes, que podem desempenhar esse papel com
brilho e com possibilidade de vitória no estado de São Paulo. Nomes como
Aloizio Mercadante, Alexandre Padilha, Marta Suplicy, Guido Mantega têm totais
condições de serem objeto de apreciação partidária. Vou me ocupar do meu papel
aqui no Ministério da Justiça, onde já tenho muito trabalho. Pode ter toda a
certeza disso.
Qual o maior
problema da vida pública?
É a perda absoluta
da privacidade. Temos de andar permanentemente com seguranças. Esse é um lado
bastante doloroso. Sinto falta de sair pela rua sem ninguém me seguindo, de ir
ao supermercado sem ter um segurança atrás de mim. Ir ao cinema sem ninguém
perceber que estou lá. Nas raras vezes em que consigo fazer isso sozinho, me
sinto uma pessoa livre (risos).
Já se acostumou a
ser mandado por uma mulher?
Eu sempre fui
mandado por mulheres. Isso é uma característica da minha vida profissional. Não
vou dizer pessoal, porque seria demais (risos). No meu primeiro emprego, como
estagiário da Prefeitura de São Paulo, fui comandado por uma mulher. Quando
comecei a dar aulas na universidade, fui assistente da professora Silvia
Pimentel. Fui trabalhar na Câmara paulistana como assessor de uma vereadora
mulher. Depois disso, fui secretário da primeira mulher prefeita de São Paulo,
Luiza Erundina. Quando fui presidente da Câmara, a prefeita era a Marta
Suplicy. E, agora, sou comandado pela primeira presidente mulher. Eu sou um
homem permanentemente, profissionalmente, comandado por mulheres.
_____________
O Dia 21.04.2013
Ex-guerrilheiro dos
anos 60: ‘Lutamos por uma sociedade melhor’
Um dos líderes da
guerrilha urbana, o jornalista Cid Benjamin está prestes a lançar o livro
‘Gracias a la Vida’. Ele diz que se pudesse voltar no tempo faria tudo de novo,
mas de outra forma.
CAIO BARBOSA
Rio - O DIA: Por que
lançar um livro só agora, tanto tempo depois da prisão?
CID: As pessoas me
cobram este livro há muito tempo por uma série de motivos. E eu adiava porque
não queria fazer só um relato, mas uma espécie de reflexão sobre uma série de
questões. E como eu não tinha tempo nem pressa e não me sentia em condições de
fazer como eu queria, o livro está saindo só agora.
Da maioria dos
ex-companheiros, pelo menos os mais conhecidos, como o Fernando Gabeira e o
(ex-ministro) Franklin Martins, você é um dos poucos que se mantêm em defesa do
socialismo.
Mudei algumas
concepções, mas no essencial eu continuo no mesmo lado onde estava. Hoje, dou
um peso maior à democracia, até porque acho que ela não enfraquece o
socialismo. Muito pelo contrário. Ela valoriza e enriquece a proposta
socialista.
Cid voltou este ano
à cela onde ficou preso, no Dops. Tão pequena que não havia espaço sequer para
deitar e dormir.
Qual foi seu
principal aprendizado?
Não foi político,
mas de vida. Várias vezes me vi sem nada. Levei uma vida muito espartana na
clandestinidade. Fiquei preso sem roupa nenhuma. Perdi tudo várias vezes.
Quando estava exilado no Chile, tive de sair do país com a roupa do corpo às
vésperas do golpe contra o presidente Salvador Allende com minha mulher e minha
filha recém-nascida. Tudo isso me fez aprender que, se você tem saúde e
disposição, todo o restante é perfeitamente possível de ser feito.
E politicamente?
Tenho muito orgulho
da minha trajetória. Apesar dos nossos erros políticos, sou de uma geração que
em condições muito adversas lutou, arriscou a vida por uma sociedade melhor
para todos. Isso é motivo de muito orgulho e acho que tem de ser valorizado.
E o grande erro?
Acho que a luta
armada foi um erro. Não em tese, pois reafirmo a legitimidade de você pegar em
armas contra um regime opressor e ilegítimo. Isso é reconhecido até pela ONU.
Minha reflexão é em relação à eficácia da ação. Não tinha condição de vingar.
Foi um erro político pelo qual pagamos caro. Mas falar agora é fácil. Após
1964, com a Revolução Cubana, com os EUA perdendo a Guerra no Vietnã, havia
elementos fortes para que as pessoas se atraíssem e acreditassem no sucesso da
luta armada. Então, não há arrependimento, mas a reflexão de que foi um erro.
Costumo dizer que se pudesse voltar no tempo, faria tudo de novo, mas de uma
outra forma para que o objetivo fosse atingido.
Na volta ao Brasil,
você fundou o PT com outros ex-companheiros. Mas hoje o partido é bem diferente.
O PT deixou de ser
um partido de transformação social, o que não quer dizer que seus integrantes,
pelo menos a maioria, não têm mais essa perspectiva. Mas a direção do PT... o
rumo que tomou não é transformador. E nem falo de transição para o socialismo,
mas da dificuldade que o PT tem para tomar medidas republicanas mais radicais.
Embora eu reconheça melhorias em relação aos governos anteriores, é muito pouco
para o que eu queria do PT.
E o Psol?
Não acho que o Psol
vá crescer, atropelar isso tudo que aí está e encampar a bandeira do
socialismo. Mas é uma importante trincheira onde segue erguida a bandeira
socialista. Não consigo imaginar o que seria do Congresso sem os nossos quatro
parlamentares (senador Randolfe Rodrigues, do Amapá, os deputados Chico Alencar
e Jean Wyllys, do Rio, e Ivan Valente, de São Paulo). Eles cumprem um papel
importantíssimo, são os melhores parlamentares do país e não seriam se
estivessem no PT. Ficariam amordaçados.
Você é daqueles que
consideram que o grande legado do PT, além do Bolsa Família, será a
despolitização da sociedade após os escândalos de corrupção?
É um exagero afirmar
isso. Contribuiu bastante para a desilusão. Despolitização? Penso que sim. Mas
o Bolsa Família melhorou a situação de milhões de pessoas. Só que representa
apenas 1/5 do lucro dos bancos. E se você quer pensar em transformação social,
é preciso pensar em emprego digno e estável. A assistência social tem que ser
feita muitas vezes porque há miséria, mas é preciso ter a porta de saída para
não ficar vivendo eternamente da caridade do Estado.
O Bolsa Família se
tornou o que há algumas décadas era um saco de cimento e um caminhão de
tijolos, ou seja, é um cabresto eleitoral do século 21?
Não quero dar uma
impressão pejorativa do Bolsa Família. Ele beneficia não apenas o núcleo
familiar, mas faz o dinheiro circular nas cidades do interior do Nordeste, por
exemplo. O padeiro vende mais pão, o comércio vende mais roupa e isso é bom.
Mas é emergencial. Cada vez que se anuncia o número maior de beneficiados vejo
um lado ruim. O ideal seria este número diminuir, que o governo dissesse que dá
menos Bolsa Família porque o cidadão já tem um emprego decente. Mas isso não
acontece.
Apesar de ter sido
fundador do PT e um dos coordenadores da campanha do Lula na histórica eleição
de 1989, você diz no livro que o melhor para o país teria sido a eleição de
Leonel Brizola. Por quê?
Pela educação. Acho
que ela tem de ser prioridade em qualquer governo, de esquerda ou direita. Isso
não tem a ver com o socialismo e não necessariamente vai ameaçar as classes
dominantes. Se o PT tivesse revolucionado a educação fundamental nestes 11
anos, já teria sido um legado enorme. Mas nunca fizeram isso. Aliás, não há quem
cite neste governo uma única medida que tenha contrariado o interesse das
classes dominantes, dos bancos, dos empreiteiros, das multinacionais e do
agronegócio.
E qual a sua
avaliação do governo Dilma, outra ex-guerrilheira. Vocês se conheceram na ditadura?
Não. Ela era da
base. O ex-marido, Carlos Araújo, é que era dirigente. Eu acho um governo
frustrante porque não é de transformação social. Se você me perguntar se não é
melhor que os do Lula, Fernando Henrique e Collor, certamente direi que é, mas
não me satisfaz. Não mexe com os interesses dos ricos, não faz as reformas
necessárias e constrói a governabilidade montando uma geleia de partidos que o
imobiliza. São tantas concessões que não permitem as transformações, apenas
permitem que o governo não seja incomodado.
E a Comissão da
Verdade, criada por ela para apurar os crimes cometidos pelo Estado na
ditadura? O que pensa a respeito?
Não tenho rancor
contra meus torturadores, mas um país que não conhece sua história está
condenado a repetir os erros. Mandela, na África do Sul, abriu mão da punição
dos torturadores desde que eles fossem a público confessar tudo o que fizeram.
Foi um choque na sociedade sul-africana, mas criou anticorpos para que não
aconteça de novo. Por isso, é preciso que saibamos quem foram os torturadores e
os mandantes. Só lamento que esta comissão tenha vindo tão tarde. O Sarney,
como cúmplice da ditadura, não poderia tê-la criado. O Collor, tampouco. Mas o
Fernando Henrique e o Lula, sim, poderiam ter dado um passo importante nesta
direção e não fizeram.
O que chama a
atenção em você é que, apesar de ter sido derrotado na luta contra a ditadura,
de ter criado um partido que te causa frustração, você tem uma alegria de viver
incrível.
Fiz o que achei que
deveria ter feito e o fato de ter perdido batalhas não me deixou amargurado. Se
eu ficar preocupado com tudo o que passei, vou ser torturado continuamente.
Buda dizia que guardar rancor é como pegar um carvão em brasa com a intenção de
atirá-lo em alguém. Quem segura o carvão é que se queima.
E o Darcy (Ribeiro)
também tinha uma ótima. Ele dizia: “Fracassei em tudo o que tentei na vida.
Tentei alfabetizar as crianças brasileiras e não consegui; tentei salvar os
índios, não consegui; tentei fazer uma universidade séria e fracassei; tentei
fazer o Brasil desenvolver-se autonomamente e fracassei. Mas os fracassos são
minhas vitórias. Detestaria estar no lugar de quem me venceu”. Penso exatamente
assim.
____________
Brasil de Fato 22/01/2013
Sob o pretexto da
cura
Para juiz,
internação compulsória não se trata de medida em prol da saúde, mas de
higienização em favor de interesses econômicos. Judiciário contribui para a
violação de direitos
Aline Scarso
A medida que
autoriza a internação compulsória de usuários de crack no estado de São Paulo é
considerada um retorno aos séculos XIX e XX “quando se internavam os
indesejáveis à ordem política a pretexto de curá-los”. A opinião é do juiz de
Direito e membro da Associação Juízes para a Democracia, João Batista Damasceno,
crítico do papel que o Judiciário deve cumprir na tríade com o Ministério
Público e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) no caso das internações contra
a vontade dos viciados.
Damasceno chama a
atenção para o fato de que não é possível garantir a lisura dos laudos médicos.
Outra questão é que a lei que regulamenta a Reforma Psiquiátrica, de 2001 – e é
base da resolução do governo paulista que autoriza a internação compulsória –
não se refere, em nenhum momento, a usuários de drogas, mas a pessoas com transtornos
mentais.
Segundo o juiz, na
aplicação dessa medida o Judiciário deve servir como salvaguarda para as
violações de direitos, contribuindo para uma prática higienista na cidade. Os
juízes não têm mesmo, segundo Damasceno, competência ordinária e conhecimento
sobre os estabelecimentos para onde estão autorizando os confinamentos. “A
política que se tem implementado em desfavor destas pessoas é equivalente às
que o nazifascismo promoveu com aqueles que consideravam não serem dignos de
qualquer direito, nem o de viver”, pontua.
Brasil de Fato: Qual
o cenário das políticas públicas de enfrentamento ao uso de crack no Brasil?
João Batista
Damasceno: A conduta das autoridades públicas tem mudado de estado para estado.
Nas capitais do Rio de Janeiro e São Paulo, a ação das autoridades tem sido
mais intensa. Mas, em todo o Brasil, se tem praticado este tipo de violação dos
indivíduos tratados como indesejáveis aos olhos dos interesses da classe
dominante.
A possibilidade de
internação compulsória de pessoas por motivos diversos deixou a comunidade
psiquiátrica e os empresários de clínicas psiquiátricas em euforia. Trata-se de
uma maneira de confinar pessoas, sem que estejam em estado de crise, e
mantê-las internadas contra suas vontades. Claro que isto não se faz sem
custeio e o que muitas “clínicas” buscam é o lucro decorrente deste tipo de
intervenção.
A internação
compulsória de pessoa acometida de transtorno mental, que somente se pode
realizar com autorização judicial, difere da internação involuntária [a pedido
da família], que se faz para atender à necessidade imediata de ajuda a quem
esteja demandando socorro. A diferença pode estar no momento posterior ao
socorro. Já na internação compulsória, a vontade do internado continua a ser
desconsiderada mesmo se voltar a ter condições de manifestá-la. É este tipo de
internação que se tem feito pelo Brasil com as pessoas usuárias de drogas, a
pretexto de que estão acometidas de transtorno mental e para salvá-las do seu
uso.
Mas os usuários das
drogas consideradas mais leves ou das drogas chamadas lícitas não têm sido
objeto destas condutas. A questão está diretamente relacionada com a classe e o
status dos indivíduos na sociedade. A Lei da Reforma Psiquiátrica, 10.216 de
2001, foi um retrocesso na questão. Voltamos ao século XIX ou início do século
XX, quando se internavam os indesejáveis à ordem política a pretexto de
curá-los. Lima Barreto e o líder da Revolta da Chibata João Cândido estiveram
em manicômio. O médico Juliano Moreira atestou que João Cândido era um líder
rebelde e não deveria ser mantido em manicômio, possibilitando seu julgamento e
absolvição dois anos após a Revolta da Chibata. De forma diferente, poderia ter
ficado confinado por toda a vida.
E qual tem sido o
papel do Judiciário, meritíssimo?
O Judiciário no
Brasil tem corroborado com as políticas violadoras dos direitos humanos. Não há
um período em nossa história em que tenha agido diferente. Na Colônia os juízes
ordinários eram os presidentes das Câmaras das Vilas eleitos pelos
proprietários, no Império eram oriundos da classe escravista, na Primeira
República vinculados aos coronéis, durante a ditadura Vargas admoestados pelo
arbítrio, no regime militar além de sujeitos a cassações, prisões e torturas
participaram do projeto de “segurança e desenvolvimento” em prejuízo das
liberdades. Após a Constituição de 1988 há garantias e possibilidade de
funcionamento em prol da dignidade da pessoa humana, mas as condições
históricas de formação do Poder Judiciário no Brasil ainda tornam os juízes
vinculados ao poder político e interesses econômicos da classe dominante.
Muitas decisões reproduzem trechos de discursos oficiais ou editoriais
televisivos. Os juízes, em regra, se vinculam aos interesses ideológicos da
classe dominante e fundamentam suas decisões em tais retóricas, apartados da
ordem jurídica.
Do ponto de vista
dos direitos humanos, a internação compulsória fere a liberdade do indivíduo de
decidir sobre o próprio corpo, ainda que se ressalve que o mesmo não tenha
condições psicológicas para decidir sobre si mesmo?
A lei 10.216, de
2001 [que regulamenta e institui a Reforma Psiquiátrica], autoriza a internação
involuntária ou compulsória tão somente de pessoas acometidas de transtorno
mental. Mas, se tem internado indiscriminadamente usuários de drogas,
notadamente de crack, sob o argumento de que um em cada dois dependentes
químicos apresenta algum transtorno mental, e que lhes é comum a depressão.
Tem-se desconsiderado que não é a droga que leva à depressão. O processo é o
contrário. Nenhuma sociedade se constituiu sem o uso de drogas em suas
festividades e cerimônias. Na tradição cristã diz-se que o primeiro milagre de
Cristo foi a transformação de água em droga, ou seja, em vinho. Mas as drogas
sempre estiveram relacionadas às cerimônias, notadamente religiosas, às
celebrações e às alegrias. Somente a nossa sociedade difundiu o uso da droga
para a busca do prazer. O problema não está no uso que se faz da droga ou nas
consequências posteriores. Nosso problema está num modelo
econômico-político-social que produz a insatisfação, a exclusão e a
infelicidade e propicia a busca do prazer por meio do consumo de drogas lícitas
ou ilícitas. O usuário de crack, por sua maior vulnerabilidade e desprestígio
social, está mais sujeito às violações aos seus direitos de pessoa humana. O
mesmo comportamento não se tem com usuários de outras drogas, notadamente as
lícitas.
Mas há
inconstitucionalidade na medida?
A internação, seja
involuntária ou compulsória, somente se pode realizar quando os recursos
extra-hospitalares se mostrarem insuficientes, e quando autorizada. O
tratamento tem de visar, como finalidade permanente, a reinserção social do
paciente em seu meio. Além disso, o tratamento, em regime de internação, há de
ser estruturado de forma a oferecer assistência integral à pessoa portadora de
transtornos mentais, incluindo serviços médicos, de assistência social,
psicológicos, ocupacionais, de lazer e outros. É o que diz a lei que a
autoriza. A lei veda a internação de pacientes portadores de transtornos
mentais em instituições com características asilares como se tem feito. A
internação involuntária deve ser comunicada ao Ministério Público Estadual no
prazo de 72 horas, mas inexiste no MP órgãos encarregados de receber tal
comunicação. A internação compulsória, de pessoas acometidas de transtorno
psiquiátrico, há de ser determinada por juiz competente para a causa, que há de
levar em conta as condições de segurança do estabelecimento, quanto à
salvaguarda do paciente, dos demais internados e funcionários. Mas, juízes
designados por administrações de tribunais vinculados aos governadores e
prefeitos, sem que tenham competência ordinária para a matéria, as autorizam
sem conhecerem os estabelecimentos para onde estão autorizando os
confinamentos. Então, a internação de usuário de crack ou outras drogas, a
pretexto de serem pessoas acometidas de transtorno mental, é uma flagrante
ilegalidade que viola a ordem jurídica e constitucional.
O senhor acredita
que esta medida signifique uma judicialização da saúde, especificamente em
relação à saúde mental?
As medidas que se
têm tomado não representam judicialização da saúde. A judicialização da
política, das relações sociais ou da saúde é um processo pelo qual se busca por
meio do Poder Judiciário a satisfação de um direito ou interesse não
contemplado por quem deveria implementá-lo. Ainda que o Judiciário esteja
autorizando a internação compulsória de usuários de crack, com fundamento em
lei que autoriza tão somente a internação de pessoas acometidas de transtorno
mental, não se está diante da busca do Judiciário para implementação de
direitos, mas como salvaguarda para suas violações. Não se trata de medida em prol da saúde. Mas
de higienização em favor de interesses econômicos. Se o Judiciário continuar a
atuar em conjunto com o Poder Executivo visando a violação dos direitos das
pessoas, ao invés de garanti-los, isto poderá resultar em sério problema na sua
relação com a sociedade.
No caso de São
Paulo, a ação focará fundamentalmente a área da Cracolândia, localizada no
centro de São Paulo, e alvo do mercado imobiliário. Esse tipo de internação
então pode facilitar uma espécie de "higienização" do local? Como
você avalia?
Em todo o Brasil tem
sido assim. Em alguns estados isto é pior. Em São Paulo, a ação foca
fundamentalmente a área da Cracolândia, localizada no centro de São Paulo e
alvo do mercado imobiliário. No Rio de Janeiro, o primeiro momento foi de
expulsão da população de rua da faixa litorânea da Zona Sul da cidade. Esta
atuação do Estado na Zona Sul do Rio de Janeiro propiciou uma valorização
imobiliária jamais vivenciada. Naquele instante igualmente foram instaladas as
Unidades de Polícia Pacificadora, UPPs, visando ampliar as áreas edificáveis a
fim de atender à indústria da construção civil e especuladores imobiliários.
Trabalhadores que
dormem nas ruas, pela dificuldade de voltar para casa depois de jornada de
trabalho, são admitidos no Rio de Janeiro no centro da cidade, mas não na Zona
Sul. Usuários de crack não são admitidos sequer no centro da cidade, por isso
foram para a periferia na Zona Norte. Hoje, sequer na Zona Norte estão podendo
ficar. Nas mesmas situações, pessoas não têm sido objeto de qualquer ação
estatal em áreas de pequeno valor econômico, como a Baixada Fluminense no
entorno da Baia de Guanabara, no Rio de Janeiro. A política que se tem
implementado em desfavor destas pessoas é equivalente às que o nazifascismo
promoveu com aqueles que consideravam não serem dignos de qualquer direito, nem
o de viver.
O senhor acredita
que pode haver relação entre esse tipo de medida com as ações direcionadas à
promoção da Copa?
Sediar os jogos da
Copa do Mundo e as Olimpíadas é o maior tiro no pé que poderíamos ter dado. Os
recursos públicos que poderiam ser implementados em obras de infraestrutura,
saúde e educação estão sendo canalizados para o lucro da cartolagem e das
empreiteiras. Os orçamentos da União, dos estados e dos municípios estão sendo
empregados em sua maior parte com estas despesas, sem retorno para os cidadãos.
Os vínculos do Governo do Estado do Rio de Janeiro com empreiteiros, que em
decorrência de suas condutas em Paris, possibilitou que sejam chamados de
integrantes da “República do Guardanapo”, nos possibilita conhecer a que
interesse servem. A mesma empresa que atua no Rio de Janeiro está a serviço de
governos em outros estados. Também está atrelada a interesses escusos, como
poderia ter comprovado a “CPI do Cachoeira”, caso tivesse apurado com seriedade
o que se evidenciava. Os desmandos em desfavor da sociedade estão parcialmente
cobertos pelos guardanapos que ostentavam na cabeça, mas por serem curtos
deixam parte do que se faz à mostra.
E para finalizarmos
meritíssimo, o Judiciário está prevendo a existência de algum tipo de
ilegalidade nesse tipo de internação, como a elaboração de laudos médicos
tendenciosos? Se sim, em que base pode julgar uma internação se não houver a
certeza de lisura em todo o processo?
As razões para
julgar hão de ser jurídicas. A racionalidade que se espera do Judiciário há de
impor que decida fundado no alegado e provado. Juízes quando aderem às razões
de Estado ou em colaboração com implementação de políticas públicas, acabam por
endossar ilegalidades. O Judiciário não há de ser um colaborador do Executivo,
mas um garantidor dos direitos de quem os detenha. Entretanto, Pinheirinho é um
exemplo emblemático de como as administrações dos tribunais têm agido em
parceria com interesses que não são da sociedade. A comunidade psiquiátrica
está eufórica com o poder que seus profissionais reconquistaram, mas a
possibilidade de abusos e tendenciosidades não está sendo percebida, nem mesmo
por alguns destes profissionais. O momento é de entorpecimento pela ideologia e
pelos interesses da classe dominante, em desfavor dos excluídos, notadamente
dos usuários de crack, considerados párias.
___________
O Estado de S. Paulo 26.01.2013
Misérias fora de ordem
‘Há uma inversão de valores, um discurso sobre o
crack que perverte os reais problemas que estão ocorrendo na cracolândia’, diz
o psiquiatra Dartiu Xavier da Silveira
Uma overdose de
polêmica tomou conta de São Paulo nos últimos dias por causa de medidas do
programa de incentivo à internação de dependentes químicos, bancado pelo
governo do Estado.
No meio desse
caminho, tinha uma pedra: o crack. De um lado, viu-se o drama dos aprisionados
pela droga e dos familiares desesperados por ajuda. De outro, muita
controvérsia em torno da internação forçada - vista ou como política de saúde
pública ou como "limpeza urbana" dos frequentadores das cracolândias.
Diante da
complexidade da questão, o Aliás conversou com dois
especialistas: os psiquiatras Dartiu Xavier da Silveira e Ana Cecília Marques,
ambos professores da Unifesp. Eles têm opiniões divergentes e defendem posições
a partir de sua experiência de campo. Em um ponto, porém, concordam: do jeito
que está, a tragédia brasileira do crack não pode mais ficar.
Confira abaixo a
entrevista com Dartiu Xavier da Silveira:
Comecemos pela
internação compulsória para dependentes de crack: como o sr. analisa a medida?
O que se destaca
negativamente, a meu ver, é esta medida ser proposta como o principal mote de
uma política pública. Isso não faz sentido do ponto de vista médico. Internação
compulsória deve ser uma situação de exceção, não de regra. Está até prevista
em lei de 2001. Mas o governo paulista a divulgou como política pública nova,
portanto generalizante. Não sou contra a internação compulsória. Sou contra a
ideia da internação compulsória como uma medida generalizada. Tal tratamento
funciona para apenas 2% dos pacientes internados contra a vontade. Já trabalhei
na Europa e nos Estados Unidos com estudos e tratamentos para dependência
química. No Brasil, fundei o Proad (Programa de Orientação e Atendimento a
Dependentes), o primeiro serviço gratuito para dependentes em São Paulo.
Atualmente atendemos 700 consultas por mês. Desde 1993, lido com dependentes de
crack. E, desde 1996, com populações de rua. Assim, sei que as internações
involuntárias e compulsórias são indicadas para situações muito específicas, em
que o indivíduo apresenta problema mental grave associado, como a psicose com
delírio e alucinação, e o risco de suicídio. Fora isso, não.
O governo paulista
diz que a internação compulsória mira só a ‘exceção da exceção’.
Não tem sentido. Se é
para uma pequena minoria, como pode ser anunciada como mote da ação? O mote
deveria ser uma atenção global, integrada e multidisciplinar ao problema. As
populações de rua são privadas de tudo que se possa imaginar. Muitos indivíduos
nunca foram institucionalizados, nunca tiveram família, nunca tiveram casa.
Tenho uma história emblemática para lembrar. Uma menina de 13 anos que usava
crack me dizia: "Tio, nem gosto do
efeito da droga, não. Mas sabe o que é? Para poder comer, preciso me
prostituir. E, para ter relação sexual com um adulto, preciso me drogar, senão
não suporto a dor". E o que a gente quer fazer? Quer pegar uma menina
dessas e jogar na internação compulsória? O problema dessa menina é muito maior
que a droga. Há uma inversão de valores aí, um discurso sobre o crack que
perverte as reais questões que estão acontecendo na cracolândia. A repressão
deveria ser dirigida ao tráfico internacional, aos traficantes. E não ao menino
de rua que usa crack.
Muitos criticam a
ausência do Estado. Mas, agora que o Estado se posiciona, também é alvo de
críticas.
Precisamos da
intervenção do Estado. Mas no papel de agentes de saúde, para propiciar o
cuidado necessário a essas pessoas. Não adianta dizer "vamos resolver a questão
das drogas" e botar policiais na rua, em ações truculentas. Ainda hoje há
uma confusão sobre as diferenças dos aspectos criminais e médicos nas questões
das drogas. A própria legislação é muito ambígua para discernir quem é o
usuário, quem é o traficante. E, ainda, quem é o usuário ocasional, quem é o
dependente químico. Não é simples. Mas jogam todos na mesma vala. Aliás, nem
todo usuário de crack é dependente. Outra ambiguidade: a confusão entre a
política e a questão médica e psicológica. Agora, se o Estado se autoriza a
propor internações involuntárias e compulsórias a essas populações de rua,
parece-me uma medida política, midiática e higienista. Se o mote fosse
realmente o cuidado do crack - e se a melhor abordagem fosse a internação
involuntária/compulsória -, penso que, por uma questão de coerência, isso
deveria ser estendido à Avenida Paulista, aos bairros mais nobres da cidade.
Por que só na cracolândia? Porque incomoda muito ver as pessoas se drogando na
rua. Se a indicação fosse médica, você também pegaria involuntariamente os mais
favorecidos. O que incomoda é a visibilidade - não só da droga, mas dessas
pessoas. No consultório onde atendo, recebo pacientes de classe média alta que
consomem crack entre quatro paredes. Médicos, jornalistas, executivos... São
exceções, mas há. Essas pessoas não têm a mesma visibilidade das pessoas de
rua. Quer dizer, temos uma miséria social antes de tudo. A droga é só um
elemento. A internação deve ser uma decisão médica - e, então, como defendê-la
como decisão jurídica? É muito mais cara (e menos eficaz) que o trabalho
ambulatorial que já realizamos.
Por quê?
Por exemplo, há uma
iniciativa municipal em que uma equipe de psiquiatras faz internações
involuntárias de pessoas em situação de rua. Como não tem condições de tocar
esse regime de internação em hospitais públicos, recorre a hospitais
particulares. Mesmo nos melhores modelos, como nos convênios com o Hospital
Samaritano com o Said (Serviço de Atenção Integral ao Dependente), uma
internação custa quase R$ 20 mil por mês. Há um lobby de instituições
psiquiátricas, uma máfia branca interessada nesses recursos. Há muitos
interesses escusos. Por isso, muitos médicos defendem a internação compulsória,
pensam nos próprios interesses financeiros.
Mas não seria ingênuo
esperar pela internação voluntária desses dependentes?
Ingênuo? Não. Ingênuo
é não fazer nada e, na hora em que a situação se agrava, recorrer a uma medida
de exceção. Essas populações de rua foram abandonadas pelo Estado. Perderam a
cidadania, a moradia, a saúde. Agora, com essas novas medidas, perderam mais
direitos: a liberdade individual e o direito de ir e vir. Há uma leitura
equivocada nessa história. Pensam que a miséria social é uma decorrência da
droga, o que não é verdade. É decorrência da omissão do Estado. A droga não é a
causa, é uma das consequências. Então, a cracolândia deve ser tratada como uma
questão de saúde pública, e não de segurança pública. Eu continuo trabalhando
na cracolândia atualmente. Um trabalho de formiguinha, muito difícil e lento.
Abordamos essas pessoas, fazemos intervenções com consultórios de rua, levamos
para atendimento ambulatorial no Caps-ad (Centros de Atenção Psicossocial
Álcool e Drogas, iniciativa municipal). Nas situações extremas, também
recomendamos internação. Tudo é trabalhado a partir de uma rede assistencial.
Mas, quando o governo entra com uma política intervencionista e ações policiais
como a de janeiro de 2012, todo nosso trabalho é prejudicado. Perdemos a
confiança que demoramos tanto para conquistar entre as populações de rua.
Atitudes agressivas e repressivas só afastam essas pessoas. Então, é um
retrocesso para nós. Além disso, a psiquiatria cometeu muitos abusos no
passado. Sou psiquiatra, vejo isso todos os dias: hospitais abrigando usuários
de drogas sem nenhuma indicação médica. É um risco grave e sério de
manicomialização do tratamento. Na primeira ação na cracolândia, a de janeiro
de 2012, tive a impressão de que estávamos retornando à era da psiquiatria
medieval. Entramos até num questionamento ético: qual é o direito do Estado de
intervir assim na vida de alguém? É uma afronta às liberdades individuais. Não
se pode fazer um isolamento nos modelos das prisões. E internação compulsória é
isolamento social, não tratamento. É o que vejo na prática. Se tivéssemos um
aparelho constituído e um método eficaz, eu defenderia a iniciativa. Se não é
assim, qual é o sentido? Em São Bernardo do Campo, um dos hospitais conveniados
com o governo do Estado estava sob intervenção e investigação por maus-tratos aos
pacientes. Como se pode propor uma internação involuntária em um hospital
assim? E isso foi no ano passado, não na história distante da luta
antimanicomial.
O dependente de crack
é capaz de discernir o que é melhor para ele?
Tenho discutido muito
a questão da autonomia com o pessoal da área jurídica. A perda da capacidade de
autodeterminação, que configura uma situação jurídica que justifica uma
internação compulsória, é exceção. A maioria das pessoas envolvidas com drogas
não perdeu essa capacidade de autodeterminação - isso vale para maconha, crack,
álcool, etc. O que define a dependência é a perda do controle em relação ao
produto. Se o indivíduo perde o controle no consumo de álcool, ele é incapaz de
responder pelos próprios atos? Não. Ele escapará da prisão se cometer um crime?
Não. Quer dizer, a perda de controle vale apenas para aquele ato. Mas dizer que
esse indivíduo perdeu a noção de identidade e o julgamento entre certo e
errado? Não. Qual é o limite? A capacidade de fazer o julgamento da realidade.
Perdendo isso, entramos na psicose. A maioria dos dependentes de crack pode
estar consumindo compulsivamente a droga e pode estar desesperada a ponto de
roubar para poder comprar mais, mas não perdeu a capacidade de diferenciar o
certo do errado. Quer entrar com medidas jurídicas? Sim, mas medidas voltadas
para os delitos - o roubo, por exemplo. E roubo não é doença mental, é crime.
O governador Geraldo
Alckmin se disse surpreso com o número de internações nos primeiros dias,
prometendo mais investimentos. Foi realmente surpreendente?
É difícil saber. Mas
é até natural um movimento dessa ordem, pois a repercussão na mídia desperta
uma procura maior. E a maioria das pessoas ainda não entendeu a medida, não tem
uma visão crítica sobre as questões polêmicas, principalmente sobre a baixa
eficácia desse modelo de tratamento.
Qual o modelo mais
eficaz para tratar dependentes de crack?
O modelo
ambulatorial, com equipes multidisciplinares. Sei que é difícil trabalhar com
ele. É muito mais simples "decretar" a internação. Mesmo nesse modelo
ambulatorial, que considero mais sustentável, os resultados não são fáceis. A
maioria das ações ali não tem recursos públicos. A quantia que o governo
apostou nas internações compulsórias (R$ 250 milhões)... Nunca foi investido
nada parecido nas nossas ações. Nos consultórios de rua, por exemplo, temos
ONGs e voluntários, pois não há investimento público consistente. E considere
também que os Caps-AD são iniciativas da Prefeitura com respaldo do governo
federal - e são as formas preconizadas pelo Ministério da Saúde como a forma
privilegiada para tratamento de dependência química. E embora conte com
profissionais muito competentes, o Cratod (Centro de Referência de Álcool,
Tabaco e Outras Drogas, iniciativa estadual) tem uma postura diferente, numa
linha do antigo modelo americano, mais restritivo e repressivo. O Caps-AD
trabalha numa linha mais europeia, que privilegia o acolhimento. Por exemplo:
não temos uma visão apriorística, não dizemos "vamos acabar com as drogas
agora". Mas vamos ouvir essas populações para descobrir como podemos
ajudar. Não é à toa que os Estados Unidos estão mudando de modelo: eles
constataram que a famosa guerra contra as drogas já foi perdida. Precisamos
pensar em alternativas. Agora, se os Estados Unidos, com os recursos que têm
para investir em saúde, já notaram isso, por que nós ainda estamos batendo
nessa tecla? Devemos priorizar intervenções mais humanizadas. Precisamos
proporcionar acolhimento, não segregacionismo.
A proposta da ‘oferta
controlada de drogas’ daria certo no Brasil?
Conheço algumas
experiências de uso controlado - nos Estados Unidos e no Canadá, além de países
europeus como Espanha, Holanda e Suíça. Funciona, mas para uma parcela
específica dos pacientes: usuários crônicos de longa data, que já tentaram os
outros modelos de tratamento, sem sucesso. Na esfera da redução de danos, são
medidas válidas, a partir da seguinte constatação: nos modelos de tratamento
tradicionais ancorados na abstinência, como preconizam Ana Cecília (Marques) e
outros, as melhores taxas de eficácia do mundo não passam de 35%, 40%. Quer
dizer, mesmo com os melhores recursos não conseguimos ajudar nem metade das
pessoas. O que fazer com os 60%, 65% restantes que não mantêm a abstinência?
Eles dizem: olha, o dependente não parou, foi um insucesso terapêutico, entra
na estatística e acabou. Não se faz mais nada. Na minha perspectiva, as pessoas
que não respondem ao tratamento e não ficam abstinentes devem receber outras
estratégias para diminuir danos. As propostas de uso controlado fazem parte
dessas estratégias. No Proad, atendo em média 150, 200 consultas de crack por
mês. Temos uma taxa de sucesso de 1/3, que abandona o crack totalmente. Os
outros 2/3, não. Então, tentamos diminuir a frequência de uso para que o
indivíduo tenha uma qualidade de vida melhor, um desempenho profissional
razoável. Um paciente me disse certa vez que a maconha o ajudava a diminuir o
uso do crack. A partir disso, fizemos uma experiência controlada com 50
dependentes de crack usando maconha, com controle rigoroso e uma série de
variáveis para ter aferição científica, com acompanhamento detalhado por um
ano. Resultado: 68% abandonaram o crack depois dessa experiência, que foi
relatada no Journal of Psychoactive Drugs, uma revista científica da
Califórnia. Em algumas experiências no exterior, há ainda a possibilidade de os
médicos fornecerem o produto ou prescreverem a droga. Isso começou na
Inglaterra no início do século 20, quando os médicos britânicos foram
autorizados a prescrever heroína para soldados dependentes que voltaram da
guerra mutilados. É preciso esclarecer que a política de redução de danos não
se opõe à política de abstinência. Elas são complementares, não antagônicas.
Cada caso é um caso. A internação compulsória pressupõe a da abstinência, o que
é louvável. Mas funciona menos. No dia em que for liberado, o dependente terá
uma recaída.
O status de epidemia
do crack é real?
Como não temos nem
estrutura de atendimento adequada, não podemos dizer se e quanto aumentou o
consumo de crack. A quantidade de dependentes que me procurava em 1996 e em
2012 é praticamente a mesma. O que há é mais visibilidade.
_________
O Dia 17.11.2012
'Violência policial gerou onda de crimes em São Paulo'
LUISA BUSTAMANTE
Rio - Ex-secretário Nacional
de Segurança Pública, o
antropólogo Luiz Eduardo Soares diz que a onda de crimes em São Paulo tem
origem na violência policial. Ele ressalta que, apesar de os números de
homicídios dolosos estarem em crescimento por lá, são inferiores aos
registrados no Estado do Rio.
Foto: Fernando Souza / Agência O Dia
- A que o sr.
atribui essa violência em São Paulo?
- Os casos de mortes provocadas por
ações policiais se acumularam ao longo dos anos em São Paulo sem nenhuma
providência por parte do governo e das autoridades de segurança. Muitas vezes,
os policiais matam o suspeito como se pudessem condená-lo à morte e executá-lo.
A explosão da violência em tem aí sua origem. É preciso deixar claro o que a
Constituição determina, coincidindo com as Declarações Internacionais dos Direitos Humanos: policiais estão
autorizados a usar a força de modo comedido, de acordo com o risco envolvido
para si mesmo e para potenciais vítimas inocentes. Ocorre que, muitas vezes, os
policiais não cumprem a lei.
- Quais são
os efeitos dessa postura?
Em vez de garantir direitos e fazer
respeitar a lei, que é sua função, a polícia agiria como extensão da
criminalidade, à margem da legalidade, alimentando o ciclo da violência. As
polícias fluminenses estão entre as mais violentas do mundo. Entre 2003 e 2011,
elas mataram 9.231 civis. Estamos falando de duas instituições policiais
atuando junto a uma população de 15 milhões de habitantes. A média supera mil
por ano. Para que se tenha uma ideia de quão absurdos são esses números, os
Estados Unidos tem cerca de 300 milhões de habitantes e aproximadamente 21 mil
polícias (porque elas são pequenas e distritais, em sua maioria), mas elas
matam, em média, 350 pessoas por ano. E esse número já é muito alto. A boa
notícia, é que os autos-de-resistência
vêm decrescendo, nos últimos dois anos, apesar de continuarem existindo.
- Como isso
estimula a violência?
- Se as execuções extra-judiciais
continuam a acontecer impunemente, tendem a se tornar mais frequentes. O
resultado da 'política do confronto' é a perda do controle dos policiais e um
processo de realimentação da violência, que segue a terrível lógica do olho por
olho, dente por dente. Quando isso ocorreu no Rio, os bandidos investiram em
armamento pesado, adotaram a tática terrorista de matar policiais fora do
serviço. A corrupção explodiu e os acordos ou 'arregos' entre bandidos e
segmentos policiais se multiplicaram em alta velocidade. É importante
esclarecer o seguinte: quem defende a liberdade para os policiais agirem sem
escrúpulos legalistas, aplicando a violência para combater o crime acaba também
estimulando a adoção de práticas que condenam as instituições policiais à
degradação e ao enfraquecimento, o que interessa aos criminosos.
- A violência
aqui é maior que em São Paulo?
- No estado do Rio, o número de
homicídios é bem maior, proporcionalmente, isto é, se levarmos em conta o
número de habitantes. A diferença favorável ao Rio é o fato de que, por aqui,
os números vêm caindo, enquanto, no estado de São Paulo, estão aumentando,
aceleradamente. Até mesmo a quantidade dos "autos de resistência",
que se referem às mortes provocadas por ações policiais e que escondem, com
frequência, execuções extra-judiciais, apesar de ainda elevadíssima, está
caindo, no Rio, e crescendo, vertiginosamente, em São Paulo.
_________
Agência de Notícias das Favelas
Entrevista com a socióloga Vera Malaguti Batista
________
Observatório de Favelas 17.10.2012
Milícias
"low profile"?

Thiago Ansel
Prisão domiciliar,
limpeza de ruas, pintura de muros e outros serviços comunitários. Estas são
algumas das “penas alternativas” impostas atualmente por grupos milicianos a
quem ousa violar seus códigos de conduta em áreas da Zona Oeste e, em menor
escala, da Zona Norte e da Baixada Fluminense. A criatividade dos sistemas
punitivos, que não corresponde ao fim dos castigos violentos, é um componente
do novo perfil das milícias que atuam no Grande Rio. A violência -- que
continua extrema -- passou a ser usada de modo a chamar o mínimo de atenção
possível. As penas mais duras, ao invés de envolverem rituais de suplício ou
humilhação públicos, são agora aplicadas com discrição.
A constatação do
desinteresse pela visibilidade por parte destes grupos criminosos é uma das
conclusões do estudo “No Sapatinho: a evolução das milícias no Rio de Janeiro”,
lançado pelo Laboratório de Análises da Violência da Uerj, com o apoio da
Fundação Heinrich Böll. De acordo com Ignacio Cano, um dos coordenadores da
pesquisa, as execuções sumárias nas áreas controladas por milícias passam a vir
acompanhadas mais e mais do desaparecimento dos cadáveres. “As mortes violentas
vem diminuindo e os desaparecimentos aumentando na cidade toda. Mas esta
evolução é mais marcada nas delegacias onde há atividade miliciana”, explica.
A pesquisa investigou
as reconfigurações destes grupos frente à rejeição de diversos atores sociais
de prestígio e às investidas do Estado para desarticulá-los a partir de 2008.
Em maio daquele ano, repórteres do jornal “O Dia” foram torturados por
milicianos do Batan quando faziam uma matéria no local disfarçados de
moradores. O fato seria o divisor de águas para a mudança do significado social
das milícias. Se havia incerteza sobre qual era o caráter destas organizações,
que chegaram a ser descritas inclusive por autoridades públicas como
“autodefesas” comunitárias contra o controle territorial por traficantes, agora
as milícias passam a ser interpretadas pelos grandes veículos de comunicação e
pelo Estado como organizações criminosas.
A violência contra os
jornalistas e o repúdio da mídia acabaram por contribuir para a aprovação da
CPI das milícias na Assembleia Legislativa, solicitada pelo deputado Marcelo
Freixo cerca de um ano antes. O Relatório da CPI trouxe ainda indícios
contrários à tese de que as milícias seriam autodefesas das comunidades.
Segundo o documento, existem até 171 territórios sob o controle destas
organizações. Destes, 119 (70%) jamais foram ocupados por qualquer facção
criminosa.
O relatório da CPI
indiciou sete parlamentares, 130 civis, 67 policiais militares e oito policiais
civis, além de membros de outras corporações públicas. Depois da CPI, um número
considerável de milicianos foi condenado e quase todos que ocupavam cargos
eletivos, acabaram por perdê-los devido a processos penais e expulsões por
quebra de decoro. A partir daí, as milícias pouco frequentam as páginas dos
grandes veículos de comunicação ou foram objeto de debate público.
Dawid Bartelt, diretor
da Fundação Heinrich Böll no Brasil, afirma que embora as milícias tenham
“sumido da mídia”, elas estão longe do fim. “O estudo demonstra que não há "(...)
a falta de alternativas nessas áreas fez com que estes grupos aparecessem aos
olhos das comunidades como 'mal menor'” motivo para se despreocupar, pois a
população dos lugares onde as milícias estão presentes continua sofrendo as
consequências. Estes grupos, continuam extorquindo, coagindo e aterrorizando a
população. Isto tem que preocupar o poder público”, analisa.
Além do envolvimento de
grande número de civis, recrutados nos territórios para vigiá-los, sem levantar
suspeitas sobre os líderes, a hipótese é de que, para manter tentáculos dentro
do poder legislativo, as milícias poderiam agora lançar candidatos
desconhecidos, menos explicitamente ligados aos seus grupos.
Por que na Zona Oeste?
Bairros como Campo
Grande, Santa Cruz e Jacarepaguá são líderes nas denúncias sobre crimes
cometidos por grupos milicianos entre os anos de 2006 e 2011. Segundo
pesquisadores e especialistas, existe uma combinação de fatores -- alguns
específicos da região e outros de maior abrangência -- que fazem da Zona Oeste
um solo fértil para o despotismo destas organizações criminosas.
Segundo o antropólogo
Luiz Eduardo Soares, entre as condições particulares que propiciam o
aparecimento e consolidação das milícias na Zona Oeste estão: a falta de
alternativas nessas áreas, que fez com que estes grupos aparecessem aos olhos
das comunidades como “mal menor”; a densidade demográfica, que tornou a Zona
Oeste alvo de cobiças eleitorais, conferindo aos donos do poder local um
patrimônio político considerável e, portanto, um instrumento de barganha
valioso; a desatenção da grande mídia para o que se passava fora das áreas
nobres da cidade; a cumplicidade de autoridades com as máfias locais (que tem
decrescido desde 2008); e o descaso do Ministério Público e da Justiça no
enfrentamento das condições que possibilitaram o aparecimento das milícias.
“O resultado agregado
da combinação destes e outros fatores converge para a supremacia do populismo
penal e da demagogia, sob a forma de penas mais duras e estímulos à
brutalidade, hipertrofiando a desigualdade no acesso à Justiça e realimentando
o racismo e os preconceitos de classe”, explica Soares.
De acordo com Ignacio
Cano, as condições que possibilitaram o surgimento de grupos milicianos na Zona
Oeste também tem relação com a negligência do Estado para com a região. “A Zona
Oeste é a zona de expansão demográfica e econômica da cidade. Isso significa,
por exemplo, que o transporte alternativo tem importância capital lá. Ao mesmo
tempo, é uma área esquecida do poder público e da sociedade carioca em geral, o
que abre espaço para a atuação de grupos clandestinos. Outro elemento
importante é a tradição de controle social violento, como grupos de extermínio
etc., o que também configura um cenário favorável para estes grupos, que
continuam uma velha tradição”, acrescenta.
A pesquisa coordenada
pelo sociólogo aponta uma queda do modelo de controle do espaço, baseado na
ostensividade. “No Sapatinho” aponta também uma tendência entre os moradores
destas áreas de reivindicar a presença de um “ator forte”, que “tome conta do
território”. “Agora não roubam porque a milícia está aí, entendeu?”, diz uma
entrevistada no estudo. “Quem é que dá segurança ao povo? Pra mim, só a
milícia”, declara outra.
Entretanto, a
legitimidade desfrutada por estes grupos entre alguns moradores das comunidades
que estão ou estiveram sob o seu controle é consequência do esquecimento destes
locais pelo poder público. É o que afirma Dawid Bartelt:
“Há nestas áreas
consequências psicossociais que merecem atenção como o fato de que muitas
pessoas passam a vivenciar a lógica da violência e chegam a se relacionar por
meio dela, perdendo o referencial do Estado. Portanto, há nestes lugares um
trauma coletivo e intergeracional deixado pela presença destas organizações
violentas”, ressalta.
Embora milicianos
tenham sido presos e expulsos de cargos públicos, “No Sapatinho” mostra que
hoje fica mais difícil desarticular estes grupos, uma vez que a atuação deles é
mais discreta. No entanto, anteriores a presença das milícias -- e favorecendo
o seu aparecimento -- estão a precária cultura cívica, legada pela fraca
presença estatal, e as políticas insensíveis à garantia de direitos, que
prosseguem impactando o dia a dia destes territórios.
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Revista de História 13/1/2009
“Essa é a questão: o corpo a serviço de quê? De si próprio ou de algo que o transcende?”
Jurandir Freire Costa
Mapas por todos os lados. Brasil pelos idos de 1600 à direita. Paris do século XVI à esquerda. Um ambiente para historiador nenhum botar defeito. Com um único e fundamental adendo: estamos em um consultório médico e nosso entrevistado, Jurandir Freire Costa, é psicanalista.
Professor do Instituto de Medicina Social (IMS) da Uerj, Jurandir é autor de Ordem médica e norma familiar (1979), um livro de referência entre historiadores. De lá para cá, tem participado ativamente da vida social do país em jornais, revistas e livros.
Estudioso da história da psiquiatria no Brasil, Jurandir também se ocupa de temas como violência, ética e o amor romântico. Esta é sua premissa: “O que a gente sofre mentalmente tem a ver com o que vivemos culturalmente”. Mais recentemente, viu-se obrigado a encarar a centralidade do corpo. E não foi fácil. Afinal, em sua formação médica como psiquiatra, nunca tinha visto sequer um caso de anorexia. De repente, houve uma enxurrada deles.
Nesta simpática conversa, falou da sua infância em Pernambuco, do período vivido em Paris, e afirmou ser impossível imaginar a história do Ocidente sem Freud. Para Jurandir, o corpo é o novo maestro. E se por um lado carrega um potencial de liberação, por outro traz o risco da servidão. Ainda assim, ele garante: “É um absurdo dizer que somos mais narcisistas ou egoístas hoje”.
REVISTA DE HISTÓRIA Colecionar mapas é um hobby?
JURANDIR FREIRE COSTA Acho lindos esses mapas antigos. Em primeiro lugar, são bonitos mesmo, esteticamente falando. Em segundo, me lembram muito uma máxima estóica de Marco Aurélio: “Logo esquecerás tudo, logo todos te esquecerão”. Não é muito agradável, mas é verdade. Os mapas nos lembram disso: como tudo passa, como imaginamos o mundo de uma maneira parcial, a partir de certa perspectiva, que outros que virão vão corrigir, vão dizer: “Não era assim”. [risos]
RH Quando chegou a Paris, a cidade ainda estava tomada pelos acontecimentos de 68?
JF Completamente. Quando chegamos, em 1970, aquilo ainda estava fresquinho. Paris era uma festa, como disse Hemingway. E foi lá que de fato me formei profissionalmente. Fiz minha residência em Psiquiatria, comecei a trabalhar no atendimento clínico e fiz o mestrado em Etnopsiquiatria na Sorbonne. Logo depois, voltamos para o Brasil.
RH Veio direto para o Rio?
JF É. Depois da abertura de Geisel. Nessa época, o Instituto de Medicina Social (IMS/Uerj), onde leciono até hoje, estava começando. Entrei na universidade para ser professor de Psiquiatria, mas acabei dando aulas também no mestrado de Medicina Social. Fui um dos primeiros professores do Instituto.
RH Ordem Médica e Norma Familiar (1979) foi um trabalho feito para o IMS?
JF Sim. E é um trabalho que faz certa aproximação com a História, não é? O meu objetivo era o seguinte: quando e como começa esse movimento que chamávamos então de “medicalização das famílias”? Quando é que se deu essa expropriação por técnicos da competência dos adultos para criar seus filhos? A idéia era fazer uma genealogia disso no Brasil. E para meu espanto e agradável perplexidade, essa mudança já havia sido muito bem descrita por historiadores e sociólogos brasileiros, dentro da linha de análise dos micropoderes, como Michel Foucault preconizava.
RH Gilberto Freyre estaria entre eles?
JF A meu ver, Gilberto Freyre é um autor conservador do ponto de vista político, mas fez uma coisa monumental: Sobrados e Mocambos. É um trabalho foucaultiano avant la lettre. Ele descreve muito bem a complexa rede de interesses econômicos e políticos que estavam em jogo. Os interesses das grandes corporações inglesas, das grandes famílias senhoriais, das corporações médicas que começavam a se afirmar e, finalmente, a vinda da Corte portuguesa para o Rio. Gilberto Freyre conseguiu traçar um desenho extraordinariamente rico do que resultou disso.
RH Como seu livro foi recebido pelos historiadores na época?
JF Lembro-me apenas de uma crítica feita na revista Dados (Iuperj), uma publicação de cientistas sociais. O autor apontava inúmeras falhas no trabalho, e ele tinha razão. Bom, isso não me fez desistir. Eu não era historiador. A fidelidade sociológica, antropológica ou histórica, para mim, não era mesmo muito grande. Queria mostrar outra coisa, que ainda hoje procuro: como o imaginário cultural acaba formando e interferindo no funcionamento subjetivo das pessoas.
RH Esta é uma premissa de seu trabalho?
JF Com certeza. É uma linha que vem desde a História da Psiquiatria no Brasil (1976). O que a gente sofre mentalmente tem a ver com o que vivemos culturalmente. Sei muito bem que certos quadros psiquiátricos existem nas mais diversas culturas. Agora, a maneira como o sofrimento se organiza, como se dá a relação entre quem cuida e é cuidado, isso varia enormemente e é definitivo no curso do diagnóstico e do tratamento.
RH Seria possível imaginar a História sem Freud?
JF A história do ocidente europeu, pelo menos, é impossível. Freud teve um impacto enorme nas ciências humanas, na Antropologia, na Sociologia e mesmo em alguns setores da História. E sua influência no cotidiano foi extraordinária. Por exemplo, os aspectos da obra de Freud, digamos, mais fáceis de serem absorvidos – o inconsciente, a sexualidade, o complexo de Édipo – foram tatuados na cultura com uma força imensa. A maneira como os pais educam seus filhos, o modo como encaramos o problema da sexualidade, o jeito como discutimos a liberação sexual, etc. As pessoas são freudianas sem saber.
RH Quando a dimensão corporal se tornou uma questão?
JF A partir dos anos 1980, sobretudo, começou a surgir uma série de problemas clínicos que não existiam antes: o fisiculturismo compulsivo, a bulimia, a obesidade mórbida, a anorexia. Uma extrema obsessão com a aparência física começou a se tornar evidente, forçando o corpo a se exprimir de um modo novo. Na minha formação como psiquiatra, nunca tinha visto um caso de anorexia. De repente, você tem uma enxurrada. Ora, é claro que só poderia ser alguma coisa no imaginário cultural que estava trazendo o corpo para o centro da formação da identidade.
RH Como isso se explica?
JF A hipótese com a qual eu trabalho em O Vestígio e a Aura (2004) é a de que o corpo começou a tomar o lugar de outras instâncias na constituição da identidade. O que eu quero dizer com isso? Antes, quando alguém se perguntava “quem sou eu?”, tinha como resposta: “sou politicamente conservador ou liberal, sou pai, sou mãe, sou católico, sou protestante, sou kardecista, sou comunista, sou socialista etc.”. Quando essas instâncias tradicionais – a política, a religião, a família etc. – que doavam nossas identidades começam a perder o brilho e o peso cultural, o indivíduo vai buscar normas de conduta em outro lugar. A profunda metamorfose das ideologias trouxe o sujeito para si, ou melhor, para essa dimensão de si que é o corpo. Ele está presente nesse cuidado com o check-up, nas tecnologias de scanners e tomografias, nas práticas new age e em religiões como o budismo. E esse reencantamento do corpo tem, por um lado, um potencial de liberação e, por outro, o risco da servidão.
RH Essa centralidade do corpo também existia em temos passados?
JF Existia, mas rebatida sobre outras ideologias ou visões de mundo. O corpo era um elemento no reforço ou na composição de uma ideologia. Por exemplo: no racismo, a centralidade do corpo é evidente. O corpo branco, imposto como norma biológica, estética e moral, justificava o modo de vida do europeu, enquanto os outros corpos tornavam patente para o racista a razão do atraso dos demais povos colonizados política, econômica ou culturalmente. A questão dos gêneros também. O corpo estava na pauta dos grandes debates do século XIX sobre as diferenças anatômicas do homem e da mulher. Lembram da chamada “Querela dos Ossos”? Dizia-se que a mulher tinha a bacia muito grande e a cabeça menor que a do homem. Ou seja: ela era feita para procriar, não para participar do espaço público.
RH Mas não havia patologias como a obesidade e a bulimia?
JF Não temos registro de que elas tivessem existido com a estridência de agora. Havia, é claro, uma preocupação com a beleza: todas as culturas têm os seus padrões de beleza, seus critérios para se decidir o que é bonito e o que é feio. Neste sentido, é óbvio, não há cultura sem corpo. Não somos anjos desmaterializados. Mas a preocupação com a estética se dava em outros termos e intensidades. As divisões eram muito grosseiras. Ou você era belo ou feio, velho ou jovem. E as regras eram diferentes. Um jovem no século XIX queria parecer velho. Ele deixava a barba crescer, começava a ficar encurvado, engordava um pouco. Se sentisse artrite, maravilha! [risos]
RH O que mudou?
JF Agora é o contrário. As ideologias políticas – ou o que restou delas – estão começando a servir de linha auxiliar para o corpo. Dou como exemplo o novo funcionamento do capitalismo. É preciso trabalhar, as empresas têm que ser eficientes e competitivas no mercado, mas desde que você não enfarte, que não perca os cabelos, que não faça uma úlcera por estresse, etc. Observe que as religiões são descritas como “boas” e aceitáveis quando não reprimem o corpo. É o corpo quem comanda, ele é o maestro. O problema então é esse: o corpo a serviço de quê? De si próprio ou de algo que o transcende? Essa é a questão. Quando o corpo começa a ganhar uma autonomia que ele não devia nem podia ter, começam os problemas.
RH É o que você chama de “cultura das sensações”?
JF Sim. Quando lancei mão desse conceito, queria mostrar o porquê dessa proeminência do corpo hoje. Eu opus a idéia de “cultura de sensações” ou “felicidade sensorial” à noção de “cultura de sentimentos” ou “felicidade sentimental”. O fato é que o ideal de felicidade mudou. A noção de família, por exemplo. As relações começaram a ser mais experimentais. Os casamentos se tornaram menos estáveis. E quando as pessoas começam a casar e descasar, isso tem reflexos que nem imaginamos. Desde a idéia de divisão de patrimônio até a formação de uma cultura um pouco niilista, descrente da felicidade dos sentimentos. Pelo menos do sentimento como o romantismo definiu.
RH Como assim?
JF As pessoas querem se prevenir contra decepções. O movimento cultural é o de duvidar de que vai dar certo. Ora, se a entrega ao sentimento romântico pode produzir muito sofrimento, a saída é usufruir do meu dia-a-dia, cultivar relações sexuais satisfatórias que não exijam compromisso emocional. Isso fez com que as sucessivas experiências de relacionamento sentimental, como o amor romântico, perdessem grande parte de seu encanto. Na verdade, estamos passando por um período de transição. Vivemos em um mundo dividido entre a “cultura dos sentimentos” e a “cultura das sensações”. Pois ainda temos saudade dessa “época sentimental”. Ela é ainda muito marcante, criou um imaginário cultural extraordinário. A música, a literatura e o cinema são filhos do romantismo amoroso. Hoje em dia, as pessoas ainda são capazes de chorar baldes de lágrimas com histórias sentimentais. Quase toda a música popular brasileira, por exemplo, funciona nessa chave: “Ela me abandonou”, “Eu deveria ter desconfiado”, “Vai embora maldita, agora arranjei outra”.
RH Qual é o papel do corpo na concepção que temos de nós mesmos?
JF É gigantesco. Distinguimos fundamentalmente duas dimensões do corpo: o esquema e a imagem corporais. O esquema corporal é inconsciente e inato. Por volta de um ano e meio, uma criança é capaz de localizar os dedos da mão e do pé. Ela sabe onde está sua cabeça e as demais partes de seu corpo. E isso é absolutamente fundamental para a subjetividade. A primeira experiência de si é a experiência do esquema corporal. É o que nos faz perceber que somos diferentes da terra onde pisamos e de todas as outras coisas nas quais esbarramos. Já a imagem corporal é aprendida no contato com o outro. E essa é a que causa mais problemas. É da imagem corporal que dependem todas essas distorções no cuidado de si.
RH O corpo não teria se transformado em uma espécie de refúgio?
JF Claro. Existe essa dimensão um tanto ilusória de que o corpo pode ser controlado. O filho vai embora, não quer saber de mim; minha mulher (ou marido) me deixou; o político e o empresário não ligam se estou bem ou mal; Deus me abandonou ou eu não acredito mais nele. Então, em que posso confiar? Essa é a ilusão. É que a matéria está aqui. Eu toco, eu vejo se emagreci, se engordei. Aparentemente, eu a controlo. Mas não tem jeito: nós vamos adoecer, envelhecer e morrer.
RH Como entender a proliferação das tatuagens e do piercing?
JF É um pouco diferente. Na idéia de adorno do corpo como provocação, como desafio às normas tradicionais, o que existe é uma simples e diferente manifestação de estética corporal. Entre o piercing e o batom ou o brinco, vejo apenas uma questão de grau. Não se conhece nenhuma sociedade na qual os indivíduos tenham se contentado em nascer e morrer com o corpo que têm. Nas sociedades etnológicas, por exemplo, as mulheres punham aquelas argolas para o pescoço crescer ou artefatos parecidos nos lábios. Na China tradicional, era habitual diminuir o tamanho dos pés das mulheres por meios mecânicos. A diferença é que tudo isso era feito em nome do ritual, fazia parte de algo maior. A tatuagem e o piercing se parecem com a maneira de se vestir das pessoas da contracultura nos anos 60.
RH E as práticas mais extremas, como a mutilação?
JF Aí muda. Uma coisa é você botar brincos no corpo e se tatuar. Outra completamente diferente é se pendurar pela pele ou se amputar. É brincar com fogo. A gente está dando corda ao corpo, não é? Coisas impensáveis até bem pouco tempo atrás começam a vir à tona. Quando incentivamos essa cultura do corpo, o que acontece? Vem o pacote completo. Vem o bom e o saudável, e vem o monstruoso.
RH Como tratar isso?
JF Ainda não sabemos ao certo. O que parece interessante fazer é entender que muitos dos conflitos corporais exigem um tratamento que não seja exclusivamente o tratamento pela palavra. Daí a importância da ioga, do shiatsu, do pilates, do RPG, da acupuntura, etc. São atividades que influenciam nossa imagem corporal alterando a percepção de nosso esquema corporal. Essa idéia ainda não é unânime entre os psicanalistas. Eu e outros colegas, no entanto, estamos convencidos de que é uma idéia frutífera, dado que a ênfase excessiva posta na corporeidade está produzindo quadros clínicos que a terapia pela palavra, sozinha, pode não resolver. E o que é mais importante: os resultados são ótimos. Algumas pessoas se beneficiam muito disso.
RH Costuma-se associar a questão do corpo ao narcisismo. Mas você pensa diferente.
JF Isso. Este, aliás, é o tema do meu próximo livro. Acho um absurdo dizer que somos mais narcisistas ou egoístas hoje do que fomos ontem. As pessoas sofrem mais, são mais isoladas e descrentes, pensam muito em si por sofrimento, mas não se tornaram monstros nem psicopatas morais. Isso não é verdade. Elas estão o tempo inteiro pensando: “Como é que eu poderia ser melhor? O que eu estou fazendo? Será que eu não estou sendo muito materialista?” Neste sentido, continuam iguais. Quando ocorrem tragédias, por exemplo, você vê uma solidariedade de imediato. A mesma coisa em relação às desigualdades sociais. Nunca houve tanta gente mobilizada e engajada em trabalhos voluntários no Rio de Janeiro. Como é que se pode dizer que vivemos em um mundo narcisista? Eu acho isso tão tonto quanto dizer que vivemos em uma sociedade de prazer.
RH Por quê?
JF Vivemos em uma sociedade de tudo, menos de prazer. O espetáculo, a publicidade, em suma, a visão de mundo hegemônica dizem: “Goze, goze, goze”. Agora, daí a gozar... é outra história! Só estamos autorizados a comer meia folha de alface. Temos que nos matar de exercícios físicos, fazer palavra cruzada para evitar Alzheimer. Check-up cinco vezes por ano. Está entendendo? E um medo pavoroso de câncer. Nunca houve tanta propaganda em torno de pratos exóticos e refinados no Brasil, da cozinha tailandesa à peruana, passando pela do Tibete e a do Brunei. Mas o sujeito não pode usufruir de nada, absolutamente nada disso. Ele vai ficar com medo do colesterol, de ser olhado como um estulto, um irresponsável, pelos amigos: “Neurótico, não cuida de si. Vai fazer psicanálise, ioga” [risos]. Então, abre-se mão do prazer, que se tornou, paradoxalmente, algo extremamente escasso. E isso numa cultura que se auto-representa como “hedonista”.
___________
Banco de Injustiça 18.06.2012
A voz da
experiência
Policiais e
juízes que promoveram a guerra às drogas reconhecem a ineficácia dessa
política.
Entrevista com a juíza Maria Lúcia Karam.
Quando defensores dos direitos
humanos criticam a guerra às drogas, muitos aplaudem, mas ninguém se
surpreende. Quando são os políticos os que desaprovam o modelo repressivo,
alguns acham encorajador, mas a maioria desconfia das verdadeiras intenções por
trás do discurso. Mas quando são os policiais e demais agentes encarregados de
colocar em prática a repressão às drogas os que falam da ineficácia dessa
abordagem, ninguém fica indiferente.
É com essa ferramenta de alto
impacto que trabalha a Law
Enforcement Against Proibition (LEAP), uma organização internacional
formada por agentes da lei que defende a legalização das drogas como a melhor
saída para reduzir a violência gerada pela guerra às drogas.
A LEAP Brasil iniciou
oficialmente seus trabalhos com a formação de sua mesa diretiva em abril
passado. A organização conta com 47 agentes da lei de 12 estados da federação:
32 deles são policiais civis, militares e federais; 12 são juízes; dois são
promotores; e um é das Forças Armadas. Além disso, outras 227 pessoas fazem
parte da LEAP Brasil como apoiadores.
A juíza Maria Lúcia Karam,
fundadora e atual presidente da organização, explica por que a legalização das
drogas seria a única saída para a atual armadilha gerada pelo modelo
proibicionista vigente que causa violência, superlotação carcerária e
dependência das drogas.
Como a senhora chegou à conclusão
de que a legalização é o caminho certo?
Sempre tive a convicção de que
não se podia punir a posse de drogas para uso pessoal, pois é inconstitucional.
É uma conduta privada que não atinge a terceiros. Em uma democracia, o Estado
não pode intervir.
Eu sempre absolvi ou rejeitei
denúncias de acusações de posse de drogas para uso pessoal, mas fui compreendendo
que o grande problema era a criminalização do tráfico que veio crescendo.
Poderia explicar?
Eu ingressei na magistratura em
1982. A partir da década de 1980, foram se intensificando as condenações e
prisões por tráfico até chegar à atual situação. O Brasil hoje tem a quarta
maior população carcerária do mundo e, como aconteceu em outros lugares, como
nos Estados Unidos, o grande responsável por esse crescimento desmesurado da
população carcerária são as condenações por tráfico de drogas. Além disso, tem
a questão da violência: 20% dos homicídios do Rio são praticados por policiais
em ações contra o tráfico de drogas.
É uma guerra…
Sim, mas não é uma guerra contra
“coisas”, é uma guerra contra pessoas; contra produtores, comerciantes e
consumidores dessas drogas e, principalmente, contra os mais vulneráveis dentro
desses grupos. Os principais alvos dessa repressão no Rio são os pobres, os
marginalizados, ou seja, as pessoas que moram nas favelas, na periferia.
Compreendi que essa repressão
causa muito mais danos do que as próprias drogas, e me conscientizei da
importância de se legalizar e, consequentemente, de regular esse mercado.
Muitas pessoas até acham que o
sistema atual é ruim, mas o defendem porque pensam que o Estado não tem
condição de atender às novas demandas que surgiriam para o sistema de saúde
depois da legalização. Essa é uma preocupação da LEAP também?
Com a legalização, vamos estar
muito mais preparados para ter efetivamente uma política de saúde em relação às
drogas. Muito pior do que o fracasso da guerra às drogas, evidenciado até no
relatório da ONU, são os danos provocados pela proibição: não só a violência,
as mortes, as prisões, mas também no plano da saúde.
Um dos grandes enganos da
proibição é que ela se faz em nome da proteção da saúde, quando na verdade a
proibição causa mais danos à saúde. O mercado é entregue a pessoas que agem na
clandestinidade, portanto, não há nenhum controle sobre as substâncias e a
venda é indiscriminada, feita a qualquer um e em qualquer lugar, inclusive a
crianças e adolescentes.
A explosão do consumo é um medo
injustificado?
Esse medo que as pessoas têm de
uma explosão de consumo que traria uma demanda maior ao sistema de saúde eu
acho que não se realiza. As experiências que se tem da proibição do álcool nos
Estados Unidos demonstram isso, ou seja, não houve mudanças significativas no
consumo nem com a proibição nem depois da proibição – grosso modo, se manteve
estável.
Hoje, existem casos de países que
tratam a questão da droga de uma forma menos repressiva e não têm um consumo
maior do que os mais repressivos. O grande exemplo é a Holanda, com a política
de tolerância ao consumo de maconha nos coffee shops, e Portugal, que com uma
política menos repressiva, tem um consumo proporcionalmente menor de drogas
entre adolescentes do que os Estados Unidos.
Como aconteceu o seu encontro com
a LEAP e a convergência de pensamento com eles?
Eu sempre sustentei essa posição
de legalização de forma aberta desde os anos de 1990. Descobri que existia a
LEAP e fiquei maravilhada: uma organização de policiais, juízes, promotores, ou
seja, era tudo o que eu queria encontrar, meus pares. E em uma conferência
descobri que era uma organização internacional e imediatamente me afiliei.
A LEAP Brasil tem mais policiais
na ativa do que na LEAP internacional. Como se explica esta grande participação
de mais policiais ainda fardados?
É uma coisa que impressiona muito
aos membros da LEAP no Canadá e nos Estados Unidos. Claro que na LEAP
internacional tem policiais da ativa, mas a grande maioria é de aposentados e
impressiona muito a eles que a nossa maioria seja de policiais e juízes da
ativa.
Talvez seja pela maior
estabilidade no emprego que nós temos no Brasil: aqui você tem um concurso. Nos
EUA, o policial é contratado como em qualquer outro emprego. O motivo de haver
mais policiais do que juízes tanto na LEAP Brasil como de outros países tem a
ver com o fato de que é o policial quem está em contato direto com a realidade
e acabam sofrendo as consequências da violência.
Tem sido difícil convencer os
policiais a se filiarem à LEAP?
Não, tem sido fácil. Quando você
começa falar e discutir esses assuntos as pessoas se tocam, porque relacionam
com fatos que vivenciam no trabalho delas. Um dos primeiros policiais que se
filiou nunca tinha lido nada sobre a LEAP, mas quando fomos falar com ele,
percebemos que o discurso dele era o discurso da LEAP, porque é o resultado da
experiência.
Qual é a estratégia daqui para
frente?
Falar o máximo possível, usar a
força da voz dos policiais, juízes e promotores para levar essas informações ao
maior número possível de pessoas; oferecer nossos porta-vozes a quem quiser nos
ouvir. No momento, temos oito porta-vozes – precisa de treinamento e da
aprovação da direção internacional. Mais quatro estão escrevendo as biografias.
É um bom número para o Brasil.
O discurso da LEAP é o mesmo em
todos os países?
Sim, os princípios são os mesmos.
Lógico que cada país tem suas especificidades. Nos EUA, o dado mais importante
na guerra as drogas é o racismo. É impressionante a diferença com que as
pessoas são atingidas, a disparidade entre o número de presos por tráfico entre
negros e brancos.
Mas isso se aplica também no
Brasil…
Também, mas eu penso que no
Brasil tem uma coisa ainda mais grave que é a letalidade da guerra às drogas. O
maior foco são as mortes provocadas pela guerra às drogas que, de fato, atingem
também aqui de forma prioritária aos não-brancos.
Além dos policiais, os juízes
também estão falando alto?
O juiz tem outro poder, não só de
falar como de atuar declarando a inconstitucionalidade dessa política que, além
da violência que ela provoca, das mortes, das prisões, também é baseada em
regras que violam princípios fundamentais inscritos nas declarações
internacionais de direitos e nas constituições democráticas, como a
Constituição Brasileira.
E os juízes têm o poder de
declarar incidentalmente a inconstitucionalidade de uma regra, diferente do
sistema europeu em que só as cortes constitucionais podem declarar.
Temos alguns exemplos de juízes
que vêm fazendo isso, não só declarando a inconstitucionalidade da penalização
da posse para uso de drogas, mas também da própria venda. Para a venda entre
adultos é absolutamente inconstitucional a proibição, porque é um crime sem
vítimas, é um crime em que a suposta vítima concorda com a ação do acusado, e
também fere o principio da legalidade, ao se proibir uma conduta que tem
consentimento entre adultos.
Os defensores públicos também
podem ser membros da LEAP?
Com certeza. Qualquer pessoa que
concorde com os princípios e objetivos da LEAP pode, e queremos que seja
apoiador. Só não poderão ser porta-vozes os que não sejam agentes da lei,
porque a ideia da LEAP é que o próprio law enforcer seja quem fale para o
público.
__________
rev Carta Capital 22.02.2011
A droga da obediência
A pediatra
Maria Aparecida Moysés questiona o uso de remédios para focar a atenção. Ela
alerta: o efeito de acalmar é sinal de toxicidade.
Lívia
Perozim.
O Brasil é o
segundo maior consumidor mundial dos psicotrópicos chamados metilfenidatos,
prescritos para o tratamento de crianças diagnosticadas como portadoras do
Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH). Atrás apenas dos
Estados Unidos, consumimos, em 2009, 2 milhões de caixas, ante as 70 mil
consumidas em 2000. A droga, usada para tratar do que é considerado um
distúrbio neurobiológico, é consumida, entre outros, por crianças e
adolescentes desatentos, agitados e com dificuldades escolares. Apelidado de a
“droga da obediência”, por acalmar e focar a atenção, o medicamento leva os
sugestivos nomes de Concerta e Ritalina (produzidos pelos laboratórios Janssen
Cilag e Novartis, respectivamente). Seu uso, no entanto, provoca acaloradas
discussões. A pediatra Maria Aparecida Affonso Moysés, da Unicamp, é uma das
vozes médicas a questionar a existência de “uma doença neurológica que só
altere comportamento e aprendizagem”. Nessa entrevista, ela explica as reações
adversas da droga e afirma que os critérios para diagnosticar o TDAH são normas
sociais.
Carta Fundamental: O consumo de metilfenidatos no Brasil foi de 70 mil, em 2000, para
2 milhões de caixas, em 2009. A que a senhora atribui esse aumento?
Maria Aparecida Affonso Moysés:
Outro dado é que o
Brasil só perde para os Estados Unidos no consumo dessa droga, o que é
assustador, porque este não é um medicamento seguro. O metilfenidato tem várias
reações adversas. E veja só: não são efeitos colaterais, são reações adversas e
indicam a retirada imediata da droga.
CF: Que tipo de reação?
MAAM: No sistema
nervoso causa insônia, cefaleia, alucinações, psicose, suicídio e o principal
efeito chamado de Zumbi Like. Significa agir como um zumbi, ou seja, a pessoa
fica quimicamente contida em si mesma. Todos esses são sinais de toxicidade e
indicam a retirada imediata da droga. No sistema cardiovascular o remédio causa
arritmia, taquicardia, hipertensão, parada cardíaca. O risco de morte súbita
inexplicada em adolescente é estimado em 10 a 14 vezes maior entre aqueles que
tomam o remédio, segundo uma pesquisa de 2009 da Food and Drugs Administration
(FDA) e de National Institute of Mental Health (NIMH). Não é desprezível. Além
disso, interfere no sistema endócrino, na secreção dos hormônios de crescimento
e dos sexuais. É uma substância com o mesmo mecanismo de ação e as mesmas reações
adversas da cocaína e das anfetaminas.
CF: O metilfenidato é um estimulante usado para acalmar?
MAAM: Ele
acalma pelo efeito zumbi, uma toxicidade. Uma coisa que não se pensa muito é o
seguinte: o metilfenidato foca a atenção em quê? É aleatório. Ao conter as
atividades cerebrais de tal modo que você não se distraia, esta única coisa em
foco é eleita ao acaso. É o que passa pela frente. Não é uma substância que te
faz focar no estudo. Não existe isso.
CF: O Brasil perde apenas para os EUA no consumo de metilfenidatos. O
que aproxima as sociedades médicas desses países?
MAAM: A
sociedade médica brasileira, há 50 anos, era voltada para a França. Hoje é
voltada para os EUA. É quase mundial isso, mas na Europa ainda há uma
resistência. Somos muito dependentes da tecnologia e da cultura americana, que
impõe essa padronização e normalização das pessoas. A gente constrói uma
sociedade que quer uma criança cada vez mais ativa e ligada no mundo. Crianças
com 4 anos mexem no computador com várias janelas abertas ao mesmo tempo.
Quando elas chegam na escola, queremos que elas façam uma coisa só e não
questionem. Queremos crianças criativas, ótimas e submissas! Elas questionam,
querem saber o porquê. O “não” não basta mais. E os adultos não aguentam isso.
A sociedade é muito incomodada com os questionamentos e a gente acaba abafando
isso via substância química. Junte isso ao interesse financeiro das indústrias
farmacêuticas. Elas financiam cursos, viagens para médicos, vantagens em
clínicas. Curso para professores financiado por um laboratório é algo estranho.
Não sejamos ingênuos: eles estão, na verdade, treinando professores para
identificar futuros clientes consumidores de suas drogas. E esse é um peso
muito forte, que consta, inclusive, em relatório do departamento de justiça dos
EUA, mostrando como a Ciba-Geigy (Laboratório que viria, a partir de 1996, a
formar a Novartis) – financiava entidades de familiares e profissionais ligados
à defesa das pessoas com TDAH.
CF: Quais os efeitos desses psicotrópicos quando tomados por longo
período?
MAAM: Isso consta
em qualquer livro de farmacologia. Vários trabalhos mostram que existe um risco
de dependência química muito grande, além de uma dependência psíquica, porque a
pessoa se sente mais ativa mesmo. E tem várias pesquisas mostrando que, quando
a criança começa a tomar aos 4 anos e retiram o remédio aos 18, existe uma
tendência muito grande de drogadição por substância mais pesadas. Se a criança
está usando um estimulante desde os 5, 6 anos, ela vai buscar outra droga quando
interrompe este uso. No mundo todo, clínicas relatam que metade dos
adolescentes conta que começaram a drogadição e a mantém com ritalina. E a fala
desses adolescentes é que eles começaram a usar porque é barato, acessível,
fácil de comprar, embora tenha receita controlada. Segundo eles, os médicos
diziam que era seguro. Como dizem até hoje. Mas não é uma droga segura.
CF: A discordância não é só quanto ao uso ou não da medicação, mas
quanto à existência do próprio transtorno.
MAAM: A
discordância básica é que não existe uma comprovação aceita de que haja uma
doença neurológica que só altere comportamento e aprendizagem. Isso ainda não
foi provado. A lógica da medicina é comprovar a doença e depois tratar. Para
essa, o remédio foi encontrado antes.
CF: A comprovação seria se encaixar nos critérios do questionário
Snap-IV.
MAAM: Aqueles
critérios são altamente questionáveis. Aquilo não é critério de doença, é norma
social. Como posso transformar uma norma social em biológica? O Snap-IV contém
18 perguntas, e as primeiras nove falam de atenção, e as outras, de
hiperatividade. Se você preencher seis das perguntas, tem o diagnóstico de
déficit de atenção, hiperatividade ou dos dois. Todas as questões falam de
comportamento. Só com base nisso afirmam a presença de uma doença neurológica?
CF: A partir de que idade uma criança pode ser diagnosticada?
MAAM: Há relatos
na medicina americana de crianças de 2 anos que teriam dislexia quando
entrassem na escola. Como identificar que alguém vai ter dificuldades de ler e
escrever aos 2 anos?
CF: Quem defende o uso da medicação argumenta que apenas seu uso
incorreto não é seguro e que a criança que não é diagnosticada sofre.
MAAM: Sofre por
causa da sociedade. Eu quero trabalhar o conflito que ela está vivendo e
libertá-la desse conflito e de uma doença que ela não tem. É preciso entender
isso até para poder superar e enfrentar. Agora, quando digo você é doente vou
te dar um remédio, os pais ficam aliviados porque, enfim, encontram o problema
e podem tratar o filho. Esse é o sonho de todo pai. Mas eles estão iludidos
porque essa criança, na verdade, não está sendo tratada. Ela está introjetando
ser doente, ter algum problema e tudo o que ela conseguir na vida vai ser
porque foi tratada. É totalmente desconsiderada em que situação isso é
produzido. Porque os problemas de aprendizagem são todos produzidos.
CF: O rendimento na escola das crianças medicadas melhora.
MAAM: É preciso
provar que foi a droga porque se inicia um trabalho pedagógico com a criança,
afirma-se que ela está doente, que está sendo tratada, a professora vai ensinar
de um modo diferente, ela vai acreditar que pode aprender. A revisão dos
trabalhos publicados que preenchem todos os requisitos de pesquisa científica
mostra que não há melhora consistente do desempenho acadêmico. Esta é,
inclusive, a conclusão de uma reunião feita nos EUA para estabelecer consensos
para o diagnóstico e tratamento.
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Caros Amigos 24/03/2012
Conselho de Psicologia questiona as ‘comunidades terapêuticas’
Raquel Juna
Nos últimos meses, o crack ocupou as páginas dos principais jornais do país, assim como as notícias das ações, algumas bastante polêmicas, realizadas pelos governantes para combater o uso da droga, como a internação compulsória de usuários do crack e as ações policiais nas chamadas ‘cracolândias’.
Com os holofotes da imprensa sobre o assunto, no final de 2011, o Ministério da Saúde lançou o Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack e Outras Drogas, com o slogan ‘Crack, é Possível Vencer’. Bem antes do lançamento do plano, já no discurso de posse, a presidente Dilma prometeu que esta seria uma das prioridades de sua gestão. O ‘Crack, é Possível Vencer’ prevê medidas em três eixos de atuação – cuidado, autoridade e prevenção – e mantém a possibilidade de convênio com as chamadas comunidades terapêuticas, um dos pontos mais criticados do programa.
Segundo o Ministério da Saúde (MS), o plano investirá R$ 4 bilhões no “enfrentamento” à droga. No eixo cuidado, está prevista a reformulação da ‘Rede Conte com a Gente’, que inclui estruturas já existentes e outras novas para atender aos usuários, como as enfermarias especializadas dentro de hospitais públicos. Também serão criadas Unidades de Acolhimento, que, segundo o MS, funcionarão como moradias temporárias nas quais os usuários de crack receberão cuidados clínicos. Além disso, serão potencializados os já existentes ‘consultórios de rua’ – equipes multiprofissionais que abordam usuários de drogas nos locais de consumo – e os Centros de Atenção Psicossocial especializados em usuários de Álcool e Drogas (Caps AD). De acordo com o Ministério da Saúde, as comunidades terapêuticas, coordenadas por entidades sem fins lucrativos, também poderão fazer parte da ‘Rede Conte com a Gente’.
O reconhecimento dessas instituições como possíveis espaços de tratamento aos usuários de crack foi o que gerou mais críticas ao plano. O papel de recuperação e cuidado que as chamadas comunidades terapêuticas e outras instituições de internação cumprem para os usuários não apenas de crack, mas também de outras drogas, é bastante controverso. Pouco antes do lançamento oficial do programa, o Conselho Federal de Psicologia (CFP) entregou ao Ministério da Saúde o Relatório da “4ª Inspeção Nacional de Direitos Humanos: locais de internação para usuários de drogas” contendo várias denúncias de irregularidades encontradas pelo Conselho em alguns desses espaços, como utilização de mão de obra não remunerada, preconceito por orientação sexual e religiosa, violação de privacidade, torturas psicológicas, falta de acesso a atendimento médico e à rede de educação.
Inspeções
A Comissão de Direitos Humanos do CFP inspecionou 68 unidades em 24 estados e no Distrito Federal. O relatório foi entregue ao Ministério da Saúde e ao Ministério Público, e também apresentado na 14ª Conferência Nacional de Saúde, que aprovou uma moção de repúdio ao financiamento do governo federal à comunidades terapêuticas. Por meio de sua assessoria de imprensa, o Ministério da Saúde confirmou que o ministro da Saúde, Alexandre Padilha, recebeu o relatório em audiência com representantes do CFP. Questionado sobre que providências foram tomadas em relação às denúncias, o Ministério reforçou que as instituições denunciadas no relatório não recebem recursos do Sistema Único de Saúde (SUS) e respondeu apenas que “quem fiscaliza [as comunidades terapêuticas] são as unidades das vigilâncias sanitárias locais, de acordo com os critérios estabelecidos pela Anvisa”. Sobre os critérios para que instituições desse tipo sejam conveniadas ao SUS, a assessoria disse que “a partir do novo programa ‘Crack, é Possível Vencer’, elas terão que aderir ao plano por meio de projetos que precisam atender às exigências técnicas necessárias”.
O professor-pesquisador da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio / Fiocruz, Marco Aurélio Soares, explica que as chamadas comunidades terapêuticas que existem atualmente, a maior parte delas criadas por entidades religiosas, não têm nenhuma relação com o conceito original. “O que existe no Brasil nem se aproxima da ideia verdadeira de comunidades terapêuticas, que foram pensadas pelo psiquiatra inglês Maxwell Jones como espaços democráticos, onde as pessoas ficam se quiserem, participam de assembléias, etc”, observa Marco Aurélio, que também coordena na EPSJV / Fiocruz o Curso de Atualização Profissional em Atenção ao uso prejudicial de Álcool e outras Drogas, destinado a profissionais de saúde.
Drogas como uma questão de saúde pública
O coordenador de Saúde Mental do Ministério da Saúde, Roberto Tykanori, explica a partir de quais diretrizes a política de enfrentamento ao crack do governo federal está sendo criada. “Como se trata hoje de um tema bastante polêmico, é fundamental, do ponto de vista ético-político, nos atermos àquilo que a Constituição nos garante. O artigo 5º é uma referência fundamental no que tange a qualquer ação na área da educação, da saúde, da justiça ou da polícia. Em situações polêmicas ou extremadas, há uma tendência a querer suprimir ou fazer vista grossa em relação à garantia dos direitos individuais”, diz. Tykanori acrescenta que do ponto de vista técnico, o Ministério fez uma projeção do tamanho do problema com o crack, embora existam poucas informações já disponíveis. “As informações que temos não são muito consistentes, então, trabalhamos com números projetados, estatísticas de outros países e dados da Organização Mundial da Saúde (OMS). O princípio orientador da política de crack é que as pessoas vão depender de vários tipos de abordagem dependendo da situação como se encontram, então, adequaremos a oferta à variedade de necessidades. Esse principio é o que organiza hoje a rede de atenção aos usuários de crack e outras drogas”, complementa.
Diferenças
O consumo de drogas no país e as consequências que essa prática pode trazer não são novidades, mas então, porque o crack virou o assunto do momento? “O crack de fato tem algumas características diferentes das outras drogas. É muito barato, muito portável e acessível, tem uma absorção extremamente rápida, mais rápida até do que as drogas injetáveis. É possível sentir os efeitos do crack em 7 a 10 segundos, enquanto as drogas injetáveis demoram 30 segundos para provocar algum efeito”, explica o pesquisador do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde da Fundação Oswaldo Cruz (Icict/Fiocruz), Francisco Inácio Bastos, que também é médico e há vários anos trabalha pesquisando o tema e atendendo usuários de drogas. “E tem outro aspecto que não tem nada a ver com a substância em si: pela primeira vez na história do país não há mais uma coincidência quase total entre cenas de uso abertas em locais públicos e as comunidades faveladas. O consumo se dá hoje em outros locais públicos que não são favelas. Isso despertou na mídia, na sociedade em geral, nos políticos, uma perplexidade que antes não existia”, analisa o pesquisador.
O médico coordena uma pesquisa sobre o perfil dos usuários e o consumo de crack em todo o país, desenvolvida pela Fiocruz e pelo Ministério da Saúde em parceria com a Secretaria Nacional de Políticas Sobre Drogas (Senad). “Visitamos há pouco tempo uma cena de uso de crack e pela primeira vez nós encontramos pessoas que acamparam nesse local. Aqui pertinho da Fiocruz, encontramos barracas, refresco, refrigerente, é como se esses usuários tivessem montado uma ocupação semi-permanente. Não existia isso antes, havia cenas de droga, mas não com essas características”, fala, sobre a atual visibilidade do consumo de crack.
Ligações
Francisco Inácio acredita que as políticas sobre drogas devem apostar na criação de pontes entre as comunidades e os locais de tratamento, já que uma grande dificuldade é a procura espontânea pelos serviços de saúde. “As melhores políticas no mundo inteiro, e isso não é nenhuma novidade, são as que estabelecem essa ponte, porque muito dificilmente conseguimos que uma pessoa que está numa cena [de consumo de drogas] saia espontaneamente para frequentar um serviço regular. Obviamente, a pessoa que usa crack de uma forma contínua se vê as voltas com vários problemas de saúde, então, acaba indo mais para as UPAS [Unidades de Pronto-Atendimento], para buscar um tratamento emergencial para problemas respiratórios, odontológicos, do que para um Caps, quando deveria ser o contrário”, observa. O pesquisador explica que, com isso, os serviços de emergência ficam sobrecarregados. “Isso não é um problema exclusivo do crack, essa distorção de demandas de saúde no Brasil é histórica. A pessoa está com gripe e não consegue marcar consulta, então vai para uma emergência. A emergência no Brasil é tampão, ela atende praticamente tudo, e o crack só veio trazer mais gente, mais demandas e mais distorção”, comenta.
Propostas
Para Francisco, propostas como a dos consultórios de rua podem ser uma boa solução para estabelecer a ponte entre os usuários e os serviços de saúde adequados. De acordo com ele, um exemplo dessa ponte é a experiência do Centro de Saúde – Escola Germano Sinval Faria da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (CSEGSF/ENSP/Fiocruz), cujo fluxo de usuários de crack melhorou após a implementação de um consultório de rua e de outra unidade trabalhando em sintonia – a Clínica da Família Victor Valla (localizada no bairro de Manguinhos, no entorno da Fiocruz) – ambos com atuação nas proximidades das cenas de consumo de drogas.
“Esse exemplo está mostrando que o trabalho pode funcionar bem se contarmos com equipes motivadas e bem treinadas. O que não pode acontecer é o que vinha sendo proposto antes. O cara é um agente de saúde que passou a vida toda trabalhando com saúde materno-infantil e agora passa a ter que lidar com o crack. É uma população e um recorte demográfico totalmente diferentes. Dessa forma não funciona”, alerta.
Crack e exclusão
O professor do Departamento de Saúde da Família da Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Tarcísio Andrade, considera que é um equívoco abordar o uso do crack como uma questão específica, sob o risco de desvincular o problema do contexto em que está inserido. “Pensando na perspectiva sócio-econômica, nós temos inevitavelmente uma melhora das condições de vida e da renda do povo brasileiro, mas nós temos um segmento populacional, na faixa de 15 a 25 anos, ainda fora do mercado de trabalho e sem nível educacional para assumir qualquer posição nesse mercado, porque não tínhamos até então nenhuma programa voltado para essa população. O erro da política atual é não enxergar esse aspecto”, avalia.
Segundo Tarcísio, o grande contingente de usuários de crack, sobretudo homens jovens, vive uma vida sem perspectivas concretas, o que não pode ser desconsiderado. “Embora a mídia e a própria estrutura capitalista o tempo inteiro digam que tudo é possível, isso não é verdade. É como se fossem chamados para a festa e acabassem barrados no baile. Há essa falsa ideia de igualdade e essa população está excluída. É essa mesma população que constitui o maior contingente de pessoas que recorrem a práticas ilícitas para tocar a vida adiante, seja do ponto de vista subjetivo para ter visibilidade, para ser visto de alguma forma socialmente, seja do ponto de vista concreto da própria sobrevivência”, pontua.
Perfis de usuários
Para o professor, outro equívoco é considerar que todos os usuários de crack têm o perfil de moradores de rua. Tarcísio trabalha há mais de 15 anos com usuários de drogas e foi um dos pioneiros no país na implementação de políticas de redução de danos. O professor coordena hoje o programa de extensão da UFBA, Aliança de Redução de Danos Fátima Cavalcanti.
“A população de rua constitui a ponta do iceberg. O grande contingente que usa crack e que mais sofre com as consequências do uso de crack, não pelo viés da droga em si, mas pelo viés de ser uma prática ilícita, socialmente inaceitável, é de jovens negros, que morrem com 25 anos de idade.
Essas pessoas têm casa, familiares, e vivem com um cerceamento de liberdade enorme, porque alguns bairros nas grandes cidades brasileiras são bairros divididos, sequer podem cruzar de um lado pra outro”, define.
O professor conta que participou recentemente de um estudo sobre os usuários de crack no Rio de Janeiro (RJ), Salvador (BA) e Macaé (RJ), cujos dados ainda estão sendo analisados.
“Na realização dos grupos focais, quando perguntávamos aos usuários moradores de rua o que eles pensam da vida para daqui um ano, eles respondiam: ‘eu espero que eu possa ter uma casa, é muito ruim viver na rua’. Quando fizemos essa pergunta para as pessoas de bairro, vários deles disseram: ‘eu não sei o que vai acontecer comigo daqui um ano porque muitos dos meus colegas já morreram’. Então, as perspectivas são piores e eu não tenho visto políticas mais consistentes dirigidas a essa população. Precisamos de uma política pública imediata para dar suporte social a essas pessoas”, afirma.
O coordenador de Saúde Mental do Ministério da Saúde concorda que o problema do crack é muito mais complexo. Para ele, a discussão polêmica sobre para onde devem ir os usuários de crack deve ser um debate sobre o papel dessas pessoas na sociedade. “O desenvolvimento econômico está deixando para trás uma parcela significativa de brasileiros. Então, trata-se de um problema sobre que lugar na sociedade essas pessoas estão ocupando. Esse é um enfrentamento real que nós precisamos fazer, tornar nossas ações mais amplas, e, nesse sentido, ações intersetoriais se tornarão cada vez mais importantes para viabilizar lugares melhores para esses cidadãos que estão nessa condição de muita fragilidade e vulnerabilidade. Estamos tendo isso como aprendizado nesse período de construção da política”, declara.
Além do estereótipo dos usuários de crack como moradores de rua, Francisco Inácio acrescenta que é preciso ampliar a visão sobre o perfil dos consumidores da droga. “Nem todos os usuários fazem uso continuado de crack especificamente. Eu tenho pacientes que fazem uso de crack, interrompem e passam um período usando cocaína cheirada e álcool, por exemplo. Normalmente, a imensa maioria é de poliusuários, como eles próprios se definem, X-tudo, total-flex, eles mesmos inventam essas palavras. Então, igualar não é correto”, afirma.
Segundo Francisco, atualmente, há também usuários de crack de classe média, embora sejam minoria. “Obviamente, existe uma concentração de pessoas que vêm de comunidades pobres, que já têm toda uma vida complicada por várias razões, e o crack veio a ser mais um problema na vida delas. Os ricos nunca chegaram até o ambulatório e provavelmente não vão chegar, mas atendemos pessoas de classe média que falam bem, são articuladas, tiveram acesso à educação e mesmo assim estão usando crack”, descreve.
Para Marco Aurélio, outro erro é associar o crack a uma série de mazelas, como a vida na rua e a gravidez na adolescência. “Esses fatores são causa do uso do crack, não consequência. Essa população marginalizada de rua cheirava cola e agora usa crack, que diminui a fome e a depressão e mantém as pessoas acordadas, e elas muitas vezes precisam ficar acordadas porque estão expostas a perigos. No Canadá, por exemplo, existem usuários eventuais de crack, como existem de cocaína no Brasil. Aqui, os usuários de crack foram associados à criminalidade”, critica.
Consistência das políticas
Tarcísio alerta sobre a necessidade de controle dos recursos públicos e padronização dos serviços de atenção aos usuários de drogas. Segundo ele, há boas políticas, mas existe também muito desperdício de recursos. O professor concluiu recentemente um projeto de supervisão de 30 consultórios de rua em municípios de todos os estados do país. “Às vezes colocam todo o recurso para comprar o veículo, aí falta recurso para contratar equipe. Por outro lado, há a desconexão entre a fonte financiadora, que é o governo federal, e a utilização do recurso. Temos uma política de consultórios de rua, mas quantos estão efetivamente funcionando? Essas boas políticas precisam de um acompanhamento melhor”, destaca. De acordo com o MS, serão criados 216 novos consultórios de rua, que juntamente com os consultórios já existentes contabilizarão 308 serviços desse tipo.
Os Caps AD também serão incrementados com a nova política do Ministério da Saúde. Serão criados 41 novos Caps AD e outros 134 serão qualificados. Para Tarcísio, esse também é um serviço fundamental, embora seja necessária uma melhor definição do seu papel na rede de atenção à saúde. “É um dispositivo extremamente importante sem a menor sombra de dúvidas, mas é preciso que funcionem dentro da filosofia pela qual foram criados, como um dispositivo da atenção básica. É impossível que funcionem descontextualizados do programa de saúde da família, por exemplo. Se o Caps não está vinculado a um território, ele vira uma unidade de saúde em si mesma e ele não foi concebido dessa maneira”, alerta. Segundo Tarcísio, novamente a questão gira em torno da estruturação da atenção básica no país, da qual o bom funcionamento dos Caps e de outros serviços depende inteiramente. “E a atenção básica no país é extremamente falha, cidades como Salvador tem 15% de cobertura da atenção básica. No Rio e São Paulo, a cobertura é de menos de 25%. E outro aspecto é que originalmente a atenção básica não inclui atenção ao uso de drogas. Se tivéssemos isso dentro da atenção básica e uma atenção básica abrangente, não precisaríamos de políticas específicas. As políticas específicas escondem esse aspecto”, lamenta.
De acordo com Tykanori, todas as estruturas previstas no novo plano de enfrentamento ao crack estarão interligadas aos outros programas e ações do MS. Ele defende a existência de políticas específicas para a organização do sistema de saúde, mas garante que, na realidade, trata-se de uma única política. “A rigor é uma única rede, mas estamos chamando as dimensões específicas da rede também de redes – rede de Saúde Mental, rede Cegonha, rede de Urgência e Emergência. Se supõe, a partir disso, que o trabalho articulado e sinérgico entre diversos órgãos dá uma maior eficácia no cuidado com as pessoas. As redes não são separadas, ao contrário, é só por uma questão de lógica organizativa é que se pode olhar a rede Cegonha separadada rede de Saúde Mental, por exemplo, mas na prática elas são interligadas. Uma mulher grávida que usa crack é parte de ambas”, diz.
A secretária nacional de Políticas Sobre Drogas, Paulina Duarte, reafirma a necessidade de uma articulação maior entre os ministérios que devem tratar a questão das drogas. “Cada Ministério tem competências regimentais específicas, que limitam seu campo de atuação. Como questões relacionadas às drogas envolvem diferentes aspectos e contextos – como saúde, assistência social, educação, direitos humanos e segurança pública – todos os ministérios envolvidos com o tema precisam estar engajados para que o programa cumpra suas metas satisfatoriamente”, disse, em entrevista realizada por e-mail.
Redução de danos
A atenção ao uso de drogas no país foi lentamente mudando de perspectiva. Francisco lembra que a truculência do período da ditadura no tratamento da questão foi abrindo caminho para a saúde pública. “Na ditadura não tínhamos abordagem democrática para nada e as drogas não seriam a única coisa que abordaríamos democraticamente, justamente o contrário. Essa legislação de droga extremamente repressiva foi parcialmente reformada pelo governo Fernando Henrique e depois mais profundamente no governo Lula. O Brasil hoje tem uma legislação mais ou menos moderna, embora com problemas. E nas décadas de 1980 e 1990 tivemos uma fortíssima influência das políticas para aids nas políticas de drogas. O que foi extremamente importante porque a aids ajudou as políticas de drogas a fazer uma interface maior com a saúde pública”, conta. O professor comenta que o programa de redução de danos na Bahia, coordenado por Tarcisio, na década de 1990, foi o primeiro que conseguiu se manter e impedir que os seus membros não fossem presos.
Marco Aurélio explica que pela perspectiva da redução de danos, a abstinência da droga é um fim e não o ponto de partida. Para o professor, esse deve ser o caminho perseguido pelas políticas sobre drogas, a partir de instrumentos que já vinham sendo utilizados, como os consultórios de rua. “Na perspectiva da redução de danos, a equipe do consultório de rua aborda a população tentando criar vínculo e estabelecer uma relação de confiança. Aborda primeiro a partir de outros problemas de saúde, cuidado de um ferimento, por exemplo, fornecendo alimentos. Ensina-se a pessoa a passar protetor labial e a não usar lata para não se queimar, distribui-se cachimbos e sugere-se que se substitua o crack por maconha, por exemplo. E, uma vez chegando ao problema da droga, se o usuário aceitar um acompanhamento, a equipe o encaminha para um Caps AD”. Tarcísio acrescenta que os programas de redução de danos conseguem avanços significativos na saúde dos usuários de drogas. “Dentro do uso de drogas, há um espectro imenso de pessoas, desde aquelas que fazem um uso compatível com outras atividades, até outras com um uso muito comprometido. Então, se uma pessoa com um uso intenso de drogas, às vezes sob grande risco, passa a ter um consumo mais protegido, ou muda para uma droga menos desfuncional do ponto de vista social, é um avanço fantástico. Se esse indivíduo dá esse passo, ele pode dar passos mais adiante, e pode, inclusive, deixar de usar drogas. Isso é diferente de se dirigir ao indivíduo exigindo abstinência, porque seguramente a maioria deles não conseguirá cumprir”, explica.
Para Tarcísio, qualquer programa sobre drogas que funcione verticalmente, na base da imposição, como uma internação compulsória, está fadado ao fracasso. “Se alguém respeita a limitação do usuário de droga e começa a construir com ele uma outra possibilidade, a chance desse indivíduo reduzir o consumo ou mesmo parar de usar a droga é muito maior do que quando se impõe. A imposição destitui o outro da capacidade de decidir sobre si mesmo. E o que nos constitui sujeitos é a capacidade de decidir minimamente sobre nossa própria vida”, ressalta.
O pesquisador lamenta que dos 250 programas de redução de danos que já existiram no Brasil, a maior parte deles, coordenados por universidades, ONGs e por alguns municípios, tenha sido desarticulada por falta de financiamento. Ele conta que o programa existente na Bahia é um dos poucos que se manteve no país e já chegou a fazer 35 mil atendimentos por ano. Tarcísio diz que o Ministério da Saúde, principal fonte financiadora dos projetos de redução de danos, começou em 2003 a transferir a responsabilidade dos programas para os estados e municípios. Na opinião dele, a decisão de transferir foi acertada o problema estava em quem mantinha a tecnologia da redução de danos, que eram justamente as universidades, as ONGs e o governo federal, o que ocasionou a desestruturação dos programas quando eles passaram para as esferas estaduais e municipais. “Eu digo que perdemos o trem da história quando deixamos de investir maciçamente nos programas de redução de danos como vínhamos fazendo. Há publicações mostrando a economia significativa de vidas humanas e de recursos públicos que uma política de redução de danos é capaz de causar”, diz Tarcísio. No caso de Salvador, a Secretaria Municipal de Saúde financia o programa desde 2006 e, atualmente, o governo estadual da Bahia está financiando um Caps ad em um território completamente constituído, ou seja, com todos os serviços básicos. O Caps ad funciona dentro da universidade e, além de atender a população, também será um espaço de aprendizado para profissionais que trabalham com álcool e drogas.
Para Francisco Inácio, é preciso incrementar as políticas de redução de danos de forma que atendam a realidade atual. Ele aposta nas novas tecnologias como ferramentas que podem ser eficazes na prevenção. “Para essa nova geração que é ligada à internet, não dá para fazer só a prevenção tradicional de conversa um a um, claro que essa conversa também é importante, mas eu visito as comunidades e vejo que todo mundo tem celular. Porque não fazer como foi feito na época da vacinação de influenza quando enviaram um SMS dizendo que as pessoas precisavam se vacinar de acordo com a faixa etária? Provavelmente eles vão atender muito mais facilmente a uma mensagem dessas do que uma mensagem por papel”, sugere.
Embora boa parte dos programas de redução de danos tenha sido desmantelada, conforme informa Tarcísio, o coordenador de Saúde Mental do Ministério da Saúde concorda que o conceito da redução de danos deve guiar todas as políticas de saúde no campo de álcool e drogas. “Culturalmente, o ser humano está sempre buscando interagir com substâncias que possam de alguma forma ocasionar mudanças em suas vivências. Essas tendências sempre trazem junto benefícios e malefícios. Então, não será abolida a relação do ser humano com essas substâncias. Por isso, a redução de danos é básica para lidar nesse campo. Talvez seja equivalente a um dos aforismas mais básicos da medicina – primum non nocere (em latim) -, que significa ‘antes de tudo não fazer o mal’, ou seja, antes de tudo preservar a vida e fazer com que a pessoa viva”, reforça.
Formação em álcool e drogas
“Eu sou médico, e durante meus seis anos de faculdade, não tive uma única aula que falasse sobre manejo e abuso de drogas. Como eu segui essa carreira, só fui estudar esse tema durante a residência em psiquiatria. Estou falando de médicos, mas a situação é a mesma para qualquer profissional de saúde. E o problema das drogas existe, então ele irá aparecer nas UPAS [Unidades de Pronto-Atendimento], nas emergências. Não é à toa que volta e meia morrem pessoas, inclusive artistas. E isso não ocorre apenas no Brasil”, diz Francisco Inácio. Para ele, a formação é um dos principais gargalos na atenção em álcool e drogas no país.
A Secretaria Nacional de Políticas Sobre Drogas (Senad) reconhece que muitos cursos não têm a temática em seus currículos. Segundo a secretária Paulina Duarte, desde 2003, a Senad realiza cursos de capacitação para profissionais de diversas áreas. “Em 2011, a Secretaria promoveu 13 cursos, sendo sete a distância e seis presenciais, somando quase 88 mil profissionais capacitados. Entre eles, destaca-se o curso ‘Supera- Sistema para Detecção do Uso Abusivo e Dependência de Substâncias Psicoativas: encaminhamento, intervenção breve, reinserção social e acompanhamento’. Também em 2011, foram implantados em instituições públicas de ensino superior 49 pólos de formação permanente para capacitação presencial contínua de profissionais efetivamente atuantes nas áreas da saúde, assistência social, justiça e segurança pública, chamados Centros Regionais de Referência (CRR)”, informa.
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Última Instância 21.03.2012
Lógica de guerra no combate às drogas gera alienação
Mariana Ghirello
Políticas públicas focadas na repressão e militarização, nas quais cada vez mais pessoas são presas e uma quantidade maior de drogas é apreendida, integram a ideologia de “guerra” aplicada no combate às drogas. O problema, segundo Pedro Abramovay, ex-secretário de Justiça e professor da FGV (Fundação Getúlio Vargas) no Rio de Janeiro, é que não existe nenhum índice confiável para averiguar o resultado dessas ações. “A lógica de ‘guerra’ gera alienação”, diz o pesquisador.
O professor sugere que avaliação deveria levar em conta outros dados estatísticos, como promoção da saúde e diminuição da violência. “Os indicadores de qualquer lugar do mundo são prisão e apreensão de drogas. Mas o que adianta saber isso?”, questiona Abramovay. Para ele, o Estado precisa fazer uma análise aprofundada, com base em indicadores confiáveis, antes de agir.
O debate “Drogas: uma guerra sem fim? Objetivos, fracassos e alternativas à militarização” foi promovido pelo Programa de Educação Tutorial do curso de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e pela revistaSamuel na sexta-feira (16/3). Além de Abramovay, participaram do debate o professor do curso, Reginaldo Nasser, e o diretor de redação do Última Instância e da revista Samuel, Haroldo Ceravolo Sereza.
O diretor apresentou a revista Samuel, que neste mês traz oito reportagens de diferentes veículos sobre o combate às drogas no mundo. As experiências de outros países, repressão policial, os efeitos na sociedade estão entre os assuntos abordados. “Nosso objetivo é desinterditar o debate e ultrapassar as barreiras ideológicas que impedem a discussão sobre a guerra as droga”, afirmou Haroldo.
Além do dossiê, o 2° número da revista traz ainda reportagens de política, cultura, meio ambiente e ciência. Entre elas, uma reportagem histórica na seção “Vale a Pena ler de Novo”, na qual, em 1979, o jornalista Raimundo Pereira, do jornal Movimento, foi ao ABC paulista conhecer os companheiros de Lula nas greves que desafiavam a ditadura.
Durante o debate, o diretor destacou a questão na violência no México e o sucesso de Portugal no tema. No final dos anos 1990, quando o consumo de heroína era elevado, o país decidiu tomar uma medida radical e polêmica: descriminalizou o consumo de toda e qualquer droga. O foco da ação do Poder Público deixou de ser a repressão policial ao consumo de entorpecentes, para privilegiar o tratamento de saúde e a assistência social aos usuários.
Pedro Abramovay afirma que a ideologia de repressão está ferindo direitos. “A Constituição Federal é suspensa [em nome do combate às drogras], trazendo danos concretos aos direitos e garantias fundamentais. A maneira como o Brasil está lidando com o tema é muito grave”, alerta o professor. “Quando o tema é drogas existe a flexibilização de direitos com base no argumento de que estamos em guerra”.
Em 2006, o Brasil alterou a Lei de Drogas (Lei 11.343) e proibiu a conversão da pena de prisão para alternativa no crime de tráfico. Abramovay conta que o resultado foi um aumento considerável na população carcerária relacionada ao tipo penal. “Antes da lei eram 60 mil presos por relação com drogas, e hoje são 117 mil”, diz. Segundo ele, nenhum outro crime teve um trouxe um aumento tão grande da população carcerária.
De acordo com a legislação brasileira, nos casos de crimes com pena menor que 3 anos, quando o réu é primário e o crime não é violento, a regra é o acusado responder pelo crime em liberdade ou com pena alternativa.
Abramovay citou o caso de um juiz do Rio de Janeiro negou liberdade a um homem preso com uma quantidade de droga que, em tese, poderia ser considerada para consumo próprio. O juiz, no entanto, argumentou que, como morador de uma favela, o acusado não poderia ter dinheiro para adquirir aquela quantidade a menos que fosse traficante. Portanto, conclui Abramovay, ele ficou preso “por ser pobre”. “A diferença entre traficante e usuário é tênue”, diz Abramovay, e pode ser também discriminatória.
O STF (Supremo Tribunal Federal), em setembro de 2010, declarou a inconstitucionalidade de dispositivos da Lei de Drogas, que proibiam a conversão da prisão em pena alternativa. De acordo com Abramovay, antes da lei a “massa” de presos com drogas tinha a possibilidade de pena alternativa. “E apesar do Supremo ter declarado isso inconstitucional, os juízes de 1ª instância não respeitam”, lamenta.
O professor compara as prisões por tráfico com casos de homicídio, nos quais ainda é possível aguardar o julgamento em liberdade. “Em 92% dos casos relacionados às drogas, os acusados respondem presos”, destaca. Ainda sobre as violações das garantias fundamentais, ele diz que 17,5% das prisões acontecem na casa dos acusados, sem mandado.
Panorama internacional
De acordo com Abramovay, o presidente norte-americano Barack Obama tem uma visão mais “liberal” quando trata da questão das drogras internamente. “Ele parou de perseguir os que defendiam o uso medicinal da maconha e diminuiu a pena para o usuário de crack”. “Mas a política externa de combate às drogas continua bastante severa”, afirma.
O professor destaca que existe uma diferença entre o debate sobre drogas no Brasil e nos EUA. “Lá o debate é mais politizado”, diz. A política antidrogas é claramente identificada pelo movimento social como ações que prejudicam sobretudo pobres e negros.
Ele explica que o país produz maconha lícita para uso medicial. E a maior parte da população se mostra favorável a legalização. “Dois estado vão fazer plebiscito sobre a legalização, Colorado e Washington”. Ele acredita que se um estado americano legalizar o mundo vai rediscutir o assunto.
O histórico do México foi classificado como “desastroso” pelo professor. O país optou pela militarização e hoje são quase 50 mil mortos nos últimos quatro anos, relacionadas com a violência.
Na América Central o resultado não é muito diferente, onde os filhos de imigrantes compõem as gangues organizadas conhecidas como “maras” (gangues juvenis), que voltam ao país de origem, Honduras e Guatemala, após de serem deportados dos Estados Unidos, depois de cumprirem penas. “Os EUA acabam exportando violência para México e América Central”, pondera.
A Bolívia assinou com mais 184 países a Convenção Única sobre Entorpecentes da ONU (Organização das Nações Unidas), porém decidiu retirar-se argumentando que o documento veta a mastigação da folha de coca, já que classifica a planta como entorpecente e a submete ao controle internacional.
Segundo Abramovay a Bolívia voltou a solicitar sua adesão à Convenção, mas com uma reserva sobre a proibição do uso da folha de coca no país para fins tradicionais. “Na Bolívia, o respeito à tradição da mastigação da folha de coca está presente na Constituição do país”, destaca.
Segundo pesquisador, o momento mais favorável para a discussão do tema drogas, mas o debate ainda é difícil. Ele destacou a importância do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso ao se posicionar sobre o assunto, mas afirma que cada vez mais é possível ver violação de direitos.
Mudanças na sociedade
Organizador do encontro, o professor Reginaldo Nasser defendeu que o assunto precisa ser observado em um contexto amplo e questiona os parâmetros estabelecidos na guerra contra as drogas.
Ele citou uma investigação que ocorreu no México, em 2006, na qual foi descoberto um esquema de lavagem de dinheiro do tráfico pelo banco Wachovia Corp. A punição para o banco veio na forma de uma sanção por não ter suficientemente rigoroso na busca de informações sobre a origem do dinheiro – e não por participação no tráfico em si. “E quando perceberam que o negócio podia atingir outros bancos grandes e conhecidos, pararam as investigações”, disse.
No Brasil, por exemplo, seria preciso analisar dados de órgãos como o Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras), responsável por monitorar as transações atípicas no mercado, para entender o entorno do tráfico.
Nasser, porém, acredita que o debate sobre a “guerra às drogas” está equivocado, porque não considera o que acontece na sociedade. Como comparação, citou o texto de Marx, “A questão judaica”, em que o pensador alemão “debate tudo”, mas deixa de lado a forma como seus contemporâneos costumavam tratar o tema. O que tinha mudado não era o judaísmo, mas o ambiente social
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UNISINOS 23.05.2009
Adolescência: suicídio, breakdown e superação.
Entrevista especial com Maria Lucrécia Zavaschi ([1])
A adolescência vivida hoje é muito mais complexa do que a que vivemos há alguns anos. Poucos anos, aliás, pois há dez anos esta etapa da vida, ainda que já fosse intensa e repleta de problemas, não sofria do bombardeio de informações sobre diversas coisas nocivas para quem ainda está formando sua personalidade.
A médica psicanalista Maria Lucrécia Zavaschi, nesta entrevista, analisou os problemas que os adolescentes de hoje vivem e diagnosticou o perfil daqueles que têm maiores dificuldades em enfrentar tal fase e, muitas vezes, além de tentar suicídio, chegam ao ato final e tiram suas próprias vidas. “Então, muitas vezes, quando o adolescente está determinado a se matar, ele dá sinais de desespero, de angústia e cabe aos adultos, aos profissionais da saúde, assim como também aos profissionais do ensino, detectarem alguma alteração no seu comportamento, buscando uma aproximação. O que parece é que o adolescente, em muitas circunstâncias, está muito sozinho”, revelou ela, em entrevista concedida por telefone à IHU On-Line.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Quais são os principais motivos que levam o jovem adolescente de hoje a cometer suicídio?
MLZ – Um adolescente que chega a tentar suicídio é portador de uma doença grave. A não ser que sejam aqueles suicídios altruístas, como os camicases e fundamentalistas (que não se enquadram no panorama geral). Há, portanto, uma patologia envolvida. Muitos adolescentes estão assomados de muita ansiedade, uma vez que, nessa etapa da vida, passam de uma fase de total dependência dos pais e da família para uma outra, na qual precisam alcançar a sua independência. A questão fundamental e universal nessa idade é que há uma transformação do corpo. O corpo de criança vai se metamorfoseando até um corpo de adulto, ocasião em que as mudanças hormonais são muito grandes. Essas provocam grande alteração na apresentação e nas funções do corpo. Então, o adolescente é um ser humano que está numa etapa da vida que requer muita energia e capacidade para uma nova adaptação.
Ele precisa passar de uma etapa em que estava num relativo conforto (infância) para uma nova etapa. Tal transição pode ser vivida com grande ansiedade, inquietude, desespero. Nesse caso, o jovem precisa ser muito ouvido, atendido, acompanhado. Ainda que apresente uma certa irritabilidade, dificuldade de relacionamento com os adultos, esses precisam manter a sua serenidade, sua maturidade e dialogar. A meu ver, o adolescente que chega ao extremo de tentar suicídio ou se encontra no auge do desespero, ou não está conseguindo lidar com as intensas mudanças na sua vida, ou é portador de uma grave patologia.
IHU On-Line – Por que é tão difícil ajudar esses adolescentes, mesmo quando existe vontade de reconhecer sua necessidade de ajuda?
MLZ – Cada paciente representa um universo, pois existe toda uma tradição familiar e, portanto, é multigeracional, além de suas condições genéticas e de todas suas vivências infantis pelas quais foi envolvido ao longo de sua vida. Então, em geral, não é que ele começa com essas ideias e dificuldades na adolescência. Muitas vezes, o adolescente apresenta ideias de suicídio desde antes, o que não é incomum. Agora, o ato suicida é incomum, ao mesmo tempo em que é uma condição extremamente grave. Há uma construção lenta e gradativa da personalidade, desde os antepassados. Se essa construção do desenvolvimento apresentou lacunas, isso torna o adolescente mais frágil e de mais difícil acesso.
Então, muitas vezes, quando ele está determinado a se matar, acaba dando sinais de desespero, de angústia e cabe aos adultos, aos profissionais da saúde, assim como também aos profissionais do ensino, detectarem alguma alteração no seu comportamento, buscando uma aproximação. O que parece é que o adolescente, em muitas circunstâncias, está muito sozinho, sobretudo aquele que é mais doente e se isola com o próprio sofrimento, com suas ideias mórbidas de auto-agressão. Acaba ficando solitário com seu computador, deixando a desejar as relações humanas. Do ponto de vista técnico e psicanalítico, é importante que o adolescente, nessa fase, conte com pares e adultos saudáveis.
O adolescente com antepassados saudáveis e vivências infantis construtivas tem menores riscos de cometer suicídio. No entanto, aquele que passou por patologias, por uma carga genética frágil e teve uma vivência infantil com traumas frequentes e crônicos, será mais vulnerável nesta etapa da vida em que precisa enfrentar ainda mais modificações. Quem convive com ele precisa perceber quando está mais isolado, irritável, rebelde. Ao mesmo tempo, precisa saber que esse adolescente deve ser visto por um profissional. Há casos em que, mesmo com um grande investimento, os profissionais acabam não tendo sucesso em salvá-lo deste ato desesperado. No entanto, muitas vezes é possível prevenir tratando a patologia subjacente da qual esse adolescente é vítima.
IHU On-Line – Como definiria a juventude contemporânea?
MLZ – A juventude contemporânea tem tarefas excessivas: precisa crescer, se adaptar a uma nova vida, dar conta da sua independência financeira e da independência da família. No entanto, o adolescente encontra um mundo altamente competitivo, que não está adequadamente preparado para oferecer posições na sociedade. Além disso, há uma sociedade de alto consumo, que tende ao narcisismo, ao hedonismo, que dá muita importância à aparência, às relações mais descartáveis. Então, as relações genuínas são extremamente necessárias e, às vezes, o adolescente não encontra essas relações mais profundas, as quais ele busca. Parece que falta a ele uma causa, um ideal. Minha geração, dos anos 1960, teve oportunidade de participar de causas políticas, sociais, o que também favorecia o adolescente, pois ele imediatamente encontrava motivos para lutar. Hoje, ele se depara com essa sociedade de consumo desmedido, que superficializa as relações humanas. Então, considero que nosso adolescente não tem encontrado na sociedade de adultos um ambiente acolhedor, necessário. Isto é, ele tem necessidade ser ouvido, mas em muitos momentos isso não acontece.
IHU On-Line – O que é o breakdown e como ele tem se manifestado na juventude atual?
MLZ – O breakdown é um colapso quando o adolescente não consegue mais cuidar de si, não se gerencia mais por sua própria consciência e passa a agir por seus impulsos e instintos. É um momento em que a patologia assume maior parte da sua vida, deixando sucumbir a capacidade do seu eu. Quando a patologia é muito grave e a sucessão de traumas é muito intensa, o adolescente já vê falidas suas condições de superar as adversidades; então, o breakdown corresponde a um momento de fracasso da saúde. O adolescente acaba passando por muitas situações traumáticas sucessivas e, como já precisa sair da sua infância e entrar no mundo adulto, requer muitos recursos para resolver essas questões.
IHU On-Line – Uma pesquisa recente revelou que, para o jovem da periferia, o gasto com aparência não é supérfluo. Como a senhora vê a questão do consumo hoje entre os jovens de diferentes classes econômicas?
MLZ – A cultura do consumo desmedido é totalmente imprópria para todas as classes econômicas. O que ocorre é que o adolescente da periferia tem, muitas vezes, uma adolescência encurtada. A sua adolescência não vai até os 25 anos, como acontece com a classe média e classe alta. Muitas vezes, aos 14 anos já está trabalhando e aos 15, 16 já é pai – o que lhe dá certa respeitabilidade na comunidade – e, então, já precisa, além de se sustentar, ajudar seus filhos, a família. Além disso, não têm tempo para muita elaboração, intelectualização, à medida que precisam partir imediatamente para responsabilidades adultas. O consumo é infrutífero, pernicioso para qualquer cidadão.
IHU On-Line – É mais difícil ser adolescente hoje? Por quê?
MLZ – Eu acho que sim. É mais difícil do que em décadas anteriores, quando não havia esse bombardeio de informações apelativas sobre sexo, consumo, relações superficiais e tanta violência.
Algumas patologias, como as do vazio e do narcisismo, são gravíssimas e decorrentes desses problemas. Aquele adolescente que por fortuna teve uma ancestralidade boa, carga genética saudável, além de pais e professores, bons programas na TV e internet, terá mais facilidade de enfrentar a adolescência e será um adulto mais realizado e feliz. Quem não teve isso ainda pode encontrar chances de contrabalançar e se transformar num cidadão íntegro e feliz. Mas ainda há o grupo que terá mais dificuldades de atravessas essa etapa que, segundo alguns autores, é turbulenta. É uma etapa na qual o adolescente precisa lutar, estudar e trabalhar muito para obter sucesso, condições de bons relacionamentos. Mas, de fato, acredito que hoje ser adolescente é mais difícil do que em décadas anteriores por estas razões sociais e econômicas.
Eu queria apelar aos pais e professores – pessoas de referências para os adolescentes – que se coloquem atentos a ouvir o adolescente, para escutá-lo efetivamente e valorizar esse momento de grande transformação e ajudá-lo a superar essa etapa. Tendo uma vida estável e atenta, podemos contribuir para que o adolescente de hoje possa superar essa etapa de forma saudável. Eles irão nos suceder, daqui a pouco, na tarefa de criar as crianças, consolidar a cultura. Ou seja, precisamos estar muito atentos.
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[1] Maria Lucrécia Zavaschi é médica graduada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com especialização em Child Psychiatry Research Fellow pelo Mount Sinai Hospital. Realizou o mestrado em psiquiatria na UFRGS, onde, desde 1978, é professora. É autora de Crianças e adolescentes vulneráveis: o atendimento interdisciplinar nos centros de atenção psicossocial (Porto Alegre: Artmed, 2009).
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Conversando.com 26.01.2012
“El crack responde a una necesidad brutal, que precisa una droga brutal”
Antonio Nery filho
No final de 2010, estive em Buenos Aires na condição de Assessor da Secretaria de Saúde do Município de Salvador, para apresentar as experiências desenvolvidas nesta cidade, envolvendo diversos aspectos da prevenção e assistência aos usuários de substâncias psicoativas. Em que pese ter sido referido na entrevista como represente do Governo Brasileiro, minha relação com o Poder Central resume-se a eventuais assessorias ou participações em Comissões Especias, quer do Ministério da Saúde, quer da Secretaria Nacional de Políticas Sobre Drogas-SENAD. Abaixo, a entrevista em espanhol concedida ao jornalista Emilio Ruchansky e publicado no Site Argentino Página 12.
“El crack responde a una necesidad brutal, que precisa una droga brutal”
El psiquiatra brasileño señala que no está contra el usuario, sino contra la droga, y se manifiesta a favor de la legalización de todas como forma de eliminar la violencia y el sufrimiento que generan el narcotráfico.
Por Emilio Ruchansky
–El paco es una sustancia relativamente nueva en la Argentina, recién el año pasado se supo que su composición química es en esencia alcaloide de cocaína. ¿Desde hace cuánto se consume en Brasil?
–Desde los años ochenta. Se le dice “crack” en todas partes, otra expresión no es reconocida. Es una palabra importada completamente de Estados Unidos, aunque no es la misma sustancia. Por el conocimiento que tengo, el crack fue una invención de los usuarios norteamericanos. En una crisis de falta de cocaína, ellos utilizaron el residuo de cocaína y asociaron carbonato de calcio, el que se usa para las tizas, lo que resulta un problema. El nombre es una onomatopeya: para ellos el sonido de una piedra que se rompe es: “Crack”.
–¿Qué medidas se tomaron desde lo sanitario cuando apareció?
–Por suerte, rápidamente se descubrió una cosa, que me parece importantísima para el crack. La vía de entrada es pulmonar y los pulmones son una inmensa vía de absorción. Es muy rápida. Y produce una gravísima “inundación” al fumar, como cuando los ríos desbordan e inundan una ciudad. Al fumar, ocurre una inundación brutal del sistema nervioso central, que se reparte en todo el organismo a través de la sangre, de un modo en que ningún otro medio de consumo consigue.
–¿Ni siquiera pinchándose cocaína?
–La misma cantidad inyectada precisaría una disolución sanguínea y un largo viaje hasta al cerebro para producir algún efecto. O sea, esa es una llegada más lenta que la vía pulmonar, que es inmediata y tiene una enorme, incomparable, intensidad. Esto es fundamental porque al fumar se produce una intoxicación de un centro cerebral responsable por el placer y, por otro lado, se produce metabolización inmediata de la cocaína. Justamente, el nivel de intensidad es tan alto que a la menor disminución de la intensidad va a producir una necesidad de reutilización porque la intoxicación es más alta. Además, cuando se usa una jeringa uno puede calcular mejor la dosis. Cuando usted fuma no hay un control tan preciso. Estas son las razones a considerar.
–¿Por qué?
–Pasa que el nivel de intensidad en el crack lleva oculto un fenómeno, que en Brasil resumimos así: “A una necesidad monstruosa, una respuesta monstruosa”. Déjeme explicarme mejor. Voy a decir una cosa que creo y defiendo. Yo creo que las personas tienen necesidades diferentes porque son biológicamente diferentes. Cada uno de nosotros tiene un patrimonio psíquico, que será determinado por el patrimonio biológico y las condiciones sociales, en las cuales los humanos conviven y se organizan. Esta una relación triangular permanente, que tiene como efecto la organización. No estoy hablando de inteligencia, ni de carácter, sino de organización. Considerando esto, cada uno de nosotros tendrá sus propias necesidades y sus propias posibilidades. No hay dos necesidades iguales, como no hay dos posibilidades iguales, porque no hay dos humanos iguales.
–Quiere decir que existe una fuerte determinación detrás de la elección.
–Así es. La “elección” de una droga será siempre el resultado de la interacción entre la posibilidad de un patrimonio biológico con una posibilidad psíquica en una condición social. La elección, muchas veces, llegaría a personas deprimidas, maníacas, excitadas, a organismos que van rápido, que soportan o que no soportan, a organismos que soportan una gran cantidad de cocaína en un psiquismo deprimido, en una situación desfavorable. Aquí se pueden hacer las combinaciones que usted quiera. Pero hay que destacar que en la combinación de los tres elementos son más importantes lo psíquico y lo social, puesto que lo biológico es estable, no cambia. Por ejemplo: alguien que pierde el trabajo, que ganaba bien, que tiene coche, casa. Esta persona tiene una constitución física buena, ninguna dolencia, pero una hipoteca que pagar por su casa y tres niños con una mujer que no trabaja. Ese hombre puede sufrir, puede beber o esnifar cocaína ocasionalmente y descubre que la cocaína resuelve su sufrimiento.
–Como si fuera un antidepresivo.
–Exacto. Pero no es un medicamento. No autentica la dolencia, no autentica la condición “patológica”. Si utiliza un antidepresivo reconoce que está enfermo, cuando usa la cocaína no.
–Pero la función parecería la misma.
–Es la misma, pero la condición y la representación no. Una es legal, la otra no. Una está en el ámbito médico, en la salud, la otra está en el ámbito de la intimidad. Y del placer. Este hombre busca una resolución del sufrimiento, no de la situación. De este modo, se comprende la historia que cada uno puede hacer de una droga. Tomemos los adolescentes. Los adolescentes sufren con la adolescencia, desafían al mundo, necesitan marcar su presencia en el mundo, con la transgresión dicen “estoy acá, soy diferente de mi mamá y de mi papá, yo soy otro”. Una de las transgresiones, en Brasil, no sé acá, es la utilización de la marihuana porque puede ser un sedativo, un desinhibidor y es una fuerte transgresión. La marihuana asocia a los adolescentes: pueden fumar juntos, comprar o cultivar juntos. Hay toda una cantidad de fenómenos asociados al consumo. Pero sobre todo los adolescentes saben que no morirán por fumar porro. Entonces, cumple bien todos los papeles que necesita el adolescente. Desgraciadamente, la policía, la familia, los médicos, los psicólogos no comprenden esta utilización y la criminalizan. La prohibición no es una ayuda a los adolescentes en su travesía hacia la vida adulta, es un vejamen. Esta utilización de la marihuana yo la considero absolutamente transitoria, en la mayoría de los casos, y funcional porque comprende, justamente, funciones para ellos.
–Es mejor que el alcohol para ellos.
–Absolutamente. Hace treinta años que trabajo en esto, tengo visto que la teoría de que la marihuana es la puerta de entrada para otras drogas no es verdad. Nunca fue. Es una de las peores mentiras que construyeron los humanos. No es la droga la que determina la persona, son los sujetos que determinan la droga. Atendí miles de personas que beben y no usan otra drogas. O que fuman y no usan otra droga. Lo que quiero decir, es que la elección de la droga responde a una necesidad humana. La cocaína no tiene necesidad, los humanos la tienen.
–Y a veces esta necesidad es monstruosa, como dice usted.
–Hay humanos que son periféricos sociales, yo los llamo en Bahía “los invisibles”. Son visibles pero invisibles socialmente. Personas sin futuro, sin la menor posibilidad en la geografía de las oportunidades. Son presos en condiciones monstruosas. En mi experiencia el crack “responde” a una necesidad brutal, que precisa una droga brutal. La marihuana no es para esta necesidad brutal. Es lo social lo que crea la posibilidad de una droga. Esto es fundamental para cualquier política y práctica médica. En este momento, vivimos algo crucial, creo fuertemente, tal vez estoy loco, que nuestro mayor problema son las rupturas de los pactos. No hay más representación de ley, padre y madre han perdido su posición. Padres e hijos están muy próximos, muy semejantes, muy parecidos. Los hijos no oyen de sus padres lo que pueden o no pueden, porque no pueden escoger. Los padres no les dicen qué se puede.
–¿Los mismos padres perdieron el respeto por la ley?
–Perdieron la referencia de ley, no se reconocen a ellos mismos como ley… no sé la policía de ustedes, pero la de Bahía, la de Brasil, no se distingue en nada de los bandidos, salvo por el uniforme. Los bandidos son más organizados que la policía. El narcotráfico en San Pablo está muy bien organizado, con una fuerte jerarquía de ley, y nosotros que deberíamos establecer las reglas sociales nos perdimos completamente. Pero la cuestión no es la droga sino los humanos, si lo que sustenta las relaciones, las leyes, fracasan, los humanos se desorganizan. En este sentido, la presencia de droga es un síntoma y no una causa, de la desorganización y ruptura de pactos. Por eso, yo defiendo que trabajemos en cuidar a los que sufren los efectos químicos y psíquicos de las drogas pero es más importante que miremos los pactos y acuerdos para restaurar las relaciones entre humanos. Desgraciadamente, trabajamos con las drogas y no con los humanos.
–El crack no desaparecería.
–No. Ninguna droga desaparecerá. Yo tengo una posición completamente anormal sobre el tráfico. Yo creo que el crack no es una buena droga comercial porque provoca una gran intoxicación que puede provocar muy fácilmente la muerte. La cocaína es soluble en agua, el crack, el que tiene carbonato de calcio, no es soluble y eso provoca problemas pulmonares respiratorias graves.
–¿El solo uso, aunque sea esporádico, hace un daño irreversible?
–Hay uso controlado de todas las drogas, pero hay algunas con menores riesgos, menores posibilidades químicas. Claro que hay personas con mejor competencia biológica, psíquica y social para usar el crack y que se pueden sanar. Algunos trabajos demuestran que el crack puede producir daños en el sistema nervioso central, produciendo parkinsonismo crónico, como puede pasar con los neurolépticos legales. Es una especie de temblequeo constante. El crack en Brasil no es pobre en cocaína, como podría ser el que se fuma en Argentina. Es el alcaloide, pero como no está refinado tiene otras cosas como el ácido sulfúrico, éter y otros residuos químicos que no están en la cocaína. Por eso, la pasta o el crack es más dañino que el clorhidrato puro. Los que utilizan crack no se alimentan, tienen otros padecimientos asociados, utilizan otras sustancias. No olvide que la mayoría está en condiciones sociosanitarias y afectivas muy precarias. Y que esas personas pueden morir más fácilmente de enfermedades accesorias, trastornos producidos por el consumo permanente de crack.
–Los usuarios no desconocen esto.
–Por eso creo que el crack, por su poder de producir daño, no es una buena droga de comercio, si se legaliza todo. ¿Por qué en un principio San Pablo tenía crack pero Río no? Porque los traficantes sabían que el crack desorganiza el comercio, los usuarios de crack son muy desorganizados, más trastornados. Los comerciantes de Río dijeron: “No queremos acá perturbaciones en nuestro comercio de cocaína”. En Salvador hay un comercio desorganizado con cocaína, el crack no tendrá larga vida como droga de masa, será siempre circunscripto para aquellos que necesitan una droga así. El crack no es el alcohol, que permite encuentros, comunicaciones, fiestas. El crack no se insertó en la pauta cultural, por lo tanto el crack no es, ojalá tenga razón, no será una droga sostenida comercialmente como algunos dicen en Brasil.
–¿Políticamente se hace algo para frenar el consumo?
–Sí. Todos, griegos y troyanos, están unidos contra el crack porque se tornó en el responsable de todos los sufrimientos. Lula hizo un discurso, hace dos meses, donde ¡responsabiliza al crack!: la sustancia deviene persona, se tornó una entidad responsable por todo lo malo en Brasil. José Serra, uno de los candidatos presidenciales, les dice a todos: “Voy a hacer hospitales en todo Brasil para tratar a los usuarios de crack”. Como si la solución fuera hospitalizar y tratar a todos los usuarios.
–Pero ustedes precisan más lugares.
–Es cierto, pero no como solución. No necesitamos un hospital en cada ciudad. Vamos a producir la muerte social de millones de personas que no deberían estar internadas porque no son enfermos. Porque la relación con la droga no produce siempre una enfermedad. Un usuario no es un toxicómano necesariamente: el uso puede ser experimental, recreativo.
–¿Cómo se debería tratar a los usuarios de paco?
–Necesitan de una intervención médica, psiquiátrica y también social. Son personas, repito, los usuarios de crack no son la clase media ni la clase rica. Están muy próximos a la periferia, a la miseria de la exclusión. Necesitan la oferta de una posibilidad social, que no sé si es posible. Tratarlos es simple, se los interna, cuida, hidrata y se les dan medicamentos para dormir, se conversa. En 10 o 15 días el cuerpo está sin problemas, pero el espíritu continúa igual, si no cambia la condición social en una o dos semanas tenemos la misma cosa. Ahora sólo les damos tratamiento casi exclusivamente para el cuerpo. Si tiene mil personas, mil camas. Cuerpos entran, cuerpos salen, entran. ¿Pero qué ofrecés socialmente?
–¿Qué tipo de estructuras sanitarias tienen para este tema?
–En Brasil, no el gobierno, sino la organización de los usuarios y los portadores de trastornos mentales se organizaron junto a sus familias, presionamos para conseguir la reforma psiquiátrica: la deshospitalización, algo que aquí también reclaman y consiguieron. Creamos dos instancias: las casas de pasaje protegidas y los centros de atención psicosociales: los “Caps”. Hay cap1 (ambulatorios de baja complejidad), cap2 (drogas), cap3 (drogas con 24 horas de trabajo, hospitalización corta y de 5 a 10 días como máximo para desintoxicación). Yo acabo de inaugurar un cap3 en un barrio periférico populoso en el noroeste de Salvador. Y es el primer centro en Brasil, no en Bahía, para niños que utilizan drogas y están en conflicto social, en las calles. El primero en un país con 200 millones de personas.
–¿Cómo se logró abrirlo?
–Pasamos a luchar políticamente con la universidad que tiene el poder técnico y ahora provocó al poder político. Es importante aclarar que no necesitamos hospitalizar, no es la regla, como quieren los psiquiatras. Es la última opción. Toda hospitalización debe ser corta. Yo trabajé en Francia con lo peor de los heroinómanos y se ponen de pie en diez días, físicamente, pero su alma no se pone de pie en diez días, tal vez no se ponga nunca.
–En Suiza y en España también se abrieron salas de consumo controlado de heroína. ¿Cree que eso podría funcionar para los paqueros?
–Sí, sí, sí. Yo defiendo esto, aunque es una herejía en mí país. Si los países trabajan en la lógica contra las drogas y no a favor de los usuarios, o sea contra los usuarios, entonces admitir estas salas es admitir que los usuarios tienen derecho a utilizar drogas y es un deber del Estado protegerlos en su utilización. Significa que yo puedo ayudar a alguien que se droga a no morir, a no enfermarse. Esta sala implica una comunicación entre una persona que se droga y un técnico en salud, es una condición propicia, buena para el intercambio. Yo creo que más aún para el crack, que es el desorden completo. ¿Por qué dejar a las personas abandonadas a su suerte o a su mala suerte? Si alguien escoge un riesgo como el crack, debe ser prioridad de atención y cuidado.
–¿Cuál es su próximo proyecto en Bahía?
–En seis meses, espero, vamos a tener en un centro de atención psicosocial para internar exclusivamente los usuarios de crack por cortos períodos, con una casa asociada, que yo llamo “casa de medio camino”. Es para que esas personas en 10 o 15 días puedan pasar a esta casa donde permanecerán el tiempo necesario para salir.
–No sería un sala de consumo protegido…
–No puedo contestarle eso hasta ver qué pasa. Tengo 66 años y estoy en posición de decir muchas cosas en Brasil sin ir preso. Pero primero quiero provocar la discusión en la universidad. En pocos días estoy abriendo en Pelourinho (un barrio antiguo y turístico de Salvador) una casa que llamo “punto de encuentro”, que sirve para acoger a personas de Pelourinho y otras regiones, darse una ducha, cambiar de ropa sucia por limpia, tomar un café. No pueden permanecer, no es un hospital ni un ambulatorio, sólo un punto de encuentro, necesario para seguir avanzando. Es el primer paso para reconocer que es mejor un hijo protegido en el uso, que muerto y desprotegido.
–Si el uso de drogas, según usted, no va a desaparecer, ¿cree que es mejor legalizarlas?
–Así es. Básicamente, porque los humanos nunca dejarán de ser humanos. Nunca, salvo que en mil años no seamos humanos y seamos mitad máquinas…
La legalización yo la defiendo para todos los productos sin excepción porque no estoy ni en contra ni a favor de las drogas, estoy a favor de los seres humanos. Las drogas forman parte de las cosas del mundo y los humanos también. Pero los humanos piensan y las drogas no. Creo que los humanos destituyeron a la muerte de su valor, la vida se define por la muerte y la muerte por la vida. La vida no es más valorada, en Brasil hay una crisis con esto. Se matan como si fuesen moscas. Los hombres se matan en mi ciudad: 20 por fin de semana. Es mucho. El tránsito mata 200 mil personas por año en Brasil y no hacemos nada… pero vendemos y vendemos más coches.
–¿Qué opina de la violencia ligada al tráfico?
–El tráfico no tiene ley sino fuerza, si entrás en mi campo te mato y si quiero ocupar tu territorio me matás o trabajás para mí. El más fuerte controla un territorio más grande. Si esta violencia no se resuelve sino por la fuerza, tengo la alternativa: introducir el tráfico y la marginalidad que lo rodea en la legalidad. “Bueno, ahora no precisás más matar a otro para ocupar territorio porque trabajaremos nosotros con la ley”, diría el Estado. Tu comercio, tu droga, los adolescentes no tendrán que exponerse a las violencia y a la muerte. Creo que están de un lado los humanos, su sufrimiento y las drogas; y por el otro, el comercio, la producción, el tráfico y la violencia. Si me libro de esto último… ¿qué resta? Las drogas con los humanos con sus sufrimientos y con los trastornos que las drogas les causan o no. En la salud sabés qué hacer con la enfermedad, pero no qué hacer con la violencia y el tráfico.
–¿Cuánto cambiaría el escenario con la legalización en su trabajo?
–Puedo trabajar mejor. Puedo reutilizar los recursos gastados en el tráfico y la violencia que no consigo controlar ni dominar. No resolverá todo el problema. Pero pienso: “Si legalizo y hay un aumento del consumo… trabajaremos con el aumento. Si legalizamos, disminuye el consumo, muy bien. Si legalizamos y nada ocurre, mejor”. En todo caso, estaré libre de una monstruosa violencia en un país que tiene un Estado oficial y uno no oficial. Tenga en cuenta que en la sociedad brasileña hay desigualdades sociales y económicas enormes. El 10 por ciento tiene el control del 40 por ciento de la riqueza. Si no soy capaz de cuidar de esto y si legalizo las drogas, clavo una lanza en el corazón del león, esta enormidad del narco: 500 billones de dólares en el mundo que corrompen a todos, que compran todo, Iglesias y políticos.
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Saúde com Dilma 11/12/2011
Governo erra ao focar o crack.
Em entrevista para a Folha o médico, criador do 1º consultório de rua do país, afirma que dimensão da droga não justifica investimento.
Ele critica plano de usar
consultório de rua como porta para a internação involuntária, vista por ele
como um retrocesso
Idealizador do primeiro consultório de rua, mecanismo de abordagem de usuários de drogas encampado no novo plano do governo federal contra o crack, o médico Antonio Nery Filho critica o uso da atividade como porta para internação involuntária. Essa possibilidade foi levantada pelo ministro da Saúde, Alexandre Padilha. Professor na Universidade Federal da Bahia e coordenador do Cetad (Centro de Estudos e Terapia do Abuso de Drogas), Nery Filho relativiza o problema do crack em comparação a outras drogas.
FOLHA – Por que o senhor afirma que o crack não é o principal problema do país?
ANTONIO NERY -O crack foi alçado a uma posição na saúde pública brasileira que não corresponde à realidade. Sobretudo se comparado ao álcool, tabaco e medicamentos psicotrópicos usados fora do contexto médico e às substâncias voláteis.
O uso do crack se reduz a população específica. Não penso que se possa falar em “Brasil contra o crack” pois ele não tem uma dimensão que mereça o engajamento.
O sr. foi o idealizador do primeiro consultório de rua. Como vê o fato de a atividade ser incorporada ao plano do crack do governo?
De modo algum uma atividade pode ser incorporada a um plano para o crack. Seria muito mais eficaz um plano da maconha, cocaína em pó e, por que não, do álcool. Falar do plano do crack eu me recuso. A atividade que criamos na Bahia não é voltada para o crack e não deveria estar incorporada em um plano específico para uma droga, mas em um projeto de atendimento às pessoas que consomem drogas em situação de completa exclusão social.
Como foi criado o consultório?
Nós verificamos, em 1995, que havia na Bahia uma população que não tinha possibilidade de procurar um serviço de saúde por sua mais absoluta exclusão social.
Há pessoas que não têm a menor possibilidade de se mover na direção de qualquer coisa que não seja da morte. Nós constatamos, após dez anos trabalhando no Cetad, que essas pessoas nunca iam ao serviço e aí tivemos a ideia de criar um dispositivo com uma equipe multidisciplinar. Fomos onde essas pessoas estão!
O ministro da Saúde, Alexandre Padilha, disse que os consultórios de rua poderiam fazer o encaminhamento para a internação involuntária…
Se fizerem isso estarão deturpando completamente a ideia original. Eu me oponho totalmente que o consultório de rua se torne instrumento de internação compulsória.
Internações compulsórias nunca deram resultado nos últimos 50 anos. Nem para doentes mentais inteiramente psicóticos têm sido feitas.
Voltar 50 anos para fazer uma higienização das ruas das cidades brasileiras me parece um retrocesso para não dizer um absurdo do ponto de vista técnico.
Sabemos, após 30 anos trabalhando, que quando vamos para as ruas e nos tornamos o instrumento dessa internação compulsória, as pessoas fogem de nós como o diabo foge da cruz.
Vem agora uma proposta completamente anacrônica do Ministério da Saúde e propõe aquilo que nós todos da saúde mental mais abominamos (…) Deveríamos criar centros de atendimento psicossocial no lugar de dispor R$ 418 milhões para se enfrentar um fantasma criado artificialmente no Brasil.
O que difere a internação compulsória da involuntária?
A internação involuntária é igual à compulsória. Involuntária significa que a pessoa internada não aceita, então é compulsória. Alguém da lei decide, interpreta a lei.
E é uma interpretação errônea, porque a lei mudou e hoje a internação é um instrumento de recurso último.
Em nenhum caso o consultório de rua faria essa abordagem para, nos casos extremos, definir a internação?
Sou radical e frontalmente contra a internação involuntária, sobretudo de pessoas que usam drogas na rua e não estão psicóticas, não perderam a capacidade de entendimento e determinação.
O Estado brasileiro está dizendo que os usuários na rua são incapazes de decidir se querem ser internados.
Digo que 90% das pessoas que usam drogas se beneficiam bem do atendimento ambulatorial. Por que optar pelo mais caro, colocando essas pessoas em instâncias compulsoriamente?
Por trás disso tem o movimento das comunidades terapêuticas. A maioria é de caráter religioso. As pessoas não suportam rezar o dia todo e achar que Jesus vai substituir o crack, a cocaína, o álcool ou qualquer coisa do tipo.
Saúde com Dilma 24.12.2011
Política anti-crack.
Epidemia do desespero ou do mercado anti-droga?
Paulo Amarante analisa a atual política anti-crack do governo e entrevista Humberto Verona, presidente do Conselho Federal de Psicologia.([1])
A primeira e má impressão é que a posição dos segmentos da sociedade que trabalham e pensam a questão da saúde pública não tem o devido espaço, nem suas vozes o devido acolhimento para os gestores da área. Tanto na IV Conferência Nacional de Saúde Mental quanto na recém realizada XIV Conferência Nacional de Saúde, a proposta de financiamento público das “comunidades terapêuticas” foi rejeitado por meio de moções e de propostas alternativas bastante fundamentadas. Não adiantou! Poucos dias após o encerramento da XIV Conferência, que envolveu cerca de 50 mil pessoas diretamente, entre profissionais, gestores, prestadores de serviços, usuários, familiares, dentre muitos outros ativistas de lutas sociais e políticas, o Governo anunciou o plano de combate ao crack que implica no financiamento das “comunidades terapêuticas”.
Como professor e pesquisador no campo da saúde mental na Fiocruz, conheci a experiência das Comunidades Terapêuticas a partir de seus idealizadores, com destaque para Maxwell Jones, um grande psiquiatra inglês do pós-guerra que demonstrou, antes mesmo do advento dos psicofármacos, que o envolvimento dos pacientes psiquiátricos em seu próprio tratamento pode ser um dos principais princípios terapêuticos. E, ainda mais, que o envolvimento e a afetação, a participação democrática e a horizontalidade do poder institucional (expressões utilizadas por Maxwell Jones) entre profissionais, familiares, enfim, de todos, em prol do tratamento, construindo um espírito de comunidade, são os mais importante passos para o objetivo da terapêutica. Estes são os princípios da verdadeira Comunidade Terapêutica, que se tornou política nacional na Inglaterra a partir do Plano Nacional de Saúde de 1948. E é por tais motivos que a Comunidade Terapêutica é uma das bases fundamentais do processo de Reforma Psiquiátrica brasileira e da Luta Antimanicomial.
Já sobre a “comunidade terapêutica” (assim mesmo, com letras minúsculas e entre aspas, para não confundir com a verdadeira) – a primeira vez que eu ouvi falar foi em uma reunião particular que tive com Tim Lopes. Em cerca de seis horas de reunião, o jornalista e amigo de “outras épocas” (em que eu mesmo fazia uns bicos como jornalista na mesma imprensa independente que Tim), me mostrou fotos e vídeos surpreendentes destas tais “comunidades” que ele estava pesquisando para matérias para a TV Globo. Cenas de violências e maus tratos, de extorsão de familiares, de inúmeros constrangimentos. Ele me confidenciou, inclusive, que estava assustado por haver recebido ameaças. Além do tom de fraude que o uso de tal terminologia implica (comunidade terapêutica), pude constatar que a fraude encobria algo absolutamente oposto aos ideais de Maxwell Jones.
Mais recentemente o tema tomou uma enorme dimensão, com o crescimento do uso de crack (crescimento ainda muito pouco pesquisado e comprovado). Tenho notado que o processo na mídia tem distorcido a questão – para mais ou para menos – , de acordo com interesses de mercado jornalístico ou outros mercados afins.
A Reforma Psiquiátrica no Brasil, é hoje reconhecida e respeitada em boa parte do mundo, e tem acumulado importantes conhecimentos e experiências no tratamento do abuso de álcool e outras drogas, particularmente com a criação dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) especializados em tais tratamentos, assim como as iniciativas de Redução de Danos. Em ambos os casos é o vínculo com a pessoa que faz a diferença, e isso é fundamental. O chamado “dependente” não perde sua capacidade de construir um projeto de vida. Os modelos calcados na internação compulsória respondem ao imediatismo do desespero da sociedade, que após a alta – nos informam especialistas no tema – mais de 90% retornam às drogas. Seria absurdo pensar que, na medida em que as pessoas forem internadas compulsoriamente, novos usuários surgirão? Pois o mercado do tráfico encontrará meios de produzir novos usuários. Como a internação não resolve o problema, os usuários de alta se somarão aos novos.
Um outro aspecto que chama a atenção no Plano é o seu texto sobre prevenção se apresentar tão sem força, com uma carência expressiva de idéias. Esse é um problema amplo e interdependente de muitos fatores e se a questão das drogas não for pensada intersetorialmente, com ações profundas no âmbito do ensino, da cultura, do esporte, do bem estar social, das famílias e assim por diante, estaremos apenas tateando as margens do problema e caminharemos para o velho e “bom” tapar o sol com a peneira.
Certamente ninguém discorda que o Estado precisava definir uma política sobre o uso de drogas. O curioso é que a questão do financiamento público às “comunidades terapêuticas”, geridas, como são, por entidades religiosas, venha a ser um dos principais aspectos do Plano. Seria pelo apoio político ao Governo das bancadas que defendem os interesses destes mesmos setores? Afinal, numa interpretação ampliada do conceito de biopolítica de Foucault, o mercado é uma estratégia fundamental de regulação das relações público-privado. Neste sentido, tudo é mercado, e o resto… também é mercado! O mercado das terapêuticas, das religiões, da mídia.
Para finalizar, no que diz respeito às modalidades de tratamento, seria importante que o plano criasse possibilidades maiores para os Centros de Atenção Psicossocial para Álcool e Drogas (CAPS), muitas das vezes apontados como ineficazes, mas a verdade é que muito pouco se investiu neles. No Boletim Oficial de julho de 2011 da Coordenação de Saúde Mental do Ministério da Saúde pode-se ver que na data em questão existia apenas um CAPS com funcionamento 24 horas no Brasil inteiro. No verdadeiro investimento nestes serviços, não apenas na implantação de mais unidades, mas na formação de profissionais, na remuneração adequada dos mesmos, na supervisão e na garantia de recursos e insumos básicos, existe um bom caminho. Um caminho coerente, avaliado e apoiado pelos atores que atuam na área da saúde mental no Brasil.
Entrevista Humberto Verona
1. Qual sua avaliação sobre o relatório da vistoria a instituições de internação de abuso de drogas, divulgado durante a XIV Conferência Nacional de Saúde?
O relatório foi fruto da inspeção realizada pela Comissão Nacional de Direitos Humanos do Conselho Federal de Psicologia em parceria com as Comissões de DH dos 20 Conselhos Regionais de Psicologia e entidades parceiras. Aconteceu em 23 estados brasileiros visitando 68 comunidades terapêuticas. Em todas as instituições, sem exceção, foram encontradas violações de direitos humanos graves, desde a privação da liberdade dos internos até castigos físicos como a abertura, com as mãos, de covas para semi-enterrar o usuário punido. Ameaças de perda de guarda de filhos e prisão em “celas fortes” também foram relatadas, além de ambientes insalubres e trabalho forçado sob nome de laborterapia.
Entendo que vivemos em um país onde muitos ainda são considerados sub-cidadãos e por isso podem ser submetidos às mais cruéis intervenções em nome do cuidado, entre eles estão os usuários de drogas e portadores de saúde mental. O que presenciamos na inspeção foi uma amostragem do que acontece nas instituições privadas que trabalham na lógica da internação compulsória e da privação de liberdade, contrárias aos princípios do SUS e da Lei 10.216 (Reforma Psiquiátrica)
2. O Plano anti-Crack do atual Governo, na sua opinião, contempla as necessidades reais do problema do crack no Brasil?
O Plano do governo federal foi mais uma demonstração da forte pressão de setores conservadores da sociedade brasileira sobre os governos e a falta de coragem dos mesmos no enfrentamento dos graves problemas sociais com políticas verdadeiramente transformadoras. O plano é um retrocesso quando adota a internação compulsória e as comunidades terapêuticas (aquelas mesmas que demonstramos violar direitos humanos) como recursos de cuidado. Quanto mais que o Ministro da Saúde explica, menos se compreende esta atitude que põe em risco todos os avanços conquistados pela Reforma Psiquiátrica no Brasil. Isso só para falar da parte que envolve o SUS. Se olharmos para a parte da Segurança Pública vemos os mesmos velhos recursos da repressão e da criminalizarão.
Enfim estamos apreensivos com o que pode acontecer no Brasil quando o governo federal dá a linha para uma política que pode favorecer a violação de direitos e alimentar idéias contrárias às práticas democráticas.
3. O status de epidemia é real?
Epidemia de crack é uma ficção. O problema das drogas, principalmente do uso abusivo de álcool, é sério e demanda cuidados no Brasil. O crack é mais uma droga que circula nas ruas das cidades e seu uso elevado ao status de epidemia serve para justificar políticas higienista e autoritárias contra os usuários. Veja o que acontece em São Paulo, Rio e Minas por exemplo. Os governos desses estados e de outros também, agora respaldados pela presidenta, estão promovendo uma verdadeira limpeza das cidades em nome do cuidado aos usuários e da dita epidemia. Quem conhece um pouco de história sabe o que isso significa.
4. Quais suas perspectivas em relação à reforma psiquiátrica para o próximo ano?
Estamos muito apreensivos. Há um conjunto de medidas anunciadas pelo Ministério da Saúde que indicam a ampliação da rede substitutiva de atenção às pessoas com transtorno mental e isso é bom. Entretanto a reação conservadora à reforma antimanicomial que insiste na ampliação de leitos em hospitais psiquiátricos e ataca os serviços substitutivos ganha força com a lógica de internação e segregação defendidas no Plano Crack. Será muito mais difícil para as equipes de saúde mental do SUS defender metas de reduzir internações em favor dos dispositivos de cuidado em liberdade, principalmente quando a pessoa com transtorno mental for também um usuário de drogas. A resistência terá que vir dos próprios usuários, familiares e trabalhadores da saúde mental para que não retornemos ao passado dos grandes (e pequenos) manicômios segregadores e violentos.
Carta Maior 17/01/2012
Crack é usado por miseráveis porque é barato
Maria Inês Nassif
A explicação é tão simples que parece óbvia, mas para o especialista Dartiu Xavier da Silveira apenas o preço define o fato de que na Cracolândia se fuma o crack.
A droga vicia tanto quanto qualquer outra, inclusive o álcool, e as taxas de sucesso no tratamento são as mesmas. A diferença é que, neste caso, o “ser miserável” precede o “fumar crack”.
Qualquer política de combate ao uso da droga tende ao fracasso, se não for precedida de uma política social conseqüente.
Silveira define o lobby da comunidade terapêutica para drogados junto ao Sistema Único de Saúde (SUS) como “pesado”, e diz que a ação policial na Cracolândia é simplesmente “política e midiática”.
São Paulo - O grande equívoco da ação policial do governo do Estado de São Paulo e da prefeitura da capital na chamada Cracolândia, o perímetro onde se aglomeram moradores de rua e dependentes de crack na cidade, definiu, de cara, o fracasso da operação: o poder público partiu do princípio de que a droga colocou aqueles usuários em situação de miséria, quando na verdade foi a miséria que os levou à droga. Esse erro de avaliação, segundo o psiquiatra e professor Dartiu Xavier da Silveira, por si só já desqualifica a ação policial.
Professor do Departamento de Psiquiatria e coordenador do Programa de Orientação e Assistência a Dependentes (PROAD), Faculdade de Medicina da Universidade Federal de São Paulo, Silveira há 25 anos orienta pesquisas com usuários de drogas e moradores de rua, normalmente patrocinadas pela Organização das Nações Unidas, e tem sido consultor do Ministério da Saúde na definição do Plano de Combate ao Crack. Nas horas vagas, ele desmistifica os argumentos usados pela prefeitura, município e uma parcela de psiquiatras sobre usuários de drogas.
A primeira contestação é essa: o abandono social vem antes, o crack vem depois. E a política social tem que preceder qualquer ação junto a essa comunidade, inclusive a médica.
Outras desmistificações vêm a tiracolo. O crack é droga pesada, concorda ele, mas o dependente da droga tem as mesmas chances de cair no vício do que um usuário de álcool, por exemplo. “Em qualquer droga existem os usuários ocasionais e os dependentes”, diz o médico. Inclusive no caso do crack. O tratamento por internação compulsória de qualquer uma – álcool, cocaína etc – situa-se na ordem de 2%, ou seja, 98% dos usuários internados compulsoriamente, inclusive os de crack, não conseguem manter abstinência. O tratamento ambulatorial garante a maior taxa de sucesso, de 35% a 40% dos usuários tratados. Isso também vale para os usuários de crack.
Daí, outra mistificação é derrubada pelo médico: não se joga simplesmente fora os outros 60% a 65% que não vão conseguir se manter abstinentes. Do ponto de vista da saúde pública, é um ganho se o usuário se beneficiar de uma política de redução dos riscos. “O usuário não vai parar, mas pode reduzir o uso e até estudar ou trabalhar”, afirma. Isso vale também para o viciado em crack.
Por que o crack e não outra droga? Porque a população miserável só pode comprar o crack. Existem usuários de classe média, concorda Silveira, mas crack, pobreza e população em situação de rua são situações que convergem. “A gente sempre tem essa noção de que a rua é um espaço horrível, e é mesmo, mas em muitos casos a situação da família é tão agressiva que é um alivio para a criança estar fora de casa.”
Por que o crack e não outra droga? Porque a população miserável só pode comprar o crack. Existem usuários de classe média, concorda Silveira, mas crack, pobreza e população em situação de rua são situações que convergem. “A gente sempre tem essa noção de que a rua é um espaço horrível, e é mesmo, mas em muitos casos a situação da família é tão agressiva que é um alivio para a criança estar fora de casa.”
Com todas essas evidências de que o problema da Cracolândia é fundamentalmente social, Silveira apenas consegue atribuir ações policiais na área e a defesa instransigente que políticos e profissionais de saúde fazem da internação compulsória como ligadas a “causas menos nobres”. Que envolvem também interesses econômicos de alguns médicos.
CARTA MAIOR: Como o crack pode deixar de ser tratado como um caso de polícia para tornar-se política pública?
CARTA MAIOR: Como o crack pode deixar de ser tratado como um caso de polícia para tornar-se política pública?
DARTIU XAVIER DA SILVEIRA: Essa ação (policial) na Cracolândia começou com um equívoco básico, que é atribuir aquela situação à presença da droga. É como se a droga tivesse colocado aquelas pessoas em situação de miséria, e isso não é verdade. Todos os estudos feitos com população de rua mostram que, na realidade, o que leva essas pessoas ao crack é a exclusão social, a falta de acesso à educação, saúde e moradia, ou seja, a privação da própria cidadania e identidade. Isto, sim, é um fator de risco para a droga. A droga vem porque tem um prato cheio para florescer. A droga é consequência, não é causa disso.
CARTA MAIOR: Então, essa história de que o crack está atingindo as famílias de classe média no geral é uma bobagem?
CARTA MAIOR: Então, essa história de que o crack está atingindo as famílias de classe média no geral é uma bobagem?
SILVEIRA: Ela atinge também a classe média, mas não com a gravidade com que atinge as pessoas mais pobres, porque a situação delas é grave do ponto de vista social, não apenas do ponto de vista do consumo da droga. É uma população mais vulnerável. E por que é o crack? Porque é a droga mais barata para essa população mais miserável. Se fosse na Europa não seria o crack. As populações excluídas da Europa do Leste também abusam, mas de heroína ou de álcool, porque lá crack seria muito caro. Mas essa é a situação que se vê no mundo inteiro entre as populações excluídas. O abuso de drogas é igual, só que a droga usada é a mais barata. Por conta desse equívoco básico, existe esse discurso que diaboliza o crack, faz da droga a causa de tudo.
CARTA MAIOR: A política social, então, deve preceder qualquer outro tipo de política?
CARTA MAIOR: A política social, então, deve preceder qualquer outro tipo de política?
SILVEIRA: Exatamente. Existe outro dado alarmante, e as pessoas se esquecem disso, que é um dado epidemiológico. As pesquisas mostram: pode pegar qualquer droga, lícita ou ilícita – álcool, cocaína, qualquer substância. Existem sempre os usuários ocasionais e as pessoas que são dependentes. E isso ocorre também com o crack. Até para drogas pesadas existem usuários ocasionais. Do ponto de vista médico, as pesquisas são direcionadas para entender isso: por que, por exemplo, pessoas conseguem beber socialmente e outras viram alcoólatras. Por que tem gente que consegue cheirar cocaína esporadicamente e tem gente que é dependente? As respostas são muito parecidas. O que vai diferenciar um usuário ocasional de um dependente são outros fatores que não têm nada a ver com a droga: se a pessoa tem outro problema psíquico associado, como depressão e ansiedade, e começa a usar o álcool e a cocaína para resolver problemas, ou situações de muito stress... Numa situação como a das pessoas que vivem na Cracolândia, ser morador de rua já é, por si só, uma situação de risco.
CARTA MAIOR: No caso de criança é uma situação de abandono completo? Não dá para imaginar uma criança com grande problema psíquico ou stress em condições minimamente normais, não é?
SILVEIRA: Sim, é uma situação de abandono completo. O stress que estou falando é de forma geral, que afeta também a classe média. Na situação da Cracolândia, o abandono é fundamentalmente a situação de risco. Têm crianças de classe média que abusam de algumas drogas também, mas elas normalmente vêm de famílias muito desestruturadas, têm pais muito agressivos. Esse não é um ‘privilégio’ da classe desfavorecida. Mas numa situação extrema de crianças de rua, o risco é altíssimo, porque essa criança é privada de tudo.
CARTA MAIOR: Como é a família de uma criança de rua e usuária de droga? Ela tem alguma possibilidade de reatar laços afetivos?
SILVEIRA: Algumas famílias têm condições, e quanto a gente identifica essa possibilidade, faz a intermediação. Outras famílias, não. A gente tem sempre essa noção de que a rua é um espaço horrível – e é mesmo horrível morar na rua – mas em muitos casos a situação da família é tão agressiva que ir para a rua é um alívio para a criança. Por exemplo, muitas crianças vão para a rua porque não aguentam o abuso sexual dentro de casa, por parte do pai, ou do irmão mais velho. Ir para a rua pode ser uma progressão positiva, pode representar escapar de uma situação muito inóspita de vida. Tem uma situação até emblemática, relatada em um trabalho que fizemos com adolescentes de rua. Identificamos vários adolescentes usando drogas. A uma delas, a gente perguntou: por que você usa droga, o que você está procurando na droga? A resposta dela foi um tapa na cara da gente. Ela virou e disse: ‘olha, tio (veja você, uma cabecinha de criança, me chamando de tio), eu nem gosto muito do efeito da droga, mas o problema é que para eu sobreviver na rua eu preciso me prostituir, e para eu suportar uma relação sexual com um adulto só sob o efeito de droga.’ Agora, como dizer que a droga é um problema na vida dessa menina? A droga é uma forma de solução, para ela conseguir sobreviver. A droga já é consequência de uma situação de prostituição que ela foi obrigada a encarar por omissão do Estado, da sociedade como um todo. O depoimento dessa menina torna todas essas justificativas para as ações feitas na Cracolândia uma hipocrisia, uma total falta de sensibilidade para reconhecer o fenômeno.
CARTA MAIOR: Outro mito do crack é que é a droga definitiva, que é impossível livrar-se dela. Isso é verdade?
SILVEIRA: É um mito completo. Ela não é uma droga pior que heroína, que a cocaína, em termos de grau de dependência. É difícil sair? É, mas é difícil como qualquer droga. O crack não é pior.
CARTA MAIOR: Então, para essa população, a questão é muito mais uma política social do que médica.
SILVEIRA: Exatamente. Por isso que os trabalhos mais bem-sucedidos são os feitos in loco, por meio de educadores de rua, desses agentes de saúde. Não são médicos que vão fazer uma consulta médica na rua. A gente chama de consultório de rua mas não é um consultório. A equipe vai investigar o que está acontecendo caso a caso, se a pessoa está com falta do quê, de lugar para morar, ou o problema é o relacionamento com a família, ou o problema é assédio de algum tipo, por parte de alguém. É uma coisa mais social, mesmo.
CARTA MAIOR: É um encaminhamento de assistência social e os profissionais de saúde só entram quando for o caso para aquela pessoa?
SILVEIRA: Frequentemente os aspectos psicológicos são muito relevantes, porque essas crianças estão psicologicamente abaladas – não apenas elas, aliás, mas os jovens, os moradores de rua em geral. Mas a intervenção médica, mesmo nesses casos – e não estou desqualificando a importância dela – não é primordial.
CARTA MAIOR: Então a intervenção médica é só para casos extremos.
SILVEIRA: Exatamente.
CARTA MAIOR: E desde que não seja internação compulsória?
SILVEIRA: Desde que não seja compulsória. As experiências de internação compulsória são simplesmente um fracasso. As taxas de insucesso chegam a 98%. Na hora que você interna compulsoriamente uma pessoa, ela não vai ter acesso à droga porque está em isolamento social. Nessa condição, é fácil para um dependente se manter abstinente. Na hora que sair de lá e voltar para os problemas da vida, no entanto, essa pessoa recai. 98% recaem. Isso, sem questionar que o governo não tem equipamento para fazer internação compulsória de todo mundo. As internações são feitas geralmente em verdadeiros depósitos de drogados. Parecem mais um campo de concentração do que uma estrutura hospitalar.
CARTA MAIOR: E é tudo privatizado, não é?
SILVEIRA: E a privatização não melhorou nada essa situação. Os hospitais psiquiátricos privados têm um custo baixíssimo. A economia é feita com a contratação de pessoal. Não existem equipes adequadas para tratar esses dependentes. É um trabalho muito porco, de segunda categoria.
CARTA MAIOR: Esse atendimento privado se misturou muito com religião?
SILVEIRA: Sim, e isso não é bom. Eu não tenho nada contra religião, não é uma questão de princípio, mas o que se vê são diversos grupos religiosos montando o que eles chamam de “comunidades terapêuticas” que partem do princípio de que só a intenção e a conversão religiosa são fator de cura. A maioria dos casos não tem bom resultado. E por quê? Porque a gente sabe que o melhor tipo de tratamento para a dependência química é feito por uma equipe multidisciplinar. A grande maioria das comunidades terapêuticas não tem equipes para trabalhar com dependentes.
CARTA MAIOR: O relatório do Conselho Federal de Medicina sobre as clínicas de tratamento para drogados é impressionante.
SILVEIRA: O relatório é dramático. E é verdadeiro. No relatório tem até denúncias de abuso, espancamento, maus-tratos a pacientes, ou seja, não são pessoas minimamente capacitadas para darem conta do problema que estão lidando com os usuários nesses lugares.
CARTA MAIOR: Isso acaba sendo a reintrodução do manicômio, mas para dependente químico?
SILVEIRA: Exatamente. A Lei Antimanicomial vai por água abaixo, porque o sistema manicomial está voltando sob a justificativa de que a droga demanda uma intervenção urgente. E isso não é verdade.
CARTA MAIOR: Isso está sendo um motivo de discórdia grande dentro da sua área de especialidade? Não faz muito tempo, a luta pela Lei Antimanicomial foi abraçada como uma luta pelos Direitos Humanos.
SILVEIRA: E a lei foi um ganho muito importante. Só vou abrir parênteses nessa questão: eu não sou contra a internação, eu interno meus pacientes, mas apenas quando eles precisam. Eu não interno por questão social, ou porque a família está me pressionando, ou porque não se aguenta o paciente em casa. Os abusos que se cometiam nessas internações, isso acho intolerável, se internava muito mais do que era necessário. Hoje em dia se interna ainda, é importante ter espaços de internação, mas é para casos excepcionais, não para a regra. É para surto psicótico ou risco de suicídio. Ponto. Não tem outra aplicação.
CARTA MAIOR: Dos programas que estão sendo anunciados por município, Estados e União, tem algum que não assume essas orientação da internação compulsória?
SILVEIRA: Os programas de intervenção mais eficazes para dependentes são os que adotam o modelo ambulatorial, onde o paciente aprende a se manter abstinente convivendo em sociedade, com a ajuda de uma equipe multidisciplinar. Essa proposta estaria plenamente contemplada nas orientações do Ministério da Saúde e dentro da filosofia do Centro de Atendimento Psicossocial (CAPS), e existe um número mínimo de CAPS para fazer esse trabalho. O problema, no entanto, são as equipes dos CAPS – falta gente e falta gente bem treinada. Existem exceções, é lógico, como o da Água Funda, um modelo que deu muito certo. Porque não é desumano.
CARTA MAIOR: Ainda assim os resultados são melhores do que a internação compulsória?
SILVEIRA: Em regra, os melhores resultados, em relação à dependência química, giram em torno de 35% a 40%, contra os 2% da internação compulsória. Os que sobram, de 60% a 65%, no entanto, não podem ser apenas considerados um fracasso e pronto. O que nós aprendemos nos últimos anos é que mesmo as pessoas que não conseguem ficar em abstinência podem se beneficiar de política de redução de danos. Esse usuário pode não vai ficar completamente abstinente, não vai parar, mas vai se drogar com uma frequência menor, em circunstâncias de menos risco. Do ponto de vista da saúde pública, é um avanço se esse usuário for mantido em condições de estudar, trabalhar, levar uma vida normal.
CARTA MAIOR: A internação ajuda a desintoxicação inicial, ao menos?
SILVEIRA: A desintoxicação não precisa ser feita na internação, e se as pessoas forem internadas, o ideal é que não ultrapasse os 90 dias. Para a grande maioria das pessoas, é possível fazer a desintoxicação com medicamentos que tiram a crise de abstinência. Elas podem levar vida normal. Isso já é possível com o avanço da medicina. Os CAPS-AD (específicos para dependentes de álcool e drogas) têm esse tipo de medicação, mas poucas equipes capacitadas a administrá-las.
CARTA MAIOR: Se as diferenças de resultado são tão grandes, por que ainda se defende a internação?
SILVEIRA: As causas para defesa da internação não são nada nobres. Em primeiro lugar, acho que a ação feita na Cracolândia foi uma mera ação política e midiática. Para uma população menos informada, a impressão que se tem, numa ação policial como essa, é que o poder público está desempenhando muito bem suas funções. A grande maioria das pessoas que defende a internação compulsória ou é despreparada, ou é de médicos que têm interesses econômicos nisso. Como o SUS (Sistema Único de Saúde) não tem leitos para atender uma demanda dessa, vai ter que contratar leitos de hospitais particulares. E isso interessa a muitos médicos.
CARTA MAIOR: O lobby das clínicas é pesado, então?
SILVEIRA: A atual gestão do Ministério da Saúde é muito séria e está tentando fazer o melhor possível, mas enfrenta uma série de problemas. O pior deles é, de fato, o grande lobby da comunidade terapêutica para drogados junto ao SUS. O Ministério está sendo obrigado a engolir goela abaixo essas pressões, em prejuízo de seu próprio projeto, que é muito mais eficiente.
Dartiu Xavier: a internação compulsória é sistema de isolamento social não de tratamento.
“Com a mesma quantidade de princípio ativo da cocaína, o crack atinge uma concentração até cinco vezes maior no cérebro em menos de um quinto do tempo, gerando um efeito muito mais potente e menos duradouro, o que faz com que a pessoa já queira usar de novo. Por isso, a frequência do uso aumenta muito e o usuário se vicia mais rápido e tem mais dificuldade para largar a droga”, explica. “Precisamos investir em pesquisa, formação e capacitação de pessoas para atuar de forma eficaz na prevenção e tratamento contra o crack”, defende.
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Poder On Line 08.01.2012
Abramovay: “A intervenção na Cracolândia não pode ser policial”
O ex-secretário nacional de Justiça Pedro Abramovay defende que a intervenção na Cracolândia não pode ser policial. Para ele, O Plano de Ação Integrada Centro Legal executado em conjunto pela prefeitura e pelo estado de São Paulo, que começou na terça-feira, com a intenção de esvaziar a Cracolândia, não está “lidando, de fato, com política sobre drogas”.
- A intervenção na Cracolândia não pode ser policial porque o objetivo não é segurança pública, não é diminuir a violência. A intervenção na Cracolândia tem que ser uma combinação de saúde pública com intervenção social. E saúde pública e intervenção social não combinam com polícia. Porque a polícia intimida a ação – afirmou ele em conversa com o Poder Online.
Para Abramovay, que chegou a assumir a Secretaria Nacional de Políticas Sobre Drogas no início de 2011, mas foi a primeira baixa do governo Dilma Rousseff, uma política sobre drogas só funcionará a partir do momento que se apresentar como resultados a redução de consumo, a melhoria da condição de saúde das pessoas e a diminuição da violência.
Poder Online – Começou na terça-feira uma operação da Polícia Militar na Cracolândia, na região central de São Paulo, em busca de traficantes. Como vê a ação?
Pedro Abramovay - Tem uma grande questão por trás disso, que é a imprensa, incentivada pelos atores da ação, usar o termo ocupação da Cracolândia. Esse termo tenta relacionar o que está acontecendo em São Paulo com o que acontece no Rio de Janeiro. É como se a intervenção fosse a UPP [Unidade de Polícia Pacificadora] de São Paulo. E o que está acontecendo na Cracolândia é oposto do que está acontecendo no Rio de Janeiro. É muito diferente, parte de lógicas diferentes. E as razões que fizeram as UPPs darem certo no Rio de Janeiro não estão presentes no caso da Cracolândia.
Poder Online – Quais são essas razões?
Pedro Abramovay - No Rio de Janeiro, era um problema de segurança pública, de violência e de falta de liberdade, de domínio militar de regiões da cidade. Tem relação com as drogas? Tem porque esse domínio era feito pelo tráfico de drogas. Mas o objetivo da intervenção era diminuir a violência e devolver aquele espaço territorial para as comunidades. O grande motivo de êxito da intervenção no Rio é justamente quando a Secretaria de Segurança diz que não vai erradicar o tráfico de drogas. Porque a polícia não consegue erradicar o tráfico de drogas, nunca conseguiu em nenhum lugar do mundo e não vai conseguir no Rio, nem na Cracolândia. Quando a polícia admite que não está ali para erradicar o tráfico de drogas, mas sim para diminuir a violência, ela funciona muito. E a polícia entrou e teve resultados bastante satisfatórios no Rio de Janeiro.
Poder Online – Na Cracolândia, os policiais foram orientados a não tolerar mais consumo público de droga.
Pedro Abramovay - Na Cracolândia, o problema central não é um problema de segurança pública. O problema central da Cracolândia é um problema de saúde pública agravado por um problema social. Quer dizer, o crack gera sem dúvida um problema de saúde pública, mas ele é muito mais perverso quando se encontra com os excluídos entre os excluídos, que é o que acontece na Cracolândia. A intervenção na Cracolândia não pode ser policial porque o objetivo não é segurança pública, não é diminuir a violência. A intervenção na Cracolândia tem que ser uma combinação de saúde pública com intervenção social. E saúde pública e intervenção social não combinam com polícia. Porque a polícia intimida a ação.
Poder Online – O primeiro objetivo da ação é, segundo as medidas definidas pela prefeitura e pelo estado de São Paulo, prender os traficantes da região.
Pedro Abramovay - A ideia de que existe ali um traficante, que é uma figura completamente divorciada do usuário, não é verdade. O usuário de drogas, a pessoa que está ali na Cracolândia e tem que ser alvo de uma política de saúde, de uma política social, já vendeu droga em algum momento. Boa parte deles já vendeu uma pedra para comprar outra pedra. Se for separar e dizer que a polícia está ali para evitar o tráfico e vamos ter também uma ação social, não é possível abordar as pessoas com a polícia por perto porque elas tem muito medo da polícia. O usuário tem medo e o agente público também. Ele sabe que não vai funcionar.
Poder Online – Um dos argumentos usado pelos responsáveis pela ação é que a falta de droga fará com que as pessoas busquem o tratamento, que é a estratégia de “dor e sofrimento”.
Pedro Abramovay - Isso é achar que a polícia vai conseguir fazer com que a droga não chegue lá. Isso nunca aconteceu. Nenhuma política repressiva evitou que a droga chegasse a determinadas pessoas. Nos EUA, onde se gasta tanto dinheiro com a guerra contra as drogas, não tem esse êxito. O preço só cai e o consumo não. No máximo, se der tudo certo na Cracolândia, o que vai acontecer é que as pessoas vão ser deslocadas para outros lugares. Mas elas vão ter acesso a drogas. Não é que elas estão presas com uma espécie de imã àquele lugar, que é só cercar por ali e elas não terão mais acesso às drogas. O jeito de fazer as pessoas de saírem dessa prisão, que é a droga, é com políticas de tratamento, que respeite a liberdade dessas pessoas, que trate essas pessoas como indivíduos e que faça essas pessoas escolherem, de algum jeito, nunca mais usarem drogas. Esse é o único jeito que funciona. E com polícia isso não funciona. E não é culpa da polícia. E até muito injusto com a polícia exigir isso dela. A polícia não é feita para fazer política de saúde e política social.
Poder Online – A Polícia Militar tem divulgado a cada dia da ação o número de presos. A prisão resolve o problema da Cracolândia?
Pedro Abramovay - Tem uma questão que temos que prestar atenção: toda política sobre drogas tem na sua métrica indicadores que não têm nada a ver com o seu objetivo. A redução de consumo, a melhoria da saúde das pessoas e redução da violência são os objetivos de uma política sobre drogas. Mas nunca se mede por ai, sempre é por apreensão de drogas e por prisão. E isso não tem nada a ver. O fato de ter prendido tantas pessoas não melhorou a saúde de ninguém. No máximo, tirou aquelas pessoas dali. Mas não se está lidando de fato com política sobre drogas quando se apresenta como números apreensão de drogas e prisão de pessoas. A partir do momento que se apresentar como números a redução de consumo, a melhoria da condição de saúde das pessoas e diminuição da violência, ai se pode dizer que a política está funcionando.
Poder Online – O Brasil é capaz de ter uma política sobre drogas nacional, que oriente as ações nos estados?
Pedro Abramovay - Acredito que necessário ter uma política sobre drogas para o país inteiro, o que não significa que ela não levar em consideração as particularidades de cada local. Por exemplo, o modelo da UPP funciona muito bem no Rio de Janeiro. A realidade de São Paulo não é a realidade de ocupação territorial, militarizada pelo tráfico de drogas. Claro que é preciso construir uma política a partir de cada casa, mas existem princípios gerais que podem ser estimulados pelo governo federal e podem ser aplicados no Brasil inteiro com certeza.
Poder Online – Quais?
Pedro Abramovay - No plano do governo federal sobre as drogas, lançado recentemente, está priorizado o aspecto da saúde pública. É um fato histórico o porta-voz do plano ser o ministro da Saúde [Alexandre Padilha]. Isso é um fato a ser comemorado. Não é nem a polícia, nem os militares, como era há pouco tempo no Brasil. Mais especificamente, temos modelos de tratamento a serem debatidos. No caso específico do crack, modelos que deram certo são aqueles que têm o tratamento ambulatorial na rua, e não na internação. Primeiro porque a internação tira a liberdade da pessoa de maneira arbitrária. Mas mais do isso, a internação tira a pessoa do convívio da sociedade e faz com que ela lide com a ausência da droga em um contexto que não é real. Muitas vezes, ela volta para rua e fica abandonada. Acaba, assim, procurando a droga novamente. Quando se trata na rua, tem a redução de danos imediata e faz com que a pessoa entenda os problemas da droga na realidade dela. Mais eficiente é o tratamento que respeita a liberdade do usuário.
Poder Online – Recentemente, inspirado em um relatório do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, o secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, criou uma força tarefa para formular uma nova política em relação ao tráfico de drogas. A ação na Cracolândia em São Paulo está na contramão do que está acontecendo no mundo?
Pedro Abramovay - A política nacional não se identifica completamente com o que está acontecendo em São Paulo. Mas no mundo inteiro estamos lidando com uma mudança de concepção, com quebras de tabus, de paradigmas. O tema nunca foi debatido a sério, seja na política internacional, seja na política nacional. De dois anos para cá, houve uma mudança radical nas possibilidades de debate. Temos que aproveitar isso para que todos os lados dessa questão – que é muito polarizada – possam ser ouvir e discutir a sério. E não mais tratar simplesmente como uma luta ideológica onde de lado tem as pessoas que chamam quem defende políticas mais liberais de maconheiros e de outro lado pessoas que não se dão conta dos efeitos prejudiciais que as drogas têm. É um momento riquíssimo e espero que o Brasil saiba aproveitar esse momento para debater o tema sem preconceito.
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Rev. CAROS AMIGOS, 10.2011
Dartiu Xavier: a internação compulsória é sistema de isolamento social não de tratamento.
Gabriela Moncau
A demonização do crack e uma suposta epidemia que estaria se espalhando pelo Brasil tem progressivamente tomado conta da imprensa e dos discursos dos políticos, como bem ilustrou a disputa eleitoral presidencial no final do ano passado, de modo que um imaginário social mais baseado em medo que em informações tem sido usado para justificar uma série de políticas polêmicas por parte do Estado no já questionável “combate ao crack”, normalmente amparado por forças repressivas.
Desde o dia 30 de maio a Secretaria Municipal de Assistência Social da Prefeitura do Rio de Janeiro tem colocado em prática o sistema de internação compulsória para crianças e adolescentes menores de idade usuários de crack em situação em rua. Os jovens são internados à força em abrigos onde são obrigados a receber tratamento psiquiátrico. Atualmente são cerca de 85 meninos e meninas que já foram recolhidos (contra a vontade) das ruas cariocas.
O modelo tem sido contestado por uma série de organizações sociais ligadas às áreas da assistência social, do direito, da luta antimanicomial, dos direitos humanos, entre outras, que vêem na suposta defesa da saúde pública um disfarce para interesses econômicos e políticos ligados à higienização, especulação imobiliária e lobby de clínicas particulares.
Em manifesto, a subseção da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) acusa a Secretaria de Assistência Social do Rio de Janeiro de atuar como uma “agência de repressão, prestando-se à segregação e aumentando a apartação social que deveria reduzir, desconsiderando inclusive que o enfrentamento da fome é determinante no combate ao uso do crack, em especial da população de rua”.
O Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA) tampouco se mostrou satisfeito com a medida, que entende como inconstitucional.
O Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS) classificou as ações como “práticas punitivas” e “higienistas”, em uma postura segregadora que nega o “direito à cidadania, em total desrespeito aos direitos arduamente conquistados na Constituição Federal, contemplados no Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, no Sistema Único da Saúde – SUS e no Sistema Único da Assistência Social – SUAS”.
Respondendo à acusação de inconstitucionalidade, os defensores e idealizadores da medida atestam que na Lei 10.216, que trata de saúde mental, estão preconizados os três tipos de internação: voluntária, involuntária (sem o consentimento ou contra a vontade do paciente, com aval da família e laudo médico) e compulsória (com recomendação médica e imposição judicial). Já os que se posicionam contra alegam que, na prática, ao invés da ordem de internação compulsória ser impetrada por um juiz após análise de cada caso e com um laudo médico, ela está sendo determinada pelo Poder Executivo, de forma massificada e antes da adoção de outras medidas extra-hospitalares.
O prefeito de São Paulo Gilberto Kassab (ex-DEM, quase PSD) já afirmou que vê com bons olhos a ideia de implementar modelo semelhante na capital paulista, especialmente na região central da cidade, nas chamadas “crackolândias”. O Ministério Público já foi procurado pela prefeitura para assumir um posicionamento acerca da possibilidade, mas declarou que ainda está aguardando um projeto oficial impresso.
O Estado deve se fazer presente para esses jovens em situação de rua? Se sim, de que forma? O fato de serem menores de idade e/ou usuários de drogas lhes tira a capacidade de discernimento? É efetivo o tratamento feito contra a vontade do paciente? Que outros tipos de procedimentos podem ser adotados? No intuito de ajudar a responder essas e outras perguntas, a Caros Amigos conversou com o psiquiatra Dartiu Xavier da Silveira, professor da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) e diretor do Programa de Orientação e Assistência a Dependentes (PROAD), onde trabalha com dependentes químicos há 24 anos.
A internação compulsória não faz parte de nenhuma política pública, certo? Quando que esse dispositivo costuma ser usado? Não é só em casos específicos de possibilidade de risco da vida?
Sim. Todo uso de drogas pode trazer algum risco de vida, mas a internação compulsória é um dispositivo para ser usado quando existe um risco constatado de suicídio. A outra situação é quando existe um quadro mental associado do tipo psicose, seria quando a pessoa tem um julgamento falseado da realidade: se ela acha que está sendo perseguida por alienígenas ou se acredita que pode voar e resolve pular pela janela. Nessas situações de psicose ou um risco de suicídio é quando poderíamos lançar mão de uma internação involuntária.
Tiveram outros momentos da história em que a internação compulsória foi usada desse modo que está sendo implementado no Rio de Janeiro e prestes a ser em São Paulo?
Foi usada principalmente antes da luta antimanicomial. Tanto que existe até aquele filme, “O bicho de sete cabeças”, com o Rodrigo Santoro, que mostra os abusos que se faziam, no caso era um usuário de maconha que foi internado numa clínica psiquiátrica contra a vontade. Isso hoje é juridicamente uma coisa muito complicada, de modo geral não é mais aceito. Mas vou te dizer uma coisa: infelizmente ainda acontece hoje em dia. Volta e meia sou chamado para atender alguém que foi internado compulsoriamente contra a vontade, sem citação de internação.
Quais são os efeitos de ansiolíticos e calmantes injetáveis? Você acredita que essas substâncias que estão sendo usadas nas clínicas do RJ são medicamentos adequados para crianças usuárias de crack?
Eu não sei efetivamente o que está sendo feito nessas clínicas no Rio, o que eu sei é que a gente não tem o aparelho de Estado nem que dê conta das internações voluntárias. Ou seja, você pega uma pessoa que tem uma dependência química associada com psicose ou risco de suicídio e temos todas as indicações médicas e até a anuência do paciente de ser internado – estou falando da internação voluntária –, ainda assim não temos estrutura para atender essas pessoas. O que acontece é que se está recorrendo a um modelo considerado ultrapassado, um modelo carcerário, dos grandes hospícios. Então mesmo para as internações voluntárias acaba sendo usado um modelo de internação ineficaz. Se não temos estruturas nem para as internações voluntárias, imagine para as compulsórias.
O ansiolítico é um calmante forte?
Sim, ele vai diminuir a ansiedade da pessoa. Você pode usar também antidepressivos que diminuam a vontade da pessoa de usar aquela droga. Mas tudo isso são paliativos, porque na verdade o grande determinante para a pessoa para de usar a droga ou não, é a força de vontade. Por exemplo, eu quero parar de fumar, então eu posso tomar um calmante para diminuir esse meu desejo absurdo de fumar, mas se eu não tiver a motivação da minha decisão de parar, não vai existir calmante que me faça parar de fumar. Ele não age por si só. Daí um dos problemas de tratar alguém que não está convencido de ser tratado.
Você afirma que o número de dependentes de drogas é muito inferior ao número de usuários, que não tem problemas com o consumo de drogas.
Exatamente. Para maconha e para álcool é menos de 10% dos usuários que se tornam dependentes. Para crack, por volta de 20% a 25% que se tornam dependentes, os outros permanecem no padrão de uso recreacional. Nem todo consumo é problemático.
Esse sistema, então, corre o risco de internar usuários que não são dependentes de fato?
É muito provável que isso aconteça. Sobretudo porque existe uma lógica muito perversa da internação compulsória que atribui a situação de miséria e de rua à droga, quando na realidade a droga não é a causa daquilo, ela é consequência. Acredito que o trabalho feito nas ruas, nas crackolândias e com crianças de rua deveria ser no sentido de resgate de cidadania, moradia, educação, saúde.
O que você acha do tratamento da dependência sem que a pessoa tenha o desejo de ser tratada? Existe possibilidade de eficiência?
A eficácia é muito baixa. Existem estudos mostrando que nesses modelos de internação compulsória o máximo que se consegue de eficácia é 2%, ou seja, 98% das pessoas que saem da internação recaem depois. Certamente porque a pessoa não está nem convencida a parar.
O Estado, de modo geral, vem se omitindo há décadas a respeito da situação de jovens moradores de rua em situações de vulnerabilidade. Por que você acha que começaram a agir agora, e desse modo?
Acredito que é por conta de uma diversidade enorme de variáveis. O que tem se falado muito é que é uma medida higienista de tirar as pessoas das ruas e que começou no Rio de Janeiro por causa da proximidade de Copa e Olimpíadas. É uma forma de tirar os miseráveis das ruas. Já vi também tentativas de implementação de internação compulsória por uma questão política, necessidade de o governante mostrar que está fazendo alguma coisa pela população, pelos drogados, apesar de ser uma coisa que não funciona pode render votos.
Para inglês ver.
Exatamente, para inglês ver. No caso da Copa e das Olimpíadas, literalmente para ingleses e outros gringos verem.
O tema da internação tem gerado bastante polêmica, um dos argumentos apresentados aos que se posicionam contra a internação é de que se trata de menores de idade, e o Estado tem a obrigação de fazer-se presente, de cuidar das crianças e adolescentes. O que você acha disso e o que considera que deveria ser uma boa medida por parte do Estado nessas situações?
Acho que o argumento é válido e acho que é verdade que o Estado realmente tem que cuidar dessas crianças. Só que não acho que isso seja cuidar. Cuidar é dar moradia, educação, saúde. Não é colocar a pessoa em um cárcere psiquiátrico, em um manicômio. Porque é isso que vai acontecer: vão ser grandes depósitos de crianças desfavorecidas e que usam drogas.
Muitos dizem que a internação compulsória para essas crianças e jovens mascara um problema maior, o da desigualdade social, da falta de educação, moradia, saúde, etc. Porém, os que defendem a internação afirmam que é uma medida para algo emergencial. Você vê alternativas que respondem à emergência que alegam para a situação?
Esses trabalhos das equipes multidisciplinares de rua que já fazem um trabalho, mas que deveriam ser aumentados. O trabalho deve ser na rua. As redes de CAPS [Centro de Atenção Psicossocial] são um bom exemplo e deveriam ser ampliadas.
Como funcionam?
Da seguinte forma: uma equipe multidisciplinar que tem familiaridade exclusiva com o problema das drogas vai fazendo um trabalho muito de formiguinha, porque cada caso é um caso. Eles vão identificar qual é a problemática daquela pessoa, porque a pessoa está na rua, se é por uma questão familiar, se é por uma questão de abandono total, ou seja, cada situação tem que ser vista na sua singularidade justamente para ver como que entra a droga nessa singularidade.
Fizemos um trabalho na rua uma vez com umas adolescentes que usavam drogas e perguntamos o motivo do uso, elas disseram “Olha tio, a gente usa drogas porque para comer a gente precisa se prostituir. A gente é muito pequena, para ter uma relação sexual com um adulto a gente precisa se drogar, senão a gente não agüenta de dor”. Quem diria que o problema dessas meninas é a droga? Eu acho que é o último problema dessas meninas.
É apresentada a necessidade da internação compulsória para crianças e adolescentes baseada em duas premissas que fundamentariam a não possibilidade de tomarem decisões por si próprios: a de que são menores de idade e a de que sendo dependentes de crack não poderiam pensar com sanidade. O fato de usarem essa última justificativa abre precedente para a internação compulsória de adultos?
Certamente. E essa segunda justificativa cai por terra na hora que pensamos naquele dado que eu falei, dos usuários de crack 75% a 80% são usuários recreacionais: são pessoas que trabalham, são produtivas, que tem família, que levam a vida. No meu consultório particular eu atendo executivos que são usuários recreacionais de crack, você vai dizer que o crack torna a pessoa incapaz de pensar? Não, não se pode atribuir isso ao crack. Poderíamos fazer o mesmo raciocínio com o cigarro. O indivíduo não consegue parar de fumar, está se matando, vai ter um câncer, então ele é considerado incapaz? Bom, ele é capaz de ganhar dinheiro, de ter relações sociais, de tomar uma série de decisões na vida, não dá para atribuir isso ao cigarro.
O que, por exemplo, o secretário municipal de Assistência Social do Rio, Rodrigo Bethlem, fala é que o crack é diferente de qualquer outra droga porque “faz com que a pessoa perca a noção completa da realidade”.
Isso não é verdade. Não existe isso. O crack é como a cocaína, ou seja, a pessoa não perde a noção da realidade, é que a compulsão pelo uso é muito intensa.
Fale um pouco sobre as condições a que os doentes mentais internados geralmente são submetidos no Brasil.
É muito complicado. É um sistema que ainda guarda muito da herança do sistema carcerário, o sistema dos manicômios. Por exemplo, um dos hospitais que tem sido citado pela mídia como modelo aqui em São Paulo de possibilidade de tratamento de dependentes é uma estrutura psiquiátrica. Esse hospital, eu não posso dizer o nome por questão de segurança, está sob intervenção do Ministério Público por maus tratos aos pacientes. Esse hospital que é considerado modelo. O que devemos esperar dos outros, que nem são vendidos como modelos? Na verdade o que é preconizado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como tratamento para dependentes é a internação de curto prazo só para fazer a desintoxicação, cerca de 15 dias, no máximo 30 dias, e em unidades dentro do hospital geral. Por isso que eu montei há 10 anos atrás uma estrutura dentro do hospital geral para esses casos de internação.
Aqui no Brasil são poucos os hospitais que tem essa unidade?
Pouquíssimos. Em geral aqui no Brasil se usa o modelo manicomial ainda.
Como funciona o modelo manicomial?
É o modelo onde o indivíduo fica internado meses ou anos, não recebe atendimento multidisciplinar, não vai ser submetido à psicoterapia, recebe algum tipo de medicação – nem sempre é a medicação adequada para ele. Eu fiz um estudo há 5 anos atrás com 300 dependentes internados em hospitais psiquiátricos. Para se ter uma ideia, 90% deles, embora tivessem supostamente sendo atendidos por médicos psiquiatras, não tinha tido seu diagnóstico psiquiátrico identificado! Eles tinham depressão, fobia social, enfim, isso não foi identificado. Ou seja: é um sistema de depósito, não é um sistema de tratamento. Por isso que eu chamo de sistema carcerário, é de isolamento social, não de tratamento.
Você afirmou que “a dependência de drogas não se resolve por decreto. As medidas totalitárias promovem um alívio passageiro, como um ‘barato’ que entorpece a realidade”. Você acha que existe a ilusão por parte dos idealizadores desse sistema de que medidas como a internação compulsória resolvam o problema ou você acredita que de fato a intenção é maquiar a realidade?
Eu conheço gente bem intencionada que acredita nisso. Mas é claro que pessoas mal intencionadas também estão envolvidas nisso. Por exemplo, eu estava conversando com o Dráuzio Varella, que é a favor da internação compulsória. Ele dava os prós e eu os contras, e foi interessante porque ele é uma pessoa muito bem intencionada. Não sei se ele mudou de ideia depois que conversamos, mas acredito que tenha relativizado uma série de coisas que ele pensava. O Dráuzio é uma pessoa que eu considero que está autenticamente defendendo essa ideia, com embasamento coerente, só que não vai funcionar. Foi o que eu falei para ele.
Em São Paulo, a gestão Kassab pretende permitir que a GCM leve à força pessoas que não aceitarem serem retiradas da rua. Pretende também implementar um sistema de “padrinhos”, que seriam profissionais nomeados nas centrais de triagem para acompanhar um paciente durante a sua internação compulsória, até estar supostamente apto para uma “reintegração social”. O que você acha desse sistema?
Esse sistema vai furar porque é uma ingerência na vida privada das pessoas, é contra o direito de ir e vir, contra os direitos humanos. E na verdade o que vai acontecer é que isso vai funcionar – funcionar entre aspas porque não será eficaz – nas populações carentes. Porque quem é classe média e alta e tiver fumando crack na rua, vai ser pego mas o papai vai por ele numa clínica chique, vai ficar uma semana, e vai para casa depois. Então é um sistema bastante questionável do ponto de vista ético, porque vai ser aplicado nas populações “indesejáveis”. Além disso, grande parte das pessoas que eu vejo defenderem a internação compulsória são donos de hospitais psiquiátricos que vão se beneficiar diretamente com isso.
Você concorda com esse discurso que tanto aparece na mídia de que o crack é mesmo um dos maiores problemas do Brasil?
Não, isso é uma fabricação. Não existe essa epidemia de crack de que tanto se fala. Não estou dizendo que a dependência de crack não é uma coisa grave, é gravíssima. No meu serviço eu atendo 600 pessoas por mês, metade ou 40% é dependente de crack. Então o problema existe e o problema é sério. Só que ele não aumentou. Eu atendo essa frequência de dependentes há 15 anos. O que se criou é a ideia falsa de uma epidemia de crack quando o grande problema da saúde pública do Brasil dentro da área de drogas ainda é o álcool, sem dúvidas. Eu não sei qual foi o mote disso. Os estudos que o próprio Ministério da Saúde e a SENAD [Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas] divulgam não comprovam a existência de uma epidemia de crack.
Por que, apesar desse discurso demonizador do crack, você acha que as pessoas continuam buscando o crack? Quais são os efeitos positivos que faz com que a demanda persista?
Se a gente for ver a heroína na Europa e nos Estados Unidos – a heroína não é uma droga muito discutida comparada ao crack – conseguimos fazer prevenção, tratamento, mas sempre aparecem novos usuários. Tem pessoas que tem esse comportamento de risco, em geral são pessoas impulsivas mas é algo turbinado por uma situação de exclusão social.
Qual a importância da redução de danos?
A redução de danos é um conjunto de estratégias que a gente usa para aquelas pessoas que não podem parar de usar drogas, ou porque não querem ou porque não conseguem. Normalmente o que se fazia antigamente era ‘olha, não deu certo o tratamento, o indivíduo não ficou abstinente, então sinto muito, vai continuar dependente’. A redução de danos surgiu justamente para essas pessoas que não conseguiram se tratar ou que não aceitaram o tratamento mas que são formas e estratégias para diminuir os riscos relacionados ao consumo. Então por exemplo, teve um estudo sobre redução de danos publicado há anos atrás fora do Brasil, a respeito de um grupo de usuários de crack que não conseguia se tratar de forma nenhuma. Mas começaram a relatar que quando eles usavam maconha, conseguiam segurar e não usar crack. Eu acompanhei esse grupo de pessoas por um ano e para a nossa surpresa, 68% deles abandonou o crack através do uso de maconha. Depois de três meses tinham abandonado o crack. Até brinquei na época que as pessoas falam que a maconha é porta de entrada para outras drogas, mas ela pode ser porta de saída também.
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JORNAL DA ALERJ http://bit.ly/jornal235
"Modelo de tratamento tradicional não funciona para o CRACK".
Jairo Werner
Psiquiatra com mais de 15 anos de experiência no tratamento de usuários de drogas e professor da Universidade Federal Fluminense (UFF), Jairo Werner Júnior é taxativo ao falar do problema do crack no País. Segundo ele, “é preciso uma grande articulação científica, social e política para enfrentar este problema”. De acordo com o especialista, esta diferença em relação às outras drogas acontece porque, apesar de ter o mesmo princípio ativo da cocaína, o crack tem um poder de ação muito maior. “Por ser fumado, ele entra no sistema arterial e vai direto para o cérebro; já a cocaína é metabolizada e chega ao cérebro gradualmente”, relata.“Com a mesma quantidade de princípio ativo da cocaína, o crack atinge uma concentração até cinco vezes maior no cérebro em menos de um quinto do tempo, gerando um efeito muito mais potente e menos duradouro, o que faz com que a pessoa já queira usar de novo. Por isso, a frequência do uso aumenta muito e o usuário se vicia mais rápido e tem mais dificuldade para largar a droga”, explica. “Precisamos investir em pesquisa, formação e capacitação de pessoas para atuar de forma eficaz na prevenção e tratamento contra o crack”, defende.
Especialista no tratamento de crianças e adolescentes usuárias de drogas e álcool, Jairo atualmente é coordenador do projeto Restaurando Esperanças, uma parceria entre a UFF e a Fundação para a Infância e Adolescência (FIA), que, atualmente, atende cerca de 50 crianças. “No projeto, trabalhamos com alguns pólos avançados e fazemos um atendimento ambulatorial. Temos uma equipe interdisciplinar, que envolve diversos profissionais como assistentes sociais, médicos, psicólogos, ex-usuários, grupos de teatro e outras atividades, porque o crack não é uma questão só de saúde, ele é também o sintoma de um problema social”, assegura.
Segundo Werner, o fundamental para a recuperação dos usuários é o restabelecimento de vínculos, seja com a família ou com grupos como o de teatro que faz parte do projeto. “Além disso, é muito importante ter abrigos em que possamos proteger esses usuários, sem o risco da estigmatização e da formação de guetos”, opina.
Leia a entrevista do professor e psiquiatra Jairo Werner Júnior, doutor em Saúde Mental, abaixo:
É difícil encontrar pessoas que sejam ex-usuárias de crack e tenham se recuperado totalmente. Na sua experiência na área, você conhece casos de sucesso?
É muito difícil, mas eu já tive alguns pacientes que se recuperaram desta droga. Tive um paciente que saiu da cracolândia de São Paulo depois de passar dois anos na rua e, hoje, coordena uma comunidade terapêutica. Ele foi morar em São Paulo, e por problemas com a família foi para a cracolândia. Um dia o irmão achou ele na rua e conseguiu trazê-lo ao Rio, onde ele passou por comunidades terapêuticas e foi tratado.
Qual a principal diferença do crack em relação à cocaína, droga que já está difundida na sociedade há mais tempo?
O crack e a cocaína são a mesma coisa em termos de princípio ativo. Mas no caso do primeiro, você tem circulação mais curta no organismo, porque o vapor entra no pulmão, onde é absorvido pelos alvéolos, entra no sangue e faz um trajeto curto direto para o cérebro. Quando a cocaína é cheirada, é absorvida pela mucosa nasal, entra na corrente circulatória, vai para o sistema geral do organismo, e vai perdendo potência até chegar ao cérebro. O circuito é muito maior. Temos na cocaína cheirada uma concentração menor do princípio ativo atuando no cérebro.
Esta diferença é o que faz o crack viciar tanto e ser tão de largar?
Sim. Como o efeito é muito rápido, a concentração máxima chega em cinco minutos e, depois, começa a cair. Com isso, a pessoa já quer usar de novo, fazendo com que a frequência do uso seja aumentada, consequentemente o tempo de se tornar dependente da droga se reduz muito.
E quais são os problemas causados pelo crack na pessoa que usa com frequência?
Os efeitos decorrentes do princípio ativo são praticamente iguais aos da cocaína. Um deles é o infarto, que, principalmente em jovens, é quase sempre decorrente do uso de cocaína, porque ela pode causar inflamação nas artérias. Tive paciente que já tinha parado de usar a droga e acabou falecendo de infarto porque as artérias estavam inflamadas.
Qual a importância da família neste processo de recuperação?
Uma das coisas que é mais importante é a referência, e a família normalmente é ou deveria ser a melhor delas. Quando não há esta família, temos que desenvolver programas em que o dependente possa se sentir acolhido, orientado, ter uma referência. Temos visto que muitas famílias perderam a possibilidade de influenciar seus filhos, até porque muitos também têm problemas com drogas ou outras situações graves.
Em termos gerais, quais são os maiores desafios para enfrentar este problema de forma consistente?
Um grande problema é não termos muitas pessoas formadas adequadamente para lidar com o assunto, pois o crack não envolve só a substância, mas um complexo social muito grave. Ele é sintoma de mazelas sociais, falta de acesso a serviços, famílias sem suporte.. Você não pode pensar só no atendimento médico, mas em toda a rede social que envolve o usuário. É claro que deve haver um atendimento na ponta, mas precisamos de uma abordagem mais ampla, com a compreensão da complexidade social envolvida nesta questão. E é isso que buscamos fazer na UFF, de uma forma pequena, dentro das nossas possibilidades: dar assistência às famílias. O nosso eixo principal é a interação tanto do profissional com os jovens como dos jovens entre si.
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Fórum http://bit.ly/tLNMpR
Crack
Para o psiquiatra e professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), Jairo Werner, um dos principais problemas em relação ao tratamento de usuários de crack no país é a falta de um protocolo de tratamento. Segundo ele, até mesmo o meio acadêmico enfrenta sérias dificuldades nesse aspecto. “Temos que evoluir muito o trabalho para chegar a um consenso”, pondera.
Por Thalita Pires
Fórum - O crack realmente causa mais dependência que outras drogas?
Jairo Werner - O crack causa dependência de forma similar a todas as outras drogas. A diferença é o tempo que esse processo leva. O crack chega mais rapidamente ao cérebro, o caminho da droga pelo pulmão é mais curto. Logo depois da tragada, o cérebro é “inundado” por neurotransmissores, mas não é isso que causa a dependência. A sensação é muito forte e isso faz com que a pessoa queira fumar outra vez, o mais rápido possível. Não gosto de falar isso porque posso ser mal-compreendido, mas a violência da sensação que o crack proporciona é da ordem de vários orgasmos. A pessoa não vai ter orgasmos fumando crack, mas a magnitude do efeito é semelhante. É por isso que o crack causa uma dependência mais rápida.
Fórum - Por que o crack é a escolha das crianças de rua, se o preço de um cigarro de maconha e de uma pedra de crack é semelhante?
Werner - A maconha relaxa, o crack estimula. Pessoas que não têm o que comer não vão fumar maconha, que além de relaxar dá mais fome, mas sim o crack, que faz com que todas as outras sensações sejam suplantadas.
Fórum - É possível dizer que o crack deixou de ser uma droga usada por moradores de rua e passou para a classe média?
Werner - Isso é um processo dinâmico. Não é porque a droga começou a ser usada principalmente por moradores de rua que isso não pode mudar. O tipo de usuário muda sim. Minha experiência clínica mostra que a droga está chegando na classe média. Há dez anos não víamos dependentes de crack de classe média, hoje isso já acontece.
Fórum - Qual a sua opinião sobre o Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack e outras Drogas, lançado no ano passado pelo governo federal?
Werner - Qualquer plano já é alguma coisa, já que antes não havia nada. Mas é bom lembrar que, na UERJ, denunciamos a existência do crack há cinco anos. Isso significa que essa iniciativa já chega atrasada. O problema é que o crack já está em uma dimensão muito maior do que qualquer plano.
Fórum – Dentro dele, quais seriam os pontos positivos? O texto enfatiza, por exemplo, a atuação de atores sociais como igrejas e líderes comunitários.
Werner - Sim, a participação social é importantíssima. Quando a comunidade que cerca o usuário está envolvida, é possível fornecer uma acolhida imediata. Isso é importante porque o usuário ou dependente não vai buscar ajuda no começo. Se isso acontecer, vai ser apenas quando sua situação chegar num nível muito perigoso. Então, essa é uma forma de buscar o usuário ativamente, e não apenas esperar que ele busque tratamento.
Fórum – E em relação à rede de atendimento ao usuário?
Werner - Temos um atendimento, hoje, que não é uma rede. Precisamos de equipamentos de saúde em todos os níveis, que sejam de fato integrados. Tudo tem que trabalhar junto, a educação, a saúde, a assistência social. Os municípios, no entanto, são muito setorizados, os secretários, em vez de colaborarem, brigam entre si. Esse é um problema que um plano federal pode ajudar a resolver.
Fórum – E quais as falhas, o que pode dar errado no Plano?
Werner - Tenho medo, por exemplo, de que se criem “cracolândias terapêuticas”, um depósito de viciados. Isso já se mostrou ineficaz. O crack é diferente de outras drogas. O problema é que não temos especialistas nem métodos reconhecidos para tratar os dependentes. Uma parte desses pacientes são crianças, mas ninguém sabe lidar com isso. Em resumo, ninguém sabe como lidar com o crack, não há protocolo de tratamento e é nisso que devemos trabalhar.
Fórum – O meio acadêmico não pode ajudar a criar esse protocolo de tratamento?
Werner - A universidade também não sabe como lidar com isso. Temos que evoluir muito o trabalho para chegar a um consenso.
Fórum - O que impede a criação desse consenso?
Werner - Nossa discussão sobre drogas é muito ideologizada. Algumas pessoas querem segregar o usuário, tratá-lo separadamente e depois reintegrá-lo à sociedade. Isso já foi tentado e não funcionou. Outros acham que o problema da dependência é estritamente social, então o usuário deve ser deixado como está, pois sua situação só vai melhorar com uma mudança da sociedade. Esses dois extremos ficam debatendo e não chegamos a conclusão alguma.
Nos EUA, por exemplo, existe a Justiça Terapêutica. A pessoa deixa de ser processada por alguns crimes se aceitar o tratamento contra a dependência. Hoje isso jamais seria aceito no Brasil, por que há quem trate o usuário como criminoso. Aqui ou querem o autoritarismo ou a permissividade; ou as crianças ficam nas ruas ou vão para mini-Carandirus. Nenhuma dessas opções é a certa.
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Entrevista com Maria Lúcia Karan
“Não são as drogas que causam violência, mas sim a ilegalidade imposta ao mercado"
Ex-defensora pública e juíza aposentada no Rio de Janeiro, Maria Lúcia Karam é um dos principais expoentes teóricos do antiproibicionismo brasileiro. Libertária e ativista do abolicionismo penal, Karam inspirou o nome do nosso coletivo – agora completando um ano – com sua carcterização de que somente uma razão entorpecida pode conviver com o proibicionismo que combatemos. Em entrevista exclusiva para o DAR, ela abordou um pouco de suas convicções e opiniões acerca dos efeitos do proibicionismo em geral e de nossa atual lei, do abolicionismo penal, da questão das drogas nas eleições 2010 e também sobre o posicionamento de esquerda e direita neste debate. “É preciso legalizar a produção, o comércio e o consumo de todas as drogas, de modo a efetivamente afastar os riscos, os danos e os enganos do proibicionismo, que provoca violência, que provoca maiores riscos e danos à saúde, que cerceia a liberdade, que impede a regulamentação e um controle racional daquelas atividades econômicas”, sintetiza Karam, uma mente desentorpecida.
DAR – Maria Lúcia, nos inspiramos em suas formulações para nomear nosso coletivo e também para pautar muitas de nossas reflexões. Gostaria que comentasse rapidamente em que consiste a “razão entorpecida” que pauta nossas atuais políticas de drogas, e quais os impactos principais dela.
Maria Lúcia Karam – Costumo dizer que somente uma razão entorpecida sustenta a globalizada política de drogas porque um mínimo de racionalidade demonstra não só o fracasso de seus declarados objetivos, como também – e mais importante – os graves riscos e danos decorrentes da proibição.Após um século de proibição, agravada nos últimos quarenta anos pela adoção da política de “guerra às drogas”, a pretendida erradicação das drogas tornadas ilícitas não aconteceu e nem mesmo a redução de sua circulação. Ao contrário, essas substâncias proibidas foram se tornando mais baratas, mais potentes e muito mais facilmente acessíveis.
Inspiradas pelo paradigma bélico, medidas repressivas impostas pelas convenções da ONU e pelas leis internas criminalizadoras das condutas de produtores, comerciantes e consumidores das drogas tornadas ilícitas se caracterizam por uma sistemática violação de clássicos princípios garantidores de direitos fundamentais, provocando um vertiginoso aumento no número de pessoas presas em todo o mundo e ameaçando os próprios fundamentos da democracia. A proibição conduz a uma total ausência de controle sobre o mercado tornado ilegal, entregue a agentes que, atuando na clandestinidade, não estão sujeitos a quaisquer limitações reguladoras de suas atividades.
A proibição provoca maiores riscos e danos à saúde: impede a fiscalização da qualidade das substâncias comercializadas; sugere o consumo descuidado e não higiênico; dificulta a busca de assistência; constrói preconceitos desinformadores e obstáculos às ações sanitárias; cria a atração do proibido, acabando por estimular o consumo especialmente por parte de adolescentes.
A proibição causa violência. Não são as drogas que causam violência, mas sim a ilegalidade imposta ao mercado. A produção e o comércio de drogas não são atividades violentas em si mesmas. É a ilegalidade que cria a violência. A produção e o comércio de drogas só se fazem acompanhar de armas e de violência quando se desenvolvem em um mercado ilegal. A violência não provém apenas dos enfrentamentos com as forças policiais, da impossibilidade de resolução legal dos conflitos, ou do estímulo à circulação de armas. Além disso, há a diferenciação, o estigma, a demonização, a hostilidade, a exclusão, derivados da própria idéia de crime, a sempre gerar violência, seja da parte de agentes policiais, seja da parte daqueles a quem é atribuído o papel do “criminoso”, ou, pior, do “inimigo”.
A realidade e a história demonstram que o mercado das drogas não desaparecerá. As pessoas continuarão a usar substâncias psicoativas, como o fazem desde as origens da história da humanidade, nada importando a proibição. Em um ambiente de legalidade, as pessoas estarão muito mais protegidas, tendo maiores possibilidades de usar tais substâncias de forma menos arriscada e mais saudável.
DAR- Como é vista a questão das drogas dentro do sistema judiciário e do meio jurídico? Existem mais vozes dissonantes? Em seu texto “A lei 11.343 e os repetidos danos do proibicionismo” você aponta incoerências e inclusive inconstitucionalidades na nossa atual lei de drogas, como é possível que não haja contestação jurídica desta lei?
MLK – A maioria dos juízes – e dos profissionais do direito em geral – costuma interpretar e aplicar as leis de forma burocrática, ignorando a supremacia das normas garantidoras de direitos fundamentais, inscritas nas declarações internacionais de direitos e nas constituições democráticas, ignorando o fato de que uma lei só é válida – e, portanto, só é aplicável – quando se harmoniza com essas normas garantidoras de direitos fundamentais. Por isso, dispositivos claramente inconstitucionais presentes na Lei 11.343 ainda subsistem e são pouco contestados. Isso, evidentemente, acontece não só no Brasil.
No entanto, alguns avanços podem ser constatados. No Brasil, vale lembrar o acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, proferido na Apelação Criminal 01113563.3/0-0000-000, relator o juiz José Henrique Rodrigues Torres, em que foi declarada a inconstitucionalidade da regra criminalizadora da posse de drogas para uso pessoal.
DAR- No caso da Argentina houve uma decisão jurídica da Suprema Corte que na prática descriminalizou o consumo de drogas. Você acredita que existe possibilidade do STF se posicionar de maneira a questionar o proibicionismo?
MLK – A importante decisão da Suprema Corte argentina de 25 de agosto de 2009, em que declarada a inconstitucionalidade da criminalização da posse de drogas para uso pessoal, é um exemplo dos avanços antes mencionados.
Confio que o STF também exerça a função maior de todos os juízes que é a de garantir a supremacia das normas inscritas nas declarações internacionais de direitos e na Constituição, de garantir a efetividade dos direitos fundamentais de cada indivíduo. Assim exercendo corretamente sua função, o STF certamente deverá também proclamar a manifesta inconstitucionalidade da criminalização da posse de drogas para uso pessoal.
DAR – Qual a importância de debater a questão das drogas relacionando-a à criminalização da pobreza, dos movimentos sociais e perante a constatação da seletividade do sistema jurídico?
MLK – A “guerra às drogas” não se dirige propriamente contra as drogas. Como qualquer outra guerra, dirige-se sim contra pessoas – nesse caso, os produtores, comerciantes e consumidores das drogas tornadas ilícitas. Como acontece com qualquer intervenção do sistema penal, os mais atingidos pela repressão são os mais vulneráveis econômica e socialmente, os desprovidos de riquezas, os desprovidos de poder.
No Brasil, os mais atingidos são os muitos meninos, que, sem oportunidades e sem perspectivas de uma vida melhor, são identificados como os “traficantes”, morrendo e matando, envolvidos pela violência causada pela ilegalidade imposta ao mercado onde trabalham. Enfrentam a polícia nos confrontos regulares ou irregulares; enfrentam os delatores; enfrentam os concorrentes de seu negócio. Devem se mostrar corajosos; precisam assegurar seus lucros efêmeros, seus pequenos poderes, suas vidas. Não vivem muito e, logo, são substituídos por outros meninos igualmente sem esperanças. Os que sobrevivem, superlotam as prisões brasileiras.
Nos EUA, pesquisas apontam que, embora somente 13,5% de todos os usuários e “traficantes” de drogas naquele país sejam negros, 37% dos capturados por violação a leis de drogas são negros; 60% em prisões estaduais por crimes relacionados a drogas são negros; 81% dos acusados por violações a leis federais relativas a drogas são negros. Os EUA encarceram 1.009 pessoas por cem mil habitantes adultos. Se considerados os homens brancos, são 948 por cem mil habitantes adultos. Se considerados os homens negros, são 6.667 por cem mil habitantes. Sob o regime mais racista da história moderna, em 1993 – sob o apartheid na África do Sul – a proporção era de 851 homens negros encarcerados por cem mil habitantes. Como ressalta Jack A. Cole, diretor da Law Enforcement Against Prohibition-LEAP – organização internacional que reúne policiais, juízes, promotores, agentes penitenciários e da qual orgulhosamente faço parte – é o racismo que conduz a “guerra às drogas” nos EUA.
Na Europa, a mesma desproporção se manifesta em relação aos imigrantes vindos de países pobres.
Quem deseja construir um mundo melhor, quem deseja construir sociedades mais iguais, mais justas, mais livres, mais solidárias, seguramente precisa lutar pelo fim da “guerra às drogas”, precisa lutar pela legalização da produção, do comércio e do consumo de todas as drogas.
DAR – É possível se incluir um nicho marginalizado na sociedade sem que este torne-se mais um mecanismo exploratório da mídia e do consumo?
MLK – Sociedades não deveriam ter “nichos marginalizados”. Todos devem estar incluídos nas sociedades. Manipulações e explorações da mídia e dos incentivos a um consumismo descontrolado não são algo preocupante apenas quando se trata de integrar “nichos marginalizados”, sendo sim algo que deve ser permanentemente enfrentado.
DAR- Como avalia o posicionamento dos presidenciáveis frente à questão das drogas? Além dos presidenciáveis como vê o silêncio de figuras públicas vinculadas a partidos?
MLK – Acho lamentável o posicionamento que todos os presidenciáveis e a maioria das figuras públicas brasileiras vinculadas a partidos têm externado em relação às drogas. Repetem o enganoso discurso proibicionista. Ratificam e/ou compactuam com a globalizada política proibicionista fundada na inútil, perigosa, violenta, danosa e dolorosa “guerra às drogas”.Por outro lado, o silêncio frequentemente reflete uma auto-censura, uma postura de quem receia contrariar pensamentos eventualmente majoritários, de quem pauta sua atuação política por momentâneas pesquisas de opinião.
DAR – Muitas pessoas defendem uma saída no sentido de somente descriminalizar ou regulamentar a posse de drogas para consumo próprio, mantendo o tráfico sob forte repressão. Como avalia essa proposição? Seria isso o que é possível no momento ou uma saída para somente um setor da sociedade?
MLK – A descriminalização da posse para uso pessoal das drogas ilícitas é um imperativo derivado da necessária observância dos princípios garantidores dos direitos fundamentais inscritos nas declarações internacionais de direitos e nas constituições democráticas. A posse de drogas para uso pessoal é uma conduta que não atinge concretamente nenhum direito de terceiros. É uma conduta privada que não pode sofrer qualquer intervenção do Estado. Em uma democracia, a liberdade do indivíduo só pode sofrer restrições quando sua conduta atinja direta e concretamente direitos de terceiros.
Mas essa imperativa descriminalização não é suficiente. Praticamente nada mudará, a não ser que a produção, o comércio e o consumo de todas as drogas possam se desenvolver em um ambiente de legalidade.É preciso legalizar a produção, o comércio e o consumo de todas as drogas, de modo a efetivamente afastar os riscos, os danos e os enganos do proibicionismo, que provoca violência, que provoca maiores riscos e danos à saúde, que cerceia a liberdade, que impede a regulamentação e um controle racional daquelas atividades econômicas.
Não se pode parcial e egoisticamente defender apenas os direitos de consumidores de drogas e ignorar ou até mesmo compactuar com as gravíssimas violações de direitos das maiores vítimas da “guerra às drogas” – no Brasil, repita-se, os muitos meninos que negociam e trabalham no árduo mercado tornado ilegal.
Tampouco se pode pensar no paradigma de redução de riscos e danos apenas em um sentido que o vincula unicamente a questões concernentes à saúde. Aliás, o desenvolvimento de programas terapêuticos de redução dos riscos e danos relacionados às drogas tornadas ilícitas no interior de um ordenamento proibicionista, que maximiza esses riscos e danos, torna-se algo irracional e insustentável, ou, na melhor das hipóteses, uma política que se satisfaz com o enfrentamento apenas de alguns riscos e danos menos graves, deixando de lado os riscos e danos mais graves, inclusive os diretamente relacionados e agravantes dos mais limitados riscos e danos enfrentados.
Não se pode parcial e maniqueistamente defender apenas a legalização de uma ou outra droga apresentada como “boa” ou “inofensiva”, como fazem defensores da maconha ou da folha de coca, que, reproduzindo a mesma artificial distinção que sustenta a enganosa e nociva divisão das drogas em lícitas e ilícitas, pretendem se apresentar como os “bons”, se diferenciando dos “maus” produtores, comerciantes e consumidores de drogas ditas “pesadas”.
Não se pode pretender reduzir riscos e danos relacionados às drogas e não se incomodar com a nocividade do proibicionismo.
Somente a legalização da produção, do comércio e do consumo de todas as drogas porá fim à enorme parcela de violência provocada pela proibição. Somente a legalização da produção, do comércio e do consumo de todas as drogas permitirá a efetiva regulação e o controle do mercado, de forma a verdadeiramente proteger a saúde. Somente a legalização da produção, do comércio e do consumo de todas as drogas permitirá a economia dos recursos atualmente desperdiçados na danosa “guerra às drogas” e o aumento da arrecadação de tributos, assim permitindo a utilização desses novos recursos em investimentos socialmente proveitosos.
DAR- E como você encara a participação de setores conservadores neste debate, cujo exemplo mais marcante é o ex-presidente FHC?
MLK – O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que para se apresentar como um reformador nesse tema deveria, antes de tudo, fazer uma profunda autocrítica sobre a política desenvolvida em seu governo – basta lembrar que foi em seu governo que foi criada a militarizada SENAD –, na realidade, avançou muito pouco.
O relatório da Comissão Latino-americana sobre Drogas e Democracia, da qual é um dos líderes, afirma o fracasso e aponta danos da “guerra às drogas”. No entanto, paradoxalmente, apóia ações repressivas, inclusive com a intervenção das Forças Armadas, propondo apenas a mera adoção de programas de saúde fundados no paradigma de redução de riscos e danos e a mera descriminalização da posse para uso pessoal tão somente da maconha.
Setores ditos “conservadores” que verdadeiramente se posicionem no sentido da legalização da produção, do comércio e do consumo de todas as drogas, naturalmente, devem ser muito bem-vindos. Todas as forças que se disponham a lutar para obter essa conquista fundamental para o bem-estar da humanidade, certamente, devem ser recebidas com entusiasmo. Posicionando-se verdadeiramente pela legalização da produção, do comércio e do consumo de todas as drogas poderão até ser “conservadores” em alguns temas, mas estarão demonstrando um compromisso com a liberdade e com o bem-estar das pessoas que deve ser saudado.
DAR- O seu nome é invariavelmente ligado aos debates sobre o abolicionismo penal. Poderia nos explicar como acredita que devem ser pautados nossos conflitos sociais para além do direito penal? Como isso se daria concretamente em um ambiente capitalista?
MLK – Uma agenda política voltada para o aprofundamento da democracia, para a construção de um mundo melhor, para a construção de sociedades mais iguais, mais justas, mais livres, mais solidárias, onde os direitos fundamentais de todos os indivíduos sejam efetivamente respeitados, há de ter o fim do poder punitivo e a conseqüente abolição do sistema penal como um de seus principais itens.
A luta pela abolição do sistema penal é uma luta pela liberdade; uma luta contra um sistema que estigmatiza, discrimina, produz violência e causa dores; uma luta para pôr fim a desigualdades; uma luta para reafirmar a dignidade inerente a cada um dos seres humanos, assim devendo ser parte inseparável da busca de uma reorganização das sociedades que, superando a violência, as opressões, explorações, desigualdades e misérias provocadas quer pelo capitalismo, quer pelo que se convencionou chamar de socialismo real, possa lançar as bases de um novo patamar de convivência entre as pessoas.
A força ideológica da enganosa publicidade do sistema penal cria a falsa crença que faz com que o controle social, fundado na intervenção do sistema penal, apareça como a única forma de enfrentamento de situações negativas ou condutas conflituosas. Na realidade, porém, as leis penais não protegem nada nem ninguém; não evitam a realização das condutas que por elas criminalizadas são etiquetadas como crimes. Servem apenas para assegurar a atuação do enganoso, violento, danoso e doloroso poder punitivo.
A intervenção do sistema penal, além de provocar danos e dores, é sempre inútil, é sempre tardia, chegando sempre somente depois que o evento indesejável já ocorreu. Essa inútil, tardia, violenta, danosa e dolorosa intervenção do sistema penal deve ser substituída por mecanismos formais e informais de controle (exercido por organismos como a família, a escola, as igrejas, os clubes, as associações, sistemas de saúde e assistência social, leis e aparatos judiciários civis e administrativos) que possam efetivamente regular a vida em comum e evitar ao máximo a produção de situações negativas ou condutas conflituosas no convívio entre as pessoas.
Naturalmente, um convívio mais saudável e menos produtor de conflitos passa pela garantia de respeito e bem-estar para todos os indivíduos. Energias e investimentos desperdiçados com a ilusória e nefasta segurança máxima de prisões devem ser substituídos por energias e investimentos voltados para garantir alimentação saudável, habitação confortável, escolas de boa qualidade, trabalho satisfatoriamente remunerado, lazer, cultura, enfim, dignidade para todas as pessoas.
Os danos e as dores produzidos pelo sistema penal revelam a total falta de racionalidade da idéia de punição. Qual a racionalidade de se retribuir um sofrimento causado pela conduta criminalizada com outro sofrimento provocado pela pena? Se se pretende evitar ou, ao menos reduzir, as condutas negativas, os acontecimentos desagradáveis e causadores de sofrimentos, por que insistir na produção de mais sofrimento com a imposição da pena? O sistema penal não alivia as dores de quem sofre perdas causadas por condutas danosas e violentas, ou mesmo cruéis, praticadas por indivíduos que eventualmente desrespeitam e agridem seus semelhantes. Ao contrário. O sistema penal manipula essas dores para viabilizar e buscar a legitimação do exercício do ainda mais violento, danoso e doloroso poder punitivo. Manipulando o sofrimento de indivíduos atingidos por seus semelhantes, incentiva o sentimento de vingança. Desejos de vingança não trazem paz de espírito. Desejos de vingança acabam sendo autodestrutivos. O sistema penal manipula sofrimentos para perpetuá-los e para criar novos sofrimentos.
O destrutivo sentimento de vingança, manipulado pelo sistema penal, deve ser trocado pelo perdão, pela compaixão, pela compreensão, abrindo espaço, nos conflitos interindividuais, para estilos compensatórios, assistenciais, conciliadores. Os bens e as riquezas produzidos nas sociedades, certamente, devem ser compartilhados. Mas, é preciso também aprender a conviver com os desconfortos nelas gerados e buscar o entendimento, a proximidade com o conflito, as soluções formadas a partir da consideração de todas as nuances do caso concreto e do respeito à dignidade de todos os envolvidos.